Instalação de professor da Unicamp e artista californiana é premiada no Reino Unido
Sobre a mesa, dentro de uma redoma de vidro, um livro é (literalmente) comido por fungos. Cada letra que desaparece dificulta o entendimento do que está escrito. O crescimento do microrganismo e a destruição que ele causa, passo a passo, se transformam em publicações do perfil @hellofungus, no Twitter. Ao lado da redoma o comportamento do fungo é reproduzido digitalmente, numa tela eletrônica. Dessa vez textos buscados na internet, por um algoritmo, são desfigurados. O trabalho classificado como uma obra de arte digital biohíbrida reúne um sistema de inteligência artificial, organismos vivos e uma rede social.
Mas o que dizem essas palavras para merecer tal destino? Elas falam sobre como o homem pode (e até deve) modificar e interferir na natureza. Falam de uma natural, e supostamente benéfica, dominação da espécie humana no planeta, algo que precisa ser questionado, sobretudo dessa forma: com uma obra de arte.
“Os livros escolhidos registram a ideia de que o homem é melhor que as outras espécies, um tipo de discurso conhecido desde a Bíblia até a obra de pensadores romanos renascentistas, ou modernos. Hoje em dia a gente ainda reproduz esses padrões na geoengenharia ou engenharia do clima por exemplo”, ressalta o professor Cesar Baio, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, um dos autores da instalação Culturas Degenerativas. A obra recebeu o prêmio Lumen Prize British Computer Society Artificial Intelligence, uma competição global da instituição Lumen Art Projects Ltd, baseada no Reino Unido e dedicada à promoção de artistas digitais ao redor do mundo.
Baio trabalhou com a artista californiana Lucy HG Solomon. A dupla mantém o coletivo Cesar & Lois, que tem o objetivo de reunir artistas e cientistas para criar trabalhos que envolvem tecnologia e natureza.
Desde o pós-doutorado na universidade de Plymouth, no Reino Unido, Cesar Baio estuda os padrões de comportamento cultural e social assumidos hoje pelas pessoas “que levam a desinformação e que, de alguma maneira, ameaçam a continuidade ou de uma integração social, ou mesmo da própria existência da espécie”. Segundo o professor isso também tem a ver com o crescimento, por exemplo, de mensagens falsas. “É comum hoje a gente conhecer pessoas resistentes aos fatos, que se comportam mais pelo em que acreditam do que pelo que elas veem”.
Partindo das discussões globais sobre as mudanças climáticas e o Antropoceno (época em que os humanos tomariam o controle sobre a natureza) o professor afirma que o comportamento, que leva à desinformação, pode levar também à produção da própria extinção do ser-humano, autorizando ações determinantes para o ecossistema como a extinção das espécies e a extinção das matas nativas. E são as mesmas ideias que, segundo o professor, são tomadas como base para as narrativas do livro a ser destruído pelo fungo. Em outras palavras, a ideia dos artistas é fazer as pessoas refletirem sobre a interferência do ser-humano na natureza, desconstruindo tais narrativas.
“Nós queremos mudar o mundo - começando pela tecnologia. Se nós redesenhamos nossos métodos de interação com os outros e com a natureza, isso vai aos poucos ganhando força para influenciar outras interações. No cerne deste projeto está a premissa de que a humanidade tem assumido que, como espécie, nós podemos não somente controlar como também remodelar a natureza. Mas, e se, em vez disso, nós desenharmos a sociedade e a tecnologia a partir da natureza? Olhando para o ecossistema nós podemos encontrar sistemas muito mais eficientes para gerenciar o crescimento, tomar decisões e distribuir recursos”, reflete Lucy.
Cesar afirma que as pessoas em geral não têm capacidade de compreender o ecossistema. “A gente não sabe o que é o ecossistema. A gente desrespeita os conhecimentos ancestrais milenares do povo indígena, dos vários povos orientais que estabelecem uma relação com a natureza completamente diferente”. O professor acredita que a tecnologia é cada vez mais entendida como um produto, e não como um processo, um método ou instrumento para que coisas novas possam ser criadas. “Desenvolve-se assim um discurso de que a tecnologia é tão complexa que a gente não consegue entender como funciona. Esse discurso é consequência não da tecnologia em si, mas de um projeto de poder”.
Culturas degenerativas também procura corromper o sistema tecnológico com o crescimento do fungo, digital, programado ou natural, como ocorre com o livro na redoma. Cesar e a artista parceira contaram com uma equipe interdisciplinar para a pesquisa e montagem da instalação. Os artistas trabalharam junto com um biólogo na escolha e no manejo do fungo Physarum polycephalum, conhecido como slime mold. “Esse organismo tem sido considerado ‘inteligente’ porque consegue criar ligações entre diferentes fontes de comida de uma maneira muito estratégica”, destaca Cesar.
A obra já foi exposta na Itália, em uma exposição na cidade de Ravena, e também em São Francisco, Califórnia, além de Brighton, no contexto da premiação. “A arte oferece um espaço para introduzir novas utopias. Com Culturas Degenerativas, nós vislumbramos uma sociedade futura que equilibra sistemas humanos e não-humanos, naturais e tecnológicos”, afirmam os autores.