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Para além das sombras de Augusto dos Anjos e Miguel Rio Branco: a ruptura de um monólogo

Fernando de Tacca analisa as fronteiras de obra de Miguel Rio Branco

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Fotos: Reprodução
Miguel Rio Branco: “Monólogo de uma Sombra/Monologue d’une ombre”

Deparei-me com a obra “Monólogo de uma Sombra/Monologue d’une ombre”, de Miguel Rio Branco, datada de 2002, no acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madrid, durante pesquisas sobre a presença da fotografia brasileira em museus internacionais, e desde o primeiro momento me interessei por conhecer de perto sua proposta, principalmente pelo fato de que pelo site do museu está nomeada como um livro: “Técnica descriptiva:  Libro que contiene ocho fotografías de Miguel Rio Branco y textos de Augusto dos Anjos [1]. Com a gentileza da área técnica de preservação e conservação do museu, realizei uma visita e pude ver a obra de perto.

A edição da obra foi sugestão de Alexis Fabri, e teve design de Michele Lucci. Rio Branco [2], em entrevista pela Internet, afirmou que não participou de todo o processo de formatação, pois a prática de Fabri era de sugerir ao artista que lhe enviasse um conjunto de imagens e um texto escolhido. No caso, Miguel escolheu o poema de Augusto dos Anjos, que é o título da obra com tradução também para o francês.  Cabe indicar que depois Alexis Fabri criou a editora Toluca [3], em Paris, que continua suas propostas inovadoras na construção de caixas e outros tipos de apresentação de obras fotográficas, e na qual Miguel Rio Branco editou um volume desta coleção: Cette Blessure – vol. 41, com texto de Luiz Ruffato  (L’étalogiste) [4] e design da caixa de Mauricio Rocha [5]. Nesse caso, a ideia de um fotolivro está muito bem definida, pois a caixa, depois de aberta, nos apresenta um conjunto de imagens e textos costurados que dão uma ordenação entre texto e imagem. Para Ruffato, “o texto conversa com as fotos por respirar o mesmo cenário” [6]. A cada texto em página dupla segue um díptico de fotografias, como uma dinâmica repetitiva com esse formato, criando uma unidade narrativa. Segundo Ruffato, ele recebeu um pedido de sua editora em Paris para enviar o texto e teve contato com as imagens antes da publicação da obra pela Toluca.

Miguel Rio Branco assim define esse fotolivro e também como parte de seu processo criativo: “Eu uso imagens e também cores, tipos de luz, coisas que não param de se repetir. Há cores que vêm da era da pintura e que continuo a usar. Quando edito uma fotografia, é como se eu estivesse repetindo elementos de forma combinatória, como se estivesse expressando a mesma ideia, mas de uma maneira diferente. Um pouco parecido com o que acontece na música, como por exemplo com uma progressão de acordes de João Gilberto: ele pega uma melodia, desenvolve, sutilmente a transforma. Não é uma transformação radical, como ir do rock ao samba, ou do samba ao jazz. Modelando o material, como Morandi, que nunca parou de pintar garrafas, e ainda assim são todas diferentes.” [7]

Sem dúvidas, a trajetória de Miguel Rio Branco é de grande complexidade e já gerou muitas teses e artigos [8]: perpassa pintura, instalação, slide show, cinema, fotografia e fotolivros. De certa forma, o texto do artista acima indica sua sempre inclinação para o seu acervo pessoal de imagens, deslocando-as e ressignificando-as em diferentes processos criativos. Outras produções anteriores, como “Dulce Sabor Amargo” (Fondo de Cultura Económica de México, 1985, considerado um clássico da história do fotolivro latino-americano), já continham textos de Jean Yves Cousseau, e em outra referência, “Silent Book” (Cosac & Naify, 1998), o texto não faz parte da proposta visual do projeto gráfico. Ou seja, cada projeto de Rio Branco tem características próprias de criação, formatação e apresentação.

Rio Branco relaciona essa obra com a instalação audiovisual “Porta da Escuridão” (1995), e também o livro “Silent Book”: “... que têm essa noção dramática pessimista do Monólogo de uma Sombra e achei que seria adequado ao projeto”. E o artista também encontra em Augusto dos Anjos referência para boa parte de suas obras, segundo ele, carregando de ceticismo suas imagens, e de uma densidade sempre para o oculto das sombras e do escuro, que ressalta ainda mais as cores polarizadas. Alguma sensação de uma patalogia platônica do tânatus se apresenta nas imagens de Rio Branco, quando o filósofo chama as imagens (ou eidolon) em primeiro lugar para as sombras. Essa obra relaciona-se também com outra instalação, “Gritos Surdos”, originalmente realizada a partir de um convite de Tereza Siza, criadora e então diretora do Centro Português de Fotografia, na Cidade do Porto, em Portugal, e exposta em 2000, e depois nos Rencontres Photographiques d’Arles, na França, em 2005, na Casa França-Brasil, em 2014 [9].

 “Monologo de uma sombra/Monologue d’une ombre” [10] se encontra entre fronteiras; pode ser lido com imagens soltas juntas ao poema, ou de forma arbitrária, formando dípticos ou trípticos, ou seja, se permite ao sujeito muitas opções de ação frente ao conjunto de oito imagens reproduzidas em processo cibachrome, com o texto impresso em formato sanfona, que se abre para que o poema possa ser visualizado ou lido como um todo. O conjunto texto e imagem é “prensado entre vidros”, em formato circular, e para ver o conteúdo necessitamos de uma chave de fenda para abrir o invólucro de duplo vidro e metal. Para Rio Branco, a obra pode ser pendurada em uma parede, como um quadro, mas o conteúdo, nesse caso seria um mistério, e nos parece que essa intencionalidade de ocultar ou dificultar o acesso ao conteúdo está relacionado ao tema da sombra e o formato circular aludindo às “fotosferas mortas” de Augustos do Anjos. As camadas metálicas externas da obra teriam luz própria e calor, colocando barreiras fisícas para as imagens “mortas” no seu receptáculo.

Imagem: Reprodução
Miguel Rio Branco: “Monólogo de uma Sombra/Monologue d’une ombre”( Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía) [11]

Muito valorado no mercado de arte, essa obra (exemplar 59/60) foi encontrada para venda em um site de arte na Internet com valor de três mil euros. [12] Cada obra, portanto, acompanha sempre uma impressão sanfonada do poema de Augustos dos Anjos (português/francês) e oito reproduções em processo cibachrome, legitimando-se como processo fotográfico em cada exemplar, e quem possuir pode até mesmo descontextualizar as imagens do poema. Rio Branco, como autor, diferencia-a da categorização do museu, o que nos coloca em questão a amplitude da nomenclatura fotolivro: “... mais um detalhe em relação a esta peça é o fato de ser mais uma peça que pode ser colocada na parede e ser vista uma imagem de cada vez, não seria muito como um fotolivro, pois o discurso não é fechado”.

Foto: Reprodução

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Foto: Reprodução

Fernando de Tacca é professor livre-docente no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, curador da seção “Fotografia” do JU e editor da revista Studium: www.studium.iar.unicamp.br. Atualmente na Espanha, com Bolsa de Pesquisa no Exterior/FAPESP.

 



[1] https://www.museoreinasofia.es/coleccion/obra/monologue-dune-ombre-monologo-sombra

[2] Em entrevista pela Internet.

[3] http://www.tolucaeditions.com/?page_id=77

[4] O texto original em português, com título “O Repositor”, foi publicado pela primeira vez na revista Bravo (março/2004) e depois na coletânea de vinte narrativas do autor “A cidade dorme” (Cia das Letras publicado, 2018).

[5] Para ver toda a obra visitar o endereço eletrônico:

[6] Em entrevista pela Internet.

[7] http://www.tolucaeditions.com/?portfolio=cette-blessure

[8] Cito duas referências acadêmicas sobre a obra de Miguel Rio Branco: Aquino, Lívia Afonso. Imagem-poema: a poética de Miguel Rio Branco. Dissertação de Mestrado, Instituto de Artes, Unicamp, 2005:
Araújo Filho, José Mariano Klautau de. Miguel Rio Branco: imaterialidades do objeto, materialidades da imagem. Tese de doutorado, Escola de Comunicações e Artes, USP. 2015.

[9] Para ver mais sobre Miguel Rio Branco:

[10] Todas imagens foram retiradas do site: http://www.take5editions.com/int/en/livres-publiees/introduction.html

[11] Archivo Fotográfico Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía

[12] ADER – Nordmann & Dominique, acessado em 20/01/2019:

 

 

 

Imagem de capa JU-online
Fernando de Tacca analisa as fronteiras de obra de Miguel Rio Branco | Imagens: Reprodução

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