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A cidade feliz como subversão da utopia literária

Crise atravessada por Veneza marca de modo decisivo obra de Patrizi da Cherso

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A obra utópica do escritor ítalo-croata Francesco Patrizi da Cherso, A cidade feliz, foi publicada originalmente em Veneza no ano de 1553, momento ainda permeado pelo Renascimento na Itália e no qual a cidade passava por uma pesada crise política e econômica. Essa conjuntura caótica exerce papel decisivo na constituição do livro, que foge das convenções presentes nas utopias literárias de sua época. A publicação praticamente vira o gênero às avessas ao inserir em sua composição um posicionamento político aristocrático e conservador e ao arquitetar medidas práticas para a criação de uma sociedade ideal, digna de banhar-se no tão desejado “regato” da felicidade.

Os escritos utópicos, que ganharam força no período do Cinquecento renascentista, apresentam-se como reflexos de uma sociedade imperfeita. Nesse contexto, o autor – um analista crítico daquele corpo social – identifica suas deficiências e constrói uma versão idealizada. Tal empreendimento foi denominado por Northrop Frye de “modelo possível da experiência humana”, no qual um sujeito constrói paradigmas fictícios dotados apenas de aspectos considerados benéficos. O teor imaginário do gênero explicita-se ainda mais com a utilização de recursos como a viagem e o sonho, responsáveis pelo transporte do narrador até a cidade utópica, normalmente pintada como um ambiente de lazer e bem-estar coletivo, a exemplo das obras mais representativas da categoria: Utopia (1516), de Thomas More, e A cidade do Sol (1602), de Tommaso Campanella.

A cidade feliz, entretanto, destoa dos textos utópicos típicos, ao adotar um modelo pautado pela investida de cunho prático e pelo posicionamento político conservador, arquétipo esse que será aplicado sobretudo na divisão de trabalho que norteia a cidade ideal de Patrizi da Cherso. Tal discrepância entre os escritos canônicos do gênero e o livro deve-se, em grande parte, ao contexto de sua produção. Tínhamos, então, uma Veneza em forte declínio decorrente das invasões turcas, mas ainda ligada a seu passado rico e expansionista, em que os objetivos últimos eram, segundo o historiador de arte Jacob Burckhardt, “gozar o poder e a vida, ampliar o legado dos antepassados, reunir mais lucrativas indústrias e abrir constantemente novos mercados” (A cultura do Renascimento na Iltália. Companhia das Letras, 2009, p.95).

Como evidência dessa filiação do autor ao momento histórico veneziano, tem-se o caráter lógico e direto da obra, expresso desde a recusa do autor pela composição usual (em forma de diálogo, com a viagem à cidade ideal) até a longa reflexão, nos primeiros capítulos, acerca das condições geográficas e de saúde ideais para os moradores alcançarem a almejada felicidade, aspectos que também podem remeter a uma herança dos estudos do escritor em medicina.

O tão citado “regato divino” (símbolo da felicidade), entretanto, é tido como um dos pontos que mais distancia A cidade feliz das demais utopias. Enquanto a obra de Thomas More projeta uma sociedade na qual “todos possuem tudo em comum” e em que o Direito Natural é tido como uma máxima (particularidades que se repetem em A cidade do Sol), Patrizi constrói uma cidade em que apenas as classes sociais mais elevadas seriam agraciadas com o acesso à felicidade. Já os camponeses seriam relegados a atuações explicitadas no seguinte trecho:

E visto que a terra, geralmente, sem o auxílio da arte, torna-se estéril e improdutiva por longo período, surge, então, a necessidade de camponeses e de pastores, da agricultura e da pecuária. E como tal atividade é por demais fatigante e de enorme afã, requerem-se homens que sejam robustos e capazes e suportá-la e, para que pela fadiga não possam recusá-la e mais livremente possam os cidadãos comandá-los, é preciso que sejam servos. (pp. 75-76)

Mesmo com matrizes filosóficas em comum com as demais utopias, entre elas as teorias aristotélicas e platônicas, A cidade feliz apresenta uma estrutura de servidão que se contrapõe totalmente à ideologia seguida pelas composições do gênero, sintetizada na recusa de Platão “a fazer leis para pessoas que não aceitassem compartilhar seus bens com igualdade”, conforme evidenciado por More em Utopia. Por meio desse esquema de submissão, segundo o autor, os mais nobres poderiam obter todos os recursos necessários para alcançar a felicidade sem a necessidade de realizar trabalhos extenuantes, os quais seriam assumidos pelos servos, impossibilitados de receber a graça do bem maior.

A cidade feliz faz um interessante contraponto às demais criações do gênero utópico: Patrizi não apenas defende ideias que estão diretamente ligadas à composição da sociedade veneziana de então, com uma abordagem prática, como o faz apropriando-se de um gênero geralmente utilizado para defender teorias diversas das suas. O atrativo do texto, portanto, encontra-se menos no esforço do autor em arquitetar uma cidade ideal para que a aristocracia (e só ela) pudesse alcançar o tal “regato” da felicidade, e mais na ousadia da obra quando comparada a outras utopias.


SERVIÇO

ReproduçãoTítulo: A cidade feliz

Autor: Francesco Patrizi da Cherso

Tradutor: Helvio Moraes

ISBN: 978-85-268-0952-9

Edição: 1ª

Ano: 2011

Páginas: 136

Dimensões: 10,5 x 18 cm

Preço: R$ 40,00

Imagem de capa JU-online
Reprodução da Capa do Livro "A cidade feliz "

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