Pesquisa pretende trazer contribuições para intervenções que garantam a preservação de um bem cultural ameaçado
Graduada em arquitetura pelo Politécnico de Turim, capital da região do Piemonte, Itália, da qual é originária, Giulia Vercelli veio ao Brasil interessada em estudar questões relacionadas à migração italiana, praticamente desconhecida em seu país, e ao patrimônio paulistano construtivo deixado por ela. Encantou-se com o antigo bairro da Bela Vista, na região central da capital, mais conhecido como Bexiga, denominação que recebeu o loteamento, de 1890, da antiga Chácara do Bexiga, ao que consta, assim chamada porque seu antigo proprietário era conhecido por Antônio Bexiga em razão do rosto marcado pela varíola.
Mas logo se deu conta de que havia poucos conhecimentos da história construtiva deste bairro e de que a literatura disponível sobre a influência italiana repercutia uma alegoria, uma ficção sobre uma Itália que não existe mais, sem valorizar as interações multiculturais de que São Paulo foi palco no final do século XIX e início do século XX. Mesmo mantendo o interesse pelo legado construtivo dos italianos, ela passou a observar o bairro dentro de uma nova perspectiva, pois considera que “o Bexiga contemporâneo, assim como na origem, é um caldeirão multicultural de novos imigrantes, continuando como um lugar de acolhimento para quem começa uma nova vida na capital”.
Além do mais, tratando-se de um dos bairros mais antigos de São Paulo, a sua manutenção permite conhecer uma importante fase da história do desenvolvimento da cidade, fundamental para que as novas gerações se deem conta de que a beleza não está apenas nos prédios espelhados. Preservar o Bexiga é manter a história viva da cidade e suas raízes.
A pesquisa voltou-se então para a identificação e análise do atual estado de conservação das edificações e conjuntos históricos no Bexiga que ainda testemunham tipologias arquitetônicas e características particulares de inserção na malha urbana relacionada ao desenvolvimento da cidade de São Paulo. Seu reconhecimento como inequívoco patrimônio histórico ocorreu em 2002, quando o bairro foi objeto de tombamento integral, decorrente da implementação do Inventário Geral do Patrimônio Ambiental, Cultural e Urbano da cidade, um sistema de documentação inédito para estudo sistemático dos bairros antigos da sua área central visando-lhe a proteção. O objetivo geral da pesquisa, de caráter exploratório, foi o de refletir sobre mudanças ocorridas no bairro, relacionando-as ao seu desenvolvimento histórico sob o ponto de vista da representatividade arquitetônica e urbana, o que implicou na reavaliação desse inventário. A pesquisadora estruturou sua dissertação de forma a ir além da alegoria e de aprofundar o conhecimento na formação histórica da cidade e do bairro do Bexiga.
Na pesquisa, orientada pela professora Regina Andrade Tirello, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, ela reflete sobre as mudanças ocorridas no bairro, relacionando-as ao seu desenvolvimento histórico e à sua permanência arquitetônica e urbana na cidade. Mais que isso, a questão central que permeou a sua investigação foi a constatação da ausência de preservação efetiva dos bens de interesse cultural localizados no bairro, o que tem contribuído para a perda de exemplares significativos da arquitetura histórica paulistana. Em face disso, a autora buscou compreender como a legislação urbana e preservacionista incide nas questões que envolvem o patrimônio histórico construtivo do bairro. Para tanto, ela analisou as transformações arquitetônicas que estão ocorrendo no bairro, tombado integralmente em 2002, e deteve-se em identificar o atual estado de conservação das suas edificações e conjuntos históricos.
Neste bairro, que começou no Piques, junto ao atual centro da cidade, e foi subindo pela hoje Avenida Brigadeiro Luiz Antonio até chegar à posterior Avenida Paulista, conhecido pelas cantinas, em que casas antigas e bonitas se alternam com outras em ruinas, a pesquisadora se deparou com o seu caráter histórico e a manutenção de suas características multiétnicas, ocupado que fora na sua origem, a partir do final do século XIX, principalmente por italianos, espanhóis e negros libertos da escravidão e hoje por nordestinos, africanos de língua portuguesa, haitianos e sírios, que mantêm suas características populares. Mesmo sem consciência do que o bairro representa para a memória histórica de São Paulo, seus atuais moradores têm por ele particular afeição, ocupam suas ruas e se conhecem, e nele se identifica uma atmosfera diferente.
Ela esclarece que, mesmo com o amplo levantamento do patrimônio histórico do bairro e tombamentos de suas construções mais significativas realizado pelo Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo, o que culminou em normas que precisam ser respeitadas, nem sempre isso se verifica, ou por falta de fiscalização ou porque os proprietários, sem condições de manter os imóveis, preferem deixá-los cair, o que lhes possibilita depois vender o terreno ou transformá-lo em estacionamento. Esse conflito entre a legislação e as pressões do mercado imobiliário constitui uma grande ameaça para o Bexiga, ocupado por casas baixas que, se demolidas, darão origem à verticalização e à perda de sua identidade. Diante desse quadro e do perigo da progressiva extinção desse rico patrimônio histórico em decorrência da exploração imobiliária e do plano diretor da cidade que incentiva a verticalização, a pesquisadora se propôs a estudar e sugerir medidas que possam ajudar a preservação dessa parte da cidade profundamente ligada ao seu desenvolvimento. Ela espera que seu trabalho venha a colaborar com o aperfeiçoamento de futuros de inventários de bairros históricos da cidade de São Paulo.
Origens
Para o desenvolvimento do trabalho, a autora considerou importante estudar primeiramente a formação da cidade e a origem e o desenvolvimento do bairro de forma a entender seu contexto atual e sugerir intervenções que lhe garantam a preservação. Para atender a estes objetivos ela elegeu como método de análise o sistema de Saverio Muratori, que propicia leitura concomitante da tipologia arquitetônica com o desenvolvimento do traçado urbano, o que a levou a adaptar os estudos do professor e arquiteto italiano, que os aplicou em Roma e principalmente Veneza, nas décadas de 1950 e 1960.
Muratori considerava que, para projetar o hoje, é fundamental conhecer a origem histórica da cidade, as razões do seu traçado, sua importância arquitetônica e o uso dos edifícios e não apenas seus aspectos estéticos atuais. A propósito diz ela: “O Bexiga é importante não só pelas suas construções características e pelos seus belos palacetes, mas também pelo traçado de suas ruas e quarteirões, reveladores da história da formação da cidade de São Paulo”.
A conformação original do Bexiga reflete a configuração geomorfológica da região, ocupada por morros e brejos insalubres e atravessada por três córregos que com o desenvolvimento do local acabaram canalizados. Essas características inóspitas barateavam os preços dos lotes o que atraía imigrantes e negros libertos já no final do século XIX.
Depois de realizar uma revisão histórica da formação de São Paulo e do Bexiga e da teoria de análise proposta por Muratori e seus seguidores, adaptando-a às condições locais, ela adotou como estudo de caso os três quarteirões que hoje compõem a rua São Domingos, onde se encontra a famosa padaria do mesmo nome. A rua foi escolhida por ser uma das mais antigas do bairro e porque nela se encontram várias construções antigas e tombadas, com tipologias características do bairro e que, além disso, sofreu uma grande mudança com a construção da Radial Leste-Oeste.
A partir daí, ela construiu uma classificação tipológica representativa dos prédios da rua, utilizando os arquivos cartográficos de São Paulo, em que pesem suas precariedades, pois a maioria desses mapas contêm apenas o traçado das ruas, sem o desenho dos lotes, que são indicados apenas a partir de 1930. As primeiras e poucas construções registradas nos mapas são da década de 1910.
Mesmo assim, com base do que ele encontrou nos arquivos, entre 1910 e 1930, e no que existe hoje ela conseguiu delinear vários tipos arquitetônicos que constituem um suporte para o entendimento da cronologia do que deve ter acontecido na rua escolhida para estudo entre as décadas de 1910 e 1960. Com base nisso e no que existia na década de 1980, em que se deu o primeiro inventário, e no que foi fichado no grande inventário de 2002, ela concluiu que a mudança no bairro foi grande. Entretanto, a pesquisadora enfatiza a importância da descoberta de que, embora possa ter mudado a fachada das casas, dos sobrados ou dos prédios, a forma dos lotes continua a mesma, estreitos e compridos, bem como os esqueletos das construções.
As contribuições
Giulia Vercelli considera que o viés intelectual do seu trabalho reside na proposta de reinventariar para preservar, como consta no título de sua tese, que aborda o Bexiga das suas origens à contemporaneidade. Ela acredita que o método do professor Muratori, que prega o olhar sobre a forma da cidade e das tipologias arquitetônicas, com as devidas adaptações, pode ser aplicado para o estudo de quaisquer bairros históricos de São Paulo e de outras cidades brasileiras. Neste particular, diz: “Utilizo as palavras dos meus mentores, que são Muratori e seus discípulos: é preciso fazer uma leitura das camadas do tempo, e preservar essas camadas é fundamental para a nossa civilidade”.
A autora considera que uma intervenção mais séria no bairro do Bexiga deve partir das instâncias superiores que precisam garantir inclusive sua sustentação financeira. Ela tem esperança no surgimento de uma ação participativa, pois as pessoas que moram no bairro o amam e suas associações lutam pela sua preservação. Mesmo assim, há necessidade de mais conhecimento da sua importância histórica para a cidade de São Paulo, principalmente por parte dos que lá vivem, pois é o conhecimento que leva as pessoas a atribuir mais valor ao seu bem.
Por ser um bairro popular e multiétnico, o Bexiga, desde o início, nunca foi 100% italiano, embora no final do século XIX a maioria dos seus moradores fossem de fato oriundos da Itália, situação que foi se alterando ao longo do tempo com a chegada dos negros e outros imigrantes europeus. O espírito do bairro se mantém porque as pessoas se conhecem, convivem na rua onde também brincam as crianças e ninguém quer perder esse espaço de convivência. Mas seria importante que seus moradores tivessem consciência da arquitetura que os rodeia para entender a importância da preservação e da manutenção das características essenciais das construções.
O trabalho constitui a primeira avaliação do inventário inédito realizado sobre o bairro, em 2002, pelo Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo, e ainda hoje muito pouco conhecido. Esse levantamento tinha dois objetivos: fichar todos os bens do bairro, o que foi feito com sucesso, e realizar estudos mais profundos sobre os bens tombados e propor intervenções, o que infelizmente não teve sequência. Para a avaliação desse trabalho em termos de hoje, a autora consultou os processos de tombamento e as fichas de cada imóvel inventariado, disponíveis no Departamento, de que constam uma foto em branco e preto e informações básicas sobre a construção e sua localização, registradas a lápis e passiveis de serem apagadas pela ação do tempo.
Do ponto de vista mais prático a autora acredita que o trabalho possa ser útil a futuros estudos, principalmente na área de arquitetura, que venham a se apoiar nos conceitos de Muratori, pois ela traduziu para o português muitos dos textos que expõem suas ideias. Isso lhe foi possível porque, além do acesso à biblioteca do Politécnico de Turim, conseguiu vários livros emprestados de professores, consultas e leituras que lhe permitiram inclusive delinear a estrutura da dissertação.