Levantamento revela que patógeno causou pandemia apontada como a maior da vida silvestre em toda a história
Artigo publicado na revista Science neste dia 29 de março descreve um esforço global relacionando o declínio em massa e em escala mundial dos anfíbios com o fungo Bd (Batrachochytrium dendrobatidis), também conhecido como quitrídio. A quitridiomicose panzoótica, doença causada pelo fungo nos anfíbios, é responsável pela maior perda de biodiversidade atribuível a um patógeno. Pela primeira vez, pesquisadores de diversos países – incluindo os brasileiros Felipe Toledo e Tamilie Carvalho, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp – realizaram uma compilação de dados tão abrangente a ponto de permitir dimensionar a escala real do impacto desta pandemia apontada como a maior da vida silvestre em toda a história.
A quitridiomicose ataca a pele dos anfíbios e acaba interferindo em seu batimento cardíaco, sendo que a transmissão se dá pela água ou contato direto entre os animais.
“Listamos 501 espécies de anfíbios impactadas pelo fungo, sendo que 90 estão extintas ou presumivelmente extintas. Nunca havíamos conseguido tantas informações sobre a doença no mundo, com uma amostragem de 25 países, apesar da falta de trabalhos em regiões como Ásia e África (onde obtivemos dados apenas de Tanzânia e Marrocos). Já sobre América, Europa e Austrália (Oceania), temos dados consistentes”, afirma o professor Felipe Toledo, do Laboratório de História Natural de Anfíbios Brasileiros (LaHNAB) do Departamento de Biologia Animal da Unicamp.
Tamilie Carvalho, pesquisadora do LaHNAB e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Unicamp, conta que o artigo na Science representa uma extensão do seu mestrado no IB, em que investigou quais espécies de anfíbios tinham sido afetadas no Brasil, sobretudo na Mata Atlântica, onde Holoaden bradei e Phrynomedusa appendiculata estão entre as extintas. “Meus dados entraram como parte da compilação que fizemos em todo o mundo, buscando correlacionar vários eventos que aconteceram principalmente nas décadas de 1970 e 80, quando foi alta a prevalência de quitridiomicose. Formamos assim uma tabela mostrando qual espécie declinou, o quanto declinou e qual a abrangência (se estava muito ameaçada, com a população reduzida, ou pouco ameaçada).”
Segundo os autores do artigo, os declínios de anfíbios atingiram o pico na década de 1980 e apenas 12% das espécies mostram sinais de recuperação, enquanto 39% continuam declinando, havendo o risco de surtos de quitridiomicose em novas áreas. Calcula-se que o patógeno tenha causado a extinção de 200 espécies, 15 delas no Brasil. Felipe Toledo e parte destes autores assinaram outro artigo na Science em maio do ano passado, apontando o Leste da Ásia como de provável origem do fungo letal e que sua proliferação teria começado há cerca de 100 anos, coincidindo com a expansão do comércio mundial da carne de rã. Os biólogos sabiam da existência e da patogenicidade do Bd desde os anos 1990, mas não de onde ele veio.
O docente do IB atenta para as implicações do declínio de anfíbios do ponto de vista ecológico, já que eles ocupam papel central na teia alimentar, enquanto presas de mamíferos, cobras e aves, e predadores de insetos e invertebrados em geral. “Sem anfíbios, diminui o número de cobras e aumenta o de insetos. Temos os girinos, que se alimentam de algas e evitam a eutrofização – excesso de nutrientes que tornam a lagoa esverdeada e reduzem o oxigênio da água, causando a morte de peixes. Há consequências também para o ser humano, já que sapos comem gafanhotos (praga das plantações) e mosquitos (que trazem doenças). Sapos são ainda fontes de medicamentos: com base em seu veneno a indústria produz antidepressivos e, na Austrália, o quitrídio extinguiu uma espécie que era estudada para se chegar a remédios contra úlcera e gastrite.”
Toledo acrescenta que os pesquisadores procuraram verificar se todas as espécies afetadas apresentavam características em comum, como de ordem filogenética. “Espécies do mesmo gênero são mais atingidas que outras, como os sapos do gênero Atelopus, muito sensível à doença. Muitas das espécies de Atelopus foram extintas ou perderam mais de 90% da sua população na natureza. As espécies do gênero ocorrem desde o Brasil até a América Central e temos aqui duas ou três espécies, mas que são da Amazônia e ainda não estudamos, sendo um alvo de futuras pesquisas.”
De acordo com Tamilie Carvalho, ecologicamente, não há muita relação entre as espécies mais atingidas e o clima, seja tropical ou temperado. Ela aponta, no mapa de distribuição, que as incidências foram registradas nos trópicos da Austrália, região central da América Central e América do Sul, o que endossa a hipótese de que o Bd se espalhou da Ásia para o Novo Mundo. “Mas encontramos alguns padrões, como de que as espécies mais atingidas e ameaçadas são de anfíbios de maior porte, que estão em habitats aquáticos perenes para reprodução – são variáveis abióticas ou ecológicas que favorecem a disseminação do fungo.”
Outro aspecto relatado no artigo na Science é que os declínios foram menos severos para espécies que vivem em grandes extensões geográficas e de elevação – condições ambientais desfavoráveis para o fungo. “O artigo traz uma análise epidemiológica espacial e temporal da doença em todo o mundo, com dados que podem influenciar políticas de conservação voltadas, por exemplo, a espécies com menor distribuição geográfica, que são as mais atingidas e extintas”, diz Tamilie Carvalho. “Isso se repete na Mata Atlântica, onde as espécies são muito endêmicas (de poucos lugares), enquanto que na Amazônia há muitas espécies, mas encontradas na região inteira.”
Em relação à extensão temporal dos declínios, os pesquisadores ressalvam que a maioria das evidências é retrospectiva, visto que muitas espécies diminuíram antes da descoberta da quitridiomicose. “Existem mais espécies que as 501 que listamos, pois a maior parte foi afetada entre os anos 1970 e 1990, antes de sabermos da existência da doença. Certamente muitas foram extintas e não as vimos”, observa Felipe Toledo. “No gráfico temos um pico de extinções e depois uma redução, sobrando as espécies que são tolerantes ou que adquiriram imunidade. E podemos ter novos picos, uma vez que a doença também vai evoluindo com a mutação e a recombinação através de reprodução sexuada.”
Tamilie adianta que um trabalho interessante a ser desenvolvido é para tentar entender por que esses picos aconteceram, ou seja, quais são as variáveis que controlam esta oscilação ao longo do tempo e do espaço. O fato de as extinções coincidirem com o período das grandes mudanças climáticas, também oferece margem para análises futuras. Além da sinalização para que os estudos de conservação priorizem espécies mais endêmicas de pequena distribuição, o artigo evidencia que América Central e América do Sul são as regiões mais afetadas, abrigando 400 das 501 espécies listadas, e também são aquelas com maior riqueza de anfíbios no planeta.
Um fator crucial lembrado por Felipe Toledo, é que mais que o quitrídio, o homem é o principal destruidor de habitats de anfíbios, com a agropecuária, a expansão urbana e a poluição. “Os bichos são muito sensíveis a poluentes no ar, na água e no solo. Existe ainda a coleta excessiva desses animais para consumo humano, sobretudo na África e na Ásia, e uma das medidas em macro-escala para conter a disseminação do fungo seria o controle do comércio de rãs, que viraram moda nos anos 1980 e depois, quando ranários fecharam, foram simplesmente soltas no mato. O fungo, em si, é facilmente eliminado com medicamentos encontrados na farmácia, mas não podemos espalhar antifúngicos na natureza, matando também os fungos benéficos.”