Livro ousa analisar questões candentes da nossa crise política
Na conjuntura política nacional, termos que integram o vocabulário das chamadas ciências sociais, usados para designar certas relações de natureza social e política, têm sido mobilizados com frequência nos diálogos cotidianos, nas redes sociais e em declarações públicas. Em tais contextos, sua finalidade não é científica, mas acusatória. Assim utilizados, não importa a capacidade analítica desses termos e sua potência para explicar os embates decorrentes da polarização vivida pelo país, mas antes sua eficácia em explicitar a indignação daquele que acusa diante do posicionamento do acusado. Qual é a relação entre a força de acusação de determinada categoria e sua eficácia analítica no âmbito científico? Essa é uma das indagações suscitadas pelo conjunto de artigos que compõem a obra Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos, lançada em 2018 pela Editora da Unicamp.
Fruto de um evento acadêmico homônimo realizado em 2016, no âmbito do Fórum Pensamento Estratégico (Penses) da Universidade Estadual de Campinas, o livro ousa investigar questões ainda candentes de nossa crise política. Organizado pelos antropólogos Ronaldo de Almeida e Rodrigo Toniol, ambos da Unicamp, nele estão reunidos artigos de pesquisadores de diferentes áreas – como ciência política, filosofia, história e psicanálise – interessados na diversidade do repertório simbólico que os termos do título podem acionar no mundo e no Brasil atuais.
Vale destacar a variedade de casos empíricos e a pluralidade de abordagens teórico-metodológicas reunidas na obra. Seus capítulos reúnem análises das manifestações que ganharam as ruas do país a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff e, de modo mais amplo, dos protestos realizados durante os cinco anos dos seus governos (2011-2016). Aos percorrê-los, o leitor acompanhará também uma leitura da disputa recente em torno do modelo de cidadania no Brasil e poderá ainda refletir sobre outros debates políticos, como aqueles que envolveram a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. Também ganha relevo no volume a problemática a respeito da inserção política de grupos religiosos no Brasil, especialmente os pentecostais. Um de seus exames partirá da atuação parlamentar de deputados ligados a esses grupos, buscando entender a sua relação com o conservadorismo, como se verá a seguir.
O segmento evangélico: dos discursos dos deputados à acirrada disputa pelo uso do termo
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e especialista em antropologia da religião, Ronaldo de Almeida também assina um dos artigos do volume. Nele, o pesquisador examina as relações existentes entre os evangélicos e a chamada “onda conservadora” que hoje se manifesta na política e na cultura brasileiras.
Qual a amplitude em que se tem usado o termo “conservador” para qualificar essa onda que agita as nossas relações pessoais e sociais, além do nosso cenário político? Para enfrentar esse desafio, o autor se debruça inicialmente sobre alguns discursos proferidos na Câmara dos Deputados em abril de 2016, por ocasião da votação de admissibilidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff. Interessado nos vínculos entre a onda conservadora e os evangélicos, seu enfoque recai sobre as falas de deputados que se identificam dessa maneira.
Porém, a categoria “evangélicos” também deve ser questionada: a que, ou a quem, ela serve? Quanto a isso, Ronaldo assevera: “é um termo em acirrada disputa entre os que se autodeclaram dessa forma” (p. 166). No entanto, também tem servido a fins de acusação política, principalmente nos meios de comunicação. Ao associar esse segmento religioso à imagem das figuras políticas que despontam pela via eleitoral com uma atuação conservadora, sobretudo no legislativo, opera-se uma redução da diversidade que ele engloba.
Mas se os evangélicos não são todos conservadores – e uma vez que, provavelmente, nem todos concordam inteiramente com os posicionamentos dos deputados que se dizem representantes do segmento –, então a “onda conservadora” não pode ser simplesmente resumida como evangélica. Contudo, como a parcela hegemônica desse segmento religioso está relacionada com esse fenômeno político-cultural? Guiado por essa indagação, o autor rejeita definir de antemão o termo “conservadorismo”. Seu significado, assim como o dos outros termos que intitulam a coletânea, é construído sempre em relação com as demais categorias, que se forjam mutuamente no embate político. Se, no debate público, consideravelmente influenciado pelos meios de comunicação hegemônicos, essas categorias aparecem frequentemente acopladas umas às outras de maneira imprecisa, elas exercem aí a função de acusação política ao circunscrever “um conjunto relativamente variado de discursos, valores, ações e posicionamentos políticos com interesses parciais e conjunturalmente comuns” (p. 164).
Então, como dotar o termo “onda conservadora” de profundidade analítica? Se é relativamente trivial usar uma categoria como essa para a acusação política, o mesmo não se pode dizer de seu uso científico. Na análise do antropólogo, o fenômeno não é nada simples, uniforme ou homogêneo, mas se compõe de conexões parciais e conjunturais de quatro linhas de força: uma econômica, de inspiração liberal e meritocrática; outra voltada à regulação moral no âmbito público; uma terceira que é securitária, pautada por princípios repressivos e punitivos; e ainda uma última referente ao caráter belicoso e intolerante das interações sociais entre brasileiros.
Mas qual seria a composição da “onda conservadora” na atualidade? Para Almeida, não houve alteração nas suas linhas de força, mas o acento e o equilíbrio entre elas se alterou. Em 2016, sob a influência da gestão de Eduardo Cunha na Câmara dos Deputados, o protagonismo era do “segundo vetor”, direcionado à regulação moral. Já agora, após a intervenção federal no Rio de Janeiro e o assassinato da vereadora Marielle Franco, a terceira linha de força (securitária) ganhou preponderância. “A mudança foi na dosagem”, resume Almeida, em entrevista ao blog.
O fortalecimento de um dos vetores não significa que os demais perderam seu poder no jogo das relações políticas. Pelo contrário, para o pesquisador, trata-se de uma onda “quebrada”, por se constituir de diferentes linhas de força. Elas estariam dispostas em diferentes planos e seriam resultantes de processos diversos, porém, “na conjuntura atual, articularam-se em torno de um inimigo comum” (p. 191), representado pelo Partido dos Trabalhadores. Não sabemos, evidentemente, se essa onda alterará a sua composição em breve e que processos ganharão peso nessa mudança. Mas, sem dúvida, a leitura de Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos nos auxiliará na compreensão do fenômeno.
SERVIÇO
Título: Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos – Análises conjunturais
Organizadores: Ronaldo de Almeida e Rodrigo Toniol
ISBN: 978-85-268-1455-4
Edição: 1ª
Ano: 2018
Páginas: 200
Dimensões: 14 x 21 cm
Preço: R$ 50,00