Jornalista analisa impactos de vídeos que mostram o rompimento da barragem da Samarco
À primeira vista, o tempo é bom, a vegetação é verde, embora o ar pareça seco. Para quem tem alguma familiaridade com o interior de Minas Gerais nada pareceria fora do lugar. Exceto por um detalhe: quase no centro da imagem, como que dividindo onde termina o mato e começam as montanhas, há uma pequena nuvem de cor meio terrosa, como se alguém tivesse literalmente levantando poeira no horizonte. Aperte o “play”. O áudio é tão poderoso quanto a própria imagem, não só pelos gritos de quem ainda não assimilou o que está acontecendo, mas pelo som incômodo e difícil de identificar, como uma enxurrada, muito mais agudo, porém.
Relato algum seria capaz de descrever o que o arquivo “Vídeo inédito mostra desespero durante rompimento de barragem em Mariana” expõe durante pouco mais de seis minutos. O vídeo, registrado no início do que depois se descobriu ser o rompimento da barragem da Samarco, mostra pessoas subindo uma montanha para observar melhor o que tomava conta daquele pedaço de terra, entre gritos e incredulidade, com imagens muitas vezes tremidas e pouco esclarecedoras.
Captadas num momento muito específico e por um curto período, essas imagens são mero detalhe se comparadas com os efeitos que a tragédia ambiental continuou a produzir. Há, contudo, uma característica que dá a esses registros históricos outro status. Desde o rompimento da barragem, “Samarco” e “Desastre em Mariana” são termos de busca que caminham juntos. Em diferentes espaços digitais, em qualquer rede social, dificilmente poderão um dia ser dissociados do acontecimento do qual fala este livro. Não é de se estranhar, então, que somente esses dois tópicos façam surgir na rede social escolhida para este texto, o YouTube, cerca de cinquenta mil resultados.
Embora não seja a única rede que permite o compartilhamento de vídeos, o YouTube foi escolhido para esta análise com base em seu pioneirismo e abrangência, mas também pelo fato de ter se dedicado a esse formato desde a sua criação, sem nunca ter chegado a se expandir para outros tipos de conteúdo (que não sejam vídeos) de maneira consolidada. O primeiro vídeo a ser publicado por lá, em 23 de abril de 2005, traz um dos fundadores da empresa em frente a uma jaula de elefantes em um zoológico estadunidense e tem apenas 18 segundos de duração. A despeito de sua baixa qualidade e da irrelevância de seu conteúdo, “Me at the zoo” mostrava ao mundo que qualquer pessoa que tivesse à disposição um celular equipado com uma câmera de vídeo e acesso à Internet poderia comunicar em espaço aberto a sua mensagem usando recursos audiovisuais. A rápida ascensão do YouTube, adquirido pelo Google por cerca de US$ 1,65 bilhão no ano seguinte ao seu lançamento, também é explicada pela apropriação mais abrangente das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), que despertou – e continua a despertar – uma necessidade de reavaliação constante das teorias clássicas de comunicação.
Atualmente, este campo encontra-se num processo em que signos, discursos e instrumentos e dispositivos criam novas formas de socialização, gerando um novo ecossistema existencial. Há um rearranjo, de pessoas e coisas, e a comunicação é um dos elementos atuantes dessa nova forma organizativa, o principal deles (SODRÉ, 2014).
Para ilustrar essa capacidade de transformação, o professor Muniz Sodré (2014) cita a “metáfora das placas”, sendo o campo da comunicação um conjunto de placas tectônicas sob a superfície do comum. As placas são essenciais, mas se movem na medida que surgem novos elementos e questões na superfície, como uma ação de reflexo. Em A Ciência do Comum, o autor defende que essa transformação se dá pelo efeito da compressão do tempo no espaço através da tecnologia, que forma um novo continente, o de bytes, que permeia todos os outros.
Ainda cabe pontuar que a ideia de Sodré está diretamente ligada aos três pilares que Elizabeth Saad Corrêa (2015) defende como essenciais na discussão sobre comunicação na contemporaneidade digital: centralidade, transversalidade e resiliência. Em linhas gerais, como os próprios termos se autodefinem, trata-se de um caráter central do campo, em volta do qual outros subcampos do conhecimento estão orbitando, e da sua capacidade fluida e constante de adaptação e reconfiguração (SAAD, 2015).
Nesse sentido, é importante entender que as participações encontradas no YouTube sobre a tragédia ambiental de 2015 não são aleatórias. Elas, ao contrário, representam uma necessidade local (e global) de transmitir fatos como foram testemunhados. O que salta aos olhos em buscas pela plataforma, entre outras, são três categorias de vídeos complementares entre si: aqueles amadores, feitos geralmente por pessoas que moram na região; os documentais e jornalísticos, que não raro usam imagens do primeiro grupo para compor suas vídeo-reportagens; e os opinativos, uma mistura de diferentes materiais encontrados, mas geralmente apresentados por indivíduos que desejam expressar sua opinião sobre o fato, independente de conhecer a causa a fundo ou não.
“Segundo fontes oficiais...”
No cenário atual, o usuário é capaz de produzir, comentar, compartilhar, questionar ou desacreditar as notícias que chegam a ele (BRUNS, 2011). O discurso oficial, a versão das autoridades, as famosas notas à imprensa e o papel da própria imprensa na cobertura de acidentes dessa magnitude, portanto, surtem pouco efeito quando são confrontadas com vídeos que revelam outra realidade. Isso porque, atualmente, os papéis que jornalista e cidadão assumem são mais nebulosos e transversais, conforme explica Francisco B. Madureira (2010, p. 17): “O receptor torna-se também emissor, em uma estrutura de rede e de diálogo em que realmente ocorre a subversão das teorias da comunicação que, durante o século 20, debruçaram se sobre o fenômeno da mídia de massa. Estamos, portanto, diante de um fenômeno das chamadas mídias sociais e das práticas de UGC (User Generated Content, ou Conteúdo Gerado pelo Usuário)”.
Em outras palavras, é possível afirmar também que hoje, citando Axel Bruns (2011, p. 124), “os usuários encontram, compartilham, e (muitas vezes) comentam as informações e os eventos que têm valor como notícias; eles divulgam em vez de publicarem as matérias noticiosas”. Essa divulgação a que se refere Bruns pode ser entendida, entre outras ações, como o compartilhamento de eventos que sejam relevantes como notícia na ótica do usuário, mesmo que ainda não tenham necessariamente passado pelo crivo da mídia tradicional. Isso explica, por exemplo, porque o YouTube é capaz de, por si só, repercutir um assunto tão grandioso quanto o desastre ambiental de Mariana e arredores.
Distante cronologicamente do epicentro da tragédia, uma busca na plataforma de vídeos sem sair da primeira página de resultados traz sempre à tona no mínimo um vídeo de ações filantrópicas e supostamente humanistas da empresa. É comum que pesquisas que levem o nome da corporação retornem vídeos que tentam mudar a imagem que o acidente causou, como é o caso de “É sempre bom olhar para todos os lados – Samarco histórias”. Com apenas um minuto de duração, o conteúdo se resume a funcionários e moradores da região atingida reconhecendo a tragédia, mas relativizando a responsabilidade da Samarco. Curiosamente, os comentários para o vídeo em questão estão desativados.
Apesar desses esforços, a maioria dos vídeos publicados é repleta de críticas à corporação, embora nem sempre confiáveis. É comum, por exemplo, encontrar chamadas sobre “a tragédia que a mídia quer esconder”, “o que você não vê na TV” e similares que se apresentam como conteúdo exclusivo e inédito, mas muitas vezes não passam de registros de outros acidentes, em outras localidades, e que nada têm a ver com o assunto em questão. São frequentes, também, compilados de imagens reais que buscam dar conta da dimensão da tragédia; geralmente, são os mais acessados, como é o caso de “Vídeo incrível: enxurrada de lama destrói Mariana a barragem rompeu!”, que tem quase um milhão e meio de visualizações.
A profusão de todo esse material audiovisual só endossa o pensamento de comunicadores que vêm questionando conceitos como o gatekeeping, que baseava o processo de filtragem de notícias a partir de uma série de argumentos (o espaço disponível para a publicação do conteúdo, por exemplo) e mantinha o fluxo de publicação na mão de jornalistas e editores. Hoje, defende Axel Bruns, vivemos o que se aproximaria do gatewatching, uma espécie de curadoria das possíveis notícias disponíveis e de informações que circulam nas redes. É preciso, então, evitar colocar o usuário e a imprensa tradicional como adversários, tentando explorar possíveis pontos de conexão que existam entre os dois (BRUNS, 2011).
Nesse sentido, cabe questionar o valor-notícia de um vídeo “solto” que se espalha nas redes sem uma apuração rigorosa ou um trabalho profissional. Corre-se o risco de a informação se tornar uma não-notícia. Por outro lado, nunca é demais lembrar a foto da morte do presidente norte-americano John F. Kennedy, em 23 de novembro de 1966, um dos fatos (e consequentemente, uma das notícias) mais importantes da época, que foi registrado por um fotógrafo amador.
Por fim, talvez seja o caso de levantar a questão: a complementaridade entre usuário e mídia tradicional seria uma saída para esses tempos de crise paradigmática que vive o jornalismo contemporâneo? Há quem diga que sim: o compartilhamento maior entre os jornalistas formais e os usuários contribuintes daria aos primeiros melhores condições para o trabalho investigativo e o desenvolvimento de matérias originais. Fato é que a imprensa pode ter se mantido afastada da tragédia, ou não envolvida o suficiente, mas as vozes de quem estava lá não voltarão mais a ficar offline.
REFERÊNCIAS
BRUNS, Axel. Gatewatching: collaborative online news production. Nova York: Peter Lang Publishing, 2005.
______. Gatekeeping, gatewatching, realimentação tem tempo real: novos desafios para o Jornalismo. Brazilian Journalism Research, Brasília. v.7. n. 2, p. 119-140, dez. 2011.
CORRÊA, Elizabeth Saad. Centralidade, transversalidade e resiliência: reflexões sobre as três condições da contemporaneidade digital e a epistemologia da Comunicação. In: XIV CONGRESSO INTERNACIONAL IBERCOM. São Paulo, SP. 2015.
MADUREIRA, Francisco B. Cidadão-fonte ou cidadão-repórter? O engajamento do público no jornalismo colaborativo dos grandes portais brasileiros. 2010. 154 p. Dissertação (Mestre). Departamento de Jornalismo e Editoração / Escola de Comunicação e Artes /USP. São Paulo, 2010.
SODRÉ, Muniz. A Ciência do Comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Gabriel Cunha Vituri - Jornalista graduado pela Faculdade Cásper Líbero (2011). Mestrando em Divulgação Científica e Cultural pelo Labjor/IEL/Unicamp. Trabalhou nas redações de O Estado de São Paulo, MTV Brasil e Editora Abril.