Uma viagem poética de Fernando de Tacca pelas “imagens de um Brasil que se deita para o descanso nas redes”
O viajante entrou no navio Lobo D’Almada no porto de Manaus rumo a Belém, em viagem de descida do rio Amazonas por um período de 5 dias. Era jovem e pretendia conhecer o Brasil. Ficou fascinado pelas luzes do porto reluzindo nas águas quando o grande barco zarpou, e ali ficou um tempo de contemplação do que era para ele um país profundo que não conhecia até então. Ao virar seu corpo e seus olhos para o interior da terceira classe – neste navio, não havia uma segunda classe, indicativo da estratificação social –, lhe impactou o fato de que essa profundeza cultural lhe era tão distante quanto um emaranhado de cores tons pastéis. Pela pouca luz ambiente, se configurou um outro espaço, diferente do vazio no qual entrou. Eram as centenas de redes que haviam sido penduradas pelos passageiros para a longa viagem. Ele não tinha uma rede, e teve de percorrer pelo chão à procura de algum espaço próprio, e depois percebeu que os outros viajantes caminhavam entre ganchos e cordas abrindo ruas e avenidas para movimentação, engatinhar era ridículo. Uma velha senhora percebeu sua caótica situação e lhe ofereceu uma pequena rede emprestada, e ele buscou um lugar ainda disponível para estendê-la e sentir o vento que corria entre a pouca trama de sua rede, e entre a rede e o chão; uma cama ao vento.
Pouco tempo depois não se surpreendeu ao alugar uma rede em hotel no interior do Nordeste. Sua dificuldade maior foi compreender que as afetividades em espaços compartilhados se faziam possíveis e, aliadas ao vento, as redes propiciavam também uma ambientação sonora dos vizinhos desconhecidos. Percebeu que essa prática cultural estava presente no cotidiano das casas familiares.
Buscou então mais conhecimento sobre essas práticas que lhe pareciam distantes, exóticas, mas ao mesmo tempo, próximas. Entendeu a partir daí que a rede, mais do que culturalmente lhe haviam transmitido, não era somente adorno para varandas de casas em lugar de descanso, postura que foi adotada posteriormente pelas casas de senhorio, e até mesmo para as senhoras que esperavam suas visitas sentadas nas redes das varandas de suas belas casas. Já o sabia que a tecelagem indígena em toda dimensão dos muitos brasis de suas centenas de etnias, apropriava-se de fibras para transformação em artefatos utilitários, e as redes propiciavam a mobilidade necessária para a sobrevivência quando em processo de buscas de novos territórios de caça, pesca ou de novas terras produtivas. Também já o sabia que a disposição das mesmas nas grandes malocas, que agrupavam muitas famílias, eram regidas por normas e a todos isolavam do chão, por onde restos das fogueiras e suas cinzas se espalhavam na superfície. Tal qual o primeiro colonizador, este viajante apropriou-se da rede emprestada e pôde viajar, dormir em condições precárias no meio das caminhadas pela mata, e ao mesmo tempo, pôde dormir em varandas emprestadas, como muitos dos primeiros viajantes, pois era recebido e não necessitava entrar na vida privada do hospedeiro. Incorporando-se às práticas brasileiras, ao viajar nas gaiolas entre Pirapora e Juazeiro, pelo rio São Francisco, tempos depois, o rapaz já tinha então sua própria rede e procurou um lugar perto da fornalha para enfrentar o frio noturno.
A rede indígena, de descanso noturno, e lugar de afetividades e sensualidades, também foi lugar da proscrição, um desterro em suas próprias terras, perante a impotência frente à selvagem ação civilizadora. Darcy Ribeiro (1995), ao lembrar as memórias desses primeiros tempos, pois iludidos pelos viajantes que chegavam com seus trajes e ferramentas, e impunham uma nova ordem moral, religiosa e econômica, os povos nativos logo se tornaram mercadorias cativas desses viajantes, e a negação de seu futuro na Terra sem Males encontrou seu mundo opositor, e deitados nas redes morriam inertes de tristeza. À beleza da trama das fibras pelos teares rudimentares, que muitas vezes, em ritos funerários, envolviam o defunto em primeira sepultura, impregnou-se da morte por antecipação; a impotência contra o colonizador.
A cama ao vento se desloca da maloca e da casa de caça dos nativos para ser incorporado às práticas do pobre mameluco ou do índio, carregadores de cargas das novas terras, que sem cavalo, como os espanhóis, marcava seus pés na trilha das matas para levar também doentes e mortos em redes, além de transportar seus senhores e suas damas, ou seus filhos, nos deslocamentos entre propriedades e a cidade. Sérgio Buarque de Holanda afirma que o uso das redes no período colonial está diretamente vinculado à própria mobilidade da população da época.
Passou a ser prática espalhada para todo o Brasil, além da possibilidade de em muitos lugares isolados poderem ser tecidas in situ, como o fizeram os paulistas no início da ocupação, muito afinados às práticas indígenas. Uma vantagem clara em relação aos móveis pesados era sua possibilidade de mudar um ambiente e torná-lo outro ao enrolar as redes, propiciando também deslocar funcionalidades espaciais. Para as casas senhoriais, as redes complementavam a extensão da varanda para o jardim e o quintal, e assim fora incorporada sua funcionalidade para as casas do Sul. Entretanto, muitos relatos de casas de famílias abastadas no interior do Brasil se baseavam em deslocamentos espaciais propiciadas pelas redes. Essa prática é ainda corrente no interior do Nordeste e principalmente no Norte do Brasil, na qual os espaços das redes são também lugares da convivência social e familiar, como historicamente se fez a relação objeto-espaço, uma sala se converte em quarto de dormir. Uma forte indústria se consolidou principalmente nos Estados do Ceará e de Pernambuco, principalmente pela associação da rede à ideia de lazer e de descanso, incorporada na imagem do jovem vendedor de redes, dispostas aos montes e pesadas em seus ombros, pelas praias brasileiras. Continuam a carregar redes, agora vazias, à venda, para seu sustento diário.
Se nosso anti-herói andradeano, Macunaíma, adorava sua rede para espreguiçar e dali estender o personagem “sem caráter” em contradição com uma sociedade moralista, para construção de uma visão de outro Brasil os ventos de sua cama foram importantes para sua preguiça alógica. A rede indígena se transformou em lugar de confrontação com o tradicional e com o correto, assim, de certa forma, podemos entender o novo lugar que a rede pode ocupar como lugar de ócio, sem culpa, em tempos atuais, em alguns espaços domésticos brasileiros. Leila Meza Algranti (2018), em seu texto sobre as relações sobre a vida doméstica no âmbito familiar no período colonial, indica, entretanto que a imagem da preguiça foi generalizada e ainda muito forte no imaginário, principalmente quando nos remetemos ao índio e suas redes, mas também, quando os senhores eram abanados por escravos e mucamas.
Quando nós nos voltamos para a história da fotografia brasileira, sem dúvidas, as poucas e marcantes fotos realizadas pelo Major Luiz Thomaz Reis em espaços internos de casas indígenas, pelas próprias dificuldades técnicas de então (começo do século XX), são um marco para pensarmos na ideia do ir e vir do balanço da rede. As jovens indígenas da etnia Arití estão descontraídas ao olhar do fotógrafo e se mostram felizes e interativas, fazendo transparecer uma relação de proximidade e cumplicidade entre elas e o homem que as registra/imortaliza através da câmera, o que irá destoar dos retratos posados de até então; uma sensibilidade etnográfica, e assim, se aproximar também com o uso cotidiano do objeto, e não somente como um elemento a mais para compor o retrato. A ideia de uma rede no cotidiano indígena nos revela então um bem-estar do embalo, uma afetividade das jovens para além do imobilismo dos retratos pensados como inventários culturais. Dentro da imagética da Comissão Rondon, Reis procura nos mostrar um índio ainda original e tradicional, sem influências externas, em plenitude étnica. Nas cenas finais de seu filme sobre a expedição de exploração do rio Ronuro - filmado em 1924, e editado dentro do programa cinematográfico Ao Redor do Brasil (1932), Reis está cercado por dezenas de indígenas em suas redes dispostas em harmonia com a mata.
Um lugar de deslocamento das ações cotidianas, lugar de espera, qualquer que seja, onde o tempo passa pacientemente através dos ventos no entorno da rede, é sintetizado dentro de uma cultura visual no Brasil nas imagens do exílio interno de Getúlio Vargas em sua cidade São Borja, quando foi destituído do poder depois do fim da II Guerra Mundial, em fotografias de Pedro Flores. O descanso do político gaúcho na rede de uma varanda é sua paciente estratégia para seu outro momento histórico, quando volta logo em seguida ao poder pelo voto popular. De bombachas e com seu tradicional chimarrão, o ex-ditador coloca a política nacional em compasso de espera em uma imagem síntese do período. Muitas imagens podem fazer parte dessa cultura visual, são inúmeras e reportam situações muito diferenciadas em seu contexto social, demonstrando a pertinência de um elemento cultural no cotidiano do povo brasileiro.
Para além do etnográfico e do documental direto, a percepção das luzes nas fotos de Maureen Bisilliat, balanceiam o jogo luminoso entre o claro e o escuro, quando as redes flutuam entre espaços das malocas e o corpo, nos parece como um elemento intrínseco às redes, um ser singular e único, ou então nas casas sertanejas como lugar do convívio social contínuo aos primeiros tempos. Ou então, as cores saturadas de Luiz Braga, exploram o pictórico do objeto e de seu contexto, como uma rede existência qual uma escultura curvilínea suspensa, ou quando as redes reorganizam os vazios em multiplicidade cromática, são visões para além da mera documentação, ampliando as fronteiras fotográficas.
A criação artística em Claúdia Andujar e Alexandre Sequeira, irão deslocar o objeto, seja pela montagem fotográfica, ou pela impressão dos retratos no próprio objeto; são situações contemporâneas que colocam a rede dentro de uma nova visualidade. Alexandre Sequeira propõe um encontro do objeto, da pessoa, da casa e de seu entorno, e do próprio artista, em imagens impregnadas do saber da cultura popular. Em sua obra, o artista propõe o diálogo sensitivo para a criação poética com seus colaboradores nativos, e entre os tecidos do cotidiano, das toalhas, lençóis, cortinas, e as redes que incorporam magicamente os corpos que os habitam, enrolam e embalam. O retrato, então, muda de lugar, e o suporte passa a ser o doméstico, em seu entorno. Artista, retratado e obra são hibridizados em processo criativo; desaparece a separação entre o exógeno e o endógeno.
Cláudia Andujar manipula as imagens, no melhor sentido, para se aproximar do mundo mágico dos Ianomâmis, criando assim uma forma de etnografia do sensível, como uma etnopoética da imagem (Brandão, 2004). Seu trabalho é um exemplo de obra fotográfica diferenciada, que abre caminhos para um campo situado entre as artes visuais e o etnográfico. Não temos somente a brutalidade do contato, mas principalmente as luzes como elementos de vida. Em sua obra fotográfica as redes perpassam a casa, a floresta e o invisível, como ela mesma ordena esses lugares. Na floresta, a identidade direta com o mundo visível da mata e seus elementos orgânicos; na casa, suas luzes que penetram palhas e iluminam a vida doméstica, e o invisível das luzes cintilantes dos pajés e do momento de espera da presença do sobrenatural. Suas imagens quebram lógicas positivistas do documento fotográfico e nos permitem aproximar do transe, alimentado pela organicidade da mata, e do encantamento das luzes dos espíritos, e assim, nos propõem uma compreensão do outro pela magicização do documento.
As imagens de um Brasil que se deita para o descanso nas redes, uma espera de um porvir, de um jogo lúdico de crianças, ou somente para o deleite da alma quando o tempo sopra pelas bordas da trama, realizadas por muitos fotógrafos e fotógrafas, assim como cineastas, configuram uma fronteira muito alargada entre os documentos etnográficos, históricos e domésticos, e cristalizam afirmações identitárias desse modo de ser e estar.
SERVIÇO
Exposição VAIVÉM.
Com curadoria de Raphael Fonseca, a mostra reúne cerca de 300 obras de coleções públicas e privadas, algumas especialmente criadas para o projeto.
Local: Centro Cultural Banco do Brasil - São Paulo
Quando: de 22/05 a 29/07/2019
Informações: culturabancodobrasil.com.br/portal/vaivem/
Referências Bibliográficas
Algranti, Leila Meza. Famílias e vida doméstica. IN História da Vida Privada no Brasil, Fernando Adauto Novais & Laura Mello e de Souza (org.), Volume I, São Paulo:Companhia das Letras, 2018.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Fotografar, documentar, dizer com a imagem. In Cadernos de Antropologia e Imagem, UERJ, 2004.
Buarque de Holanda, Sérgio. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia da Letras, 1994.
Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro - A formação e o sentido do Brasil. São Paulo:Companhia das Letras, 1995.
Tacca, Fernando C de. A imagética da Comissão Rondon. Campinas: Papirus, 1999.
Fotografia: intertextualidades entre ciência, arte e antropologia. IN: Entre Arte e Ciência - A fotografia na Antropologia. Sylvia Cauiby Novaes (org.), São Paulo:EDUSP, 2015.