Texto lembra que “o esquecimento da tragédia, que poderia representar alívio, só acontecerá no futuro”
A “memória” é um conceito que já foi abordado por inúmeros autores e por meio de uma gama diversificada de vieses e referenciais teóricos. Podemos defini-la no seu aspecto neurofisiológico, ou numa das variadas abordagens psicanalíticas, como também é possível encará-la como um fenômeno social – de expressão tanto individual quanto coletiva. Esta faculdade humana, que pode ser entendida como a capacidade de conservar certas informações, possui consequências que extrapolam muito os seus próprios conceitos.
Como veremos, ela exerce influência sobre a história (da sociedade e de cada indivíduo), a política, a linguagem, a cultura e a construção da identidade de um espaço urbano. Podemos dizer ainda que a memória é um dos elementos que nos caracteriza como seres humanos. Portanto, o estudo do seu conceito, embora apenas introdutório, torna-se imprescindível para o tema deste capítulo.
No início do século XX, o sociólogo Maurice Halbwachs trouxe uma importante ruptura com a ideia que se tinha até então de memória. Acreditava-se que o indivíduo era o único responsável pelo resgate de seu próprio passado, ou seja, que a memória era regida exclusivamente por leis biológicas. Os trabalhos de Halbwachs foram pioneiros, pois trouxeram ao estudo da memória, o fator social, mostrando a existência de uma relação íntima entre o individual e o coletivo.
Quando nos recordamos de algum acontecimento, fazemos o uso da nossa memória. A impressão mais intuitiva ao fazer este exercício é que, aquilo que estou recordando faz parte da “minha memória”, ou seja, “pertence a mim”, “nasceu das minhas observações” e “perecerá comigo”. O que precisa ser observado é que boa parte das lembranças de um indivíduo é relativa a momentos compartilhados com outros, seja no ambiente familiar, no trabalho, na escola, ou, numa escala maior, em um bairro, cidade, ou até país.
Dessa forma, pode-se dizer, em consonância com Halbwachs, que a memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Se boa parte das lembranças que temos é relativa a momentos em que a memória é compartilhada, ainda existe uma parcela de momentos que foram vivenciados por uma pessoa somente. Até mesmo esses momentos individuais possuem relações com o coletivo?
Ora, qualquer ser humano é resultado, também, das interações sociais que experimentou; além disso, a nossa memória individual ancora-se em diversos pontos de referência como sons, paisagens, sentimentos, elementos do espaço que se encontra, entre outros. Assim, mesmo que uma lembrança individual não envolva diretamente nenhuma outra pessoa, ela necessariamente se insere no mesmo espaço que o das lembranças de várias outras pessoas. “arquivada” pelos seus recursos mentais que se constituíram, também, de maneira social e pode se materializar através da linguagem, que é, novamente, uma construção social.
A partir da compreensão da memória individual, o próximo passo é estabelecer o que é a memória coletiva, a que ela se refere. Quando há uma lembrança que foi vivida por uma pessoa – ou repassada para ela – e que diz respeito a uma comunidade, ou grupo, essa lembrança vai se tornando um patrimônio daquela comunidade. As informações mais relevantes dessas lembranças vão sendo repassadas de pessoa a pessoa e vão constituindo a história oral de um determinado lugar, ou grupo. Essa memória coletiva, geralmente tenderá a idealizar o passado e, na maioria das vezes, estará vinculada a um acontecimento pontual, que será considerado o de máxima relevância.
Todo o restante, que envolve aquele acontecimento, é fadado ao esquecimento, ou a um constante processo de atualização. Vemos esse fenômeno aparecendo também nos estudos de Freud, quando a memória passou a ser compreendida como uma capacidade psíquica seletiva. Assim, esse processo de esquecimento também faz parte da construção da memória coletiva de uma comunidade. Como apontado por Olga Von Simson, a memória coletiva:
É formada por fatos e aspectos julgados importantes e que são guardados como a memória oficial da sociedade mais ampla. Se expressa no que chamamos de lugares da memória. Eles são os memoriais, os monumentos mais importantes, os hinos oficiais, quadros célebres, obras literárias e artísticas que expressam a versão consolidada de um passado coletivo de uma dada sociedade (VON SIMSON, 2003).
Com essa definição, também fica evidente um elemento importante para a memória coletiva: os lugares de memória. Esse conceito surge em meados do século XX com o historiador francês Pierre Nora. Simplificadamente, podemos compreender o “lugar de memória” a partir de três características que a constituem: o lugar de memória é material, físico, como museus, arquivos, cemitérios, coleções, comemorações, tratados, monumentos, santuários, associações, jornais, etc.; é funcional, pois garante, ao menos por hipótese, a cristalização da lembrança e, consequentemente, sua transmissão; e é simbólica, já que remete a um acontecimento vivido por um grupo minoritário de pessoas, que muitas vezes já nem estão vivas, e, ainda assim, traz uma representação para uma maioria que não participou do acontecimento.
A existência dos lugares de memória, e os constantes esforços pela sua perenidade, é um reflexo da possibilidade do esquecimento. Como ressalta Nora, “se o que [os lugares de memória] defendem não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que envolvem, eles seriam inúteis” (NORA, 1993, p. 13).
Dessa maneira, compreendemos que há uma memória coletiva. Ela representa um repositório abstrato de informações referentes a uma comunidade, se constitui a partir de memórias individuais, se expressa materialmente, ancora-se nos lugares de memória e tem como caminho espontâneo o seu desaparecimento.
Definidos esses conceitos, tornam-se mais claras as implicações de uma tragédia que devastou uma cidade inteira. O desastre de Mariana provocou a extinção de incontáveis lugares de memória da cidade, deixando todas as lembranças comuns daquela comunidade ancoradas apenas nas mentes dos moradores, que vão caminhando paulatinamente para o esquecimento. Como se não fosse o suficiente, a destruição ainda ergueu novos lugares de memória.
Ao olhar para o rio e ver somente lama, ao olhar para as ruas e vê-las destruídas, ao olhar para um porta-retrato e ver o familiar falecido, os marianenses são constantemente lembrados daquilo que desejariam muito apagar da memória. Nesse caso, o esquecimento da tragédia, que poderia representar alívio, só acontecerá algumas gerações no futuro, quando os atuais lugares de memória da destruição tiverem se dissipado.
Como reflexões finais, nós nos perguntamos: qual tem sido a contribuição da mídia neste processo? Ela tem ajudado a resgatar as lembranças dos moradores de Mariana, dando voz às vítimas? Como isso afeta aqueles que estão a quilômetros de distância dessas pessoas?
REFERÊNCIAS
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2013.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von. A Construção de Narrativas Orais Sugeridas e Incentivadas pela Visualidade. Ensaio.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von. Memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento: o exemplo do Centro de Memória da Unicamp. Disponível em: <http://www.lite.fe.unicamp.br/revista/vonsimson.html>. Acesso em: 06 jun. 2016.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes. Memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento. Augusto Guzzo Revista Acadêmica, São Paulo, n. 6, p. 14-18, mai. 2003. ISSN 2316-3852. Disponível em: <http://www.fics.edu.br/index.>. Acesso em: 06 jun. 2016.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von: O samba paulista e suas histórias: textos, depoimentos orais, músicas e imagens na reconstrução da trajetória de uma manifestação da cultura popular paulista. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8645648>. Acesso em: 04 jun. 2016.
Lucas Mascarenhas de Miranda - Graduado em Física e Ciências Exatas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestrando em Divulgação Científica e Cultural no Labjor/IEL/Unicamp. Cinegrafista, editor e tradutor na TV Nupes (canal de divulgação científica da Faculdade de Medicina da UFJF). Autor do blog Ciência Nerd (ISSN: 2526-608X) e professor de física. Tem pesquisas nas áreas de história e filosofia da ciência, relação histórica entre ciência e religião, percepção pública da ciência, análise de discurso, educação científica e cinema, formação de professores, escolas democráticas e brinquedos científicos.