Imagem fundo branco com escrita a esquerda "Vozes e silenciamentos em Mariana. Crime ou desastre ambiental?", no lado direito mapa com a extensão do desastre.

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Memória capenga: na grande imprensa, a falta de voz das vítimas

Análise de matérias publicadas por site revela que atingidos tiveram pouco espaço

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A imprensa cumpre papel fundamental na construção de memórias. Mas, para que a história de Bento Rodrigues e do desabamento da barragem do Fundão seja contada de forma mais próxima possível da realidade, seria preciso entrevistar todas as pessoas que de alguma forma tenham sido afetadas – ou ao menos parte delas – para que o registro não seja simplesmente o “oficial”, vindo dos governos e da Samarco. A empresa, de propriedade dividida entre duas gigantes, a Vale e a BHP, teve muito mais chance de registrar sua versão dos fatos do que as vítimas da tragédia. Os trabalhos de assessoria de imprensa, recuperação de imagem e gerenciamento de crise foram muito bem realizados, em detrimento da presença de quem não tem influência social e econômica para aparecer nos principais veículos.

É verdade que o assunto permanece “quente” na grande mídia, mas as notícias publicadas sobre Mariana, Bento Rodrigues ou Samarco sempre dão à empresa a oportunidade do “outro lado”. Uma obrigação jornalística, é verdade, mas a questão que fica: qual seria então o “lado um”? E o quanto esse lado tem a chance de ter voz e se ver na imprensa?

O jornalista e pesquisador Edvaldo Pereira Lima defende que a humanização das matérias é fundamental para que uma história seja bem contada. Para isso, o foco das reportagens deve estar nos personagens.

Contar histórias reais envolve necessariamente colocar o ser humano em primeiro plano. (...) Toda boa narrativa do real só se justifica se nela encontramos protagonistas e personagens humanos tratados com o devido cuidado, com a extensão necessária e a lucidez equilibrada onde nem os endeusamos nem os vilipendiamos. Queremos antes de tudo descobrir o nosso semelhante em sua dimensão humana real, com suas virtudes, e fraquezas, grandezas e limitações. Precisamos lançar um olhar de identificação e projeção humana da nossa própria condição nos nossos semelhantes, sejam celebridades ou pessoas do cotidiano. (LIMA, 2009, p. 358).

Embora as ideias de Lima (2009) sejam voltadas para a produção de livros-reportagens, o que se espera é que esta preocupação também exista da parte dos repórteres no jornalismo diário, especialmente no caso de reportagens especiais e em assuntos de grande repercussão. No caso da tragédia do Fundão, pouco se escutou as vítimas: moradores de Bento Rodrigues, parentes dos 19 mortos na tragédia, pescadores afetados pela morte do Rio Doce ao lado de toda sua extensão.

Aqui analisamos reportagens publicadas pelo site G1. A escolha da internet como objeto desta análise foi pela disponibilização das notícias a qualquer momento. Sendo assim, o acervo será talvez mais útil na construção de uma memória definitiva do que um jornal impresso que pode se perder ou se desfazer com a passagem do tempo.

As reportagens foram procuradas na seção “Desastre ambiental em Mariana”, que reúne textos produzidos por equipes do portal espalhadas por Belo Horizonte, interior de Minas Gerais e no Espírito Santo. As reportagens selecionadas foram separadas por dois recortes:

1. Temporal: como ponto de partida no tempo, escolheu-se o dia 5 de fevereiro de 2016, data em que a tragédia de 5 de novembro de 2015 completou três meses, tempo mais do que suficiente para que uma notícia deixe de ser considerada “quente”;

2. Temático: as matérias deveriam ter no título ou linha fina alguma referência a indenizações em dinheiro ou a qualquer tipo de compensação entregue a moradores atingidos pela queda das barragens, tanto os habitantes de Bento Rodrigues quanto os moradores do Espírito Santo prejudicados pela “morte” do Rio Doce.

Ao todo, foram mapeadas e lidas 55 reportagens. Destas, 23 tinham algum tipo de voz dada às vítimas, enquanto 31 se limitavam a registros burocráticos e a manifestações da Samarco sobre o tema, o popular “outro lado” nem sempre cumprido à risca pelos meios de comunicação – mas que, neste caso, aparece em 100% das análises. Uma das matérias foi avaliada como imprecisa por não identificar com exatidão a pessoa que faz a declaração em nome das vítimas.


Quem fala por quem?

Essa reportagem considerada imprecisa foi publicada em 29 de junho de 2016 com o título “Comunidades afetadas pela lama no Rio Doce pedem abertura de CPI”. Ela registra em 4.164 caracteres uma audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Espírito Santo a pedido de um certo Fórum Capixaba em Defesa do Rio Doce, que “conta com a participação de representantes da Samarco e Vale, do Governo do Espírito Santo, do Ministério Público e da Defensoria Pública Estadual”. Em nome dessa entidade fala um “integrante”, Vitor César Zille Noronha, a única pessoa ouvida sobre o tema pelo repórter. Noronha questiona:

O Legislativo não se propôs a escutar os atingidos. Por outro lado, já realizou audiências públicas para defender os interesses da Samarco, como o retorno das atividades da empresa. É fundamental que seja dada voz aos atingidos para mostrarem como o crime socioambiental impactou suas vidas.

Só que a própria reportagem não informa se ele é um morador atingido ou se é apenas um colaborador ou funcionário de repartição pública. Suas declarações, somadas, ocupam cerca de 1.000 caracteres. A parte final do texto, com quatro parágrafos e 1.367 toques, é dedicada ao “outro lado” e praticamente reproduz um release da Samarco.

Em 9 de março, o Corpo de Bombeiros localizou o corpo da 18ª vítima do rompimento da barragem. Ailton Martins dos Santos, de 55 anos, era funcionário de uma terceirizada da Samarco e morreu soterrado pela lama. Seu corpo foi encontrado dentro de um caminhão-pipa. Em reportagem publicada no dia seguinte, o G1 ouviu seu filho, Emerson, e publicou uma frase, de exatos 92 caracteres, contando espaços, o ponto final e as aspas: “É uma sensação de alívio. Agora a gente vai poder fazer um enterro digno, como ele merece.” O tema já tinha rendido outros dois textos factuais, no encontro do corpo e na identificação. O texto que é aberto com a declaração de alívio do filho da vítima não traz nenhuma informação em tom de perfil sobre Ailton, a família ou qualquer outro assunto relacionado.

Esse tema, o perfil das vítimas, é retratado numa página fixa produzida pelo portal, que aparece como link em todas as páginas que abordam o assunto. Cada uma das pessoas mortas na tragédia tem dedicadas a si uma foto e um breve parágrafo, com falas de algum parente geralmente tiradas de entrevistas feitas logo após o acidente. As dez primeiras têm ainda links que levam a matérias específicas de quando os corpos foram encontrados ou reconhecidos pelos familiares – de onde sai a declaração do “textão”.


Efemérides

No dia 5 de junho, quando se completaram seis meses da tragédia, o G1 enfim deu voz às vítimas em reportagens produzidas especialmente por sua equipe. O portal publicou, em três horários diferentes, reportagens a respeito do passado, presente e futuro de Bento Rodrigues.

A primeira, publicada às 5h, trouxe fotos apresentadas por Francisco de Paula Felipe, um operário de 47 anos que morou em Bento Rodrigues por mais de três décadas e é genro de uma das pessoas mortas pelo acidente, Maria das Graças Celestino Silva. O texto conta como a mulher de Francisco, Marli, escapou da morte por recusar um convite da mãe para ir até a casa dela, e apresenta as lembranças do morador, como o campo de futebol. Outros moradores do distrito soterrados pela lama contam suas histórias e o leitor pode, enfim, se sentir próximo do drama vivido pela comunidade.

A matéria que enfoca o “presente” tem viés mais econômico, falando não só dos moradores de Bento, mas do impacto causado pela queda da barragem em toda Mariana, cidade economicamente dependente da Samarco. Falam um morador, que trabalha como guia turístico, o presidente de uma associação de hotéis e um secretário municipal. A terceira reportagem aborda o “futuro” sob o olhar do patrimônio histórico da região e de como o trabalho de prevenção nas barragens deve ser aliado à preservação da memória. Quem fala? Um promotor e a presidente do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico. A memória de Bento Rodrigues ficou restrita a uma mera reportagem, sem a participação dos principais atingidos pela tragédia.

No dia 7 de maio, o texto “Moradores escolhem neste sábado onde será novo Bento Rodrigues”, publicado pela manhã, usa pouco mais de 3 mil caracteres para apresentar as opções que os moradores do vilarejo destruído pela lama terão para a reconstrução de suas casas. Nenhuma declaração é atribuída a eles no texto, apesar do registro feito pela repórter de “moradores com que o G1 conversou nesta semana”. A única voz presente é do funcionário da Samarco Alexandre Pimenta, apresentado como “líder de reconstrução das comunidades”. No mesmo dia, a reportagem “Terreno onde será construído novo Bento Rodrigues é definido” é publicada no fim da tarde com o resultado da votação: o povo escolheu a área conhecida como “Lavoura”, a nove quilômetros da localização do distrito destruído.

Um morador é ouvido: Francisco de Paula Felipe, um dos que havia dado depoimento na reportagem de dois dias antes. “Eu acho que é um lugar que tem como a documentação sair mais rápido. É uma área onde eu já trabalhei, a maioria das pessoas do Bento já conhece, só os mais jovens que conheceram agora”, diz ele, segundo a repórter. Na matéria falam ainda um promotor de Justiça e Alexandre Pimenta, em repetição de declaração usada na reportagem anterior.

Em 25 de junho, num caso semelhante, a escolha feita pelos moradores de Gesteira, distrito do município de Barra Longa, vizinho de Mariana, que também foi atingido pela lama da barragem e será reconstruído, não mereceu declarações das vítimas. Houve duas reportagens, uma publicada às 6h para anunciar que os moradores fariam a votação, e outra às 16h com o resultado, a opção dos moradores por uma área de sete hectares. Até mesmo a imagem que ilustra a segunda matéria é enviada pela assessoria de imprensa da Samarco. Para ouvir a voz dos moradores é preciso clicar no vídeo que está inserido no texto e reproduz reportagem feita no local pela TV Globo Minas.


Quem recebe fala?

Em 8 de junho, uma reportagem com o título “Samarco é condenada a pagar R$ 50 mil em indenizações em Colatina” informa que a empresa deverá pagar R$ 2 mil a 25 pessoas que venceram ações cíveis na cidade capixaba banhada pelo Rio Doce. “A empresa disse ainda que vai recorrer dessas decisões, pois entende que as condenações não são devidas”, diz o texto em referência à posição informada pela assessoria de imprensa da empresa. Os moradores beneficiados pela decisão judicial não foram sequer ouvidos desta vez – saber se o dinheiro será suficiente ou mesmo como os moradores o usarão parece não ter importância.

Até mesmo uma reportagem mais humanizada parece mais atender aos interesses empresariais e de reconstrução da imagem da Samarco do que ao objetivo de contar e criar identificação entre leitores e personagens. Começa já pelo título do texto: “De 3 mil pescadores afetados por lama no ES, 2 mil recebem auxílio”. Essa manchete pode até deixar a impressão de que mil pessoas estão sem auxílio, mas o próprio uso do termo “auxílio” apresenta uma voz que pode ser interpretada como “a empresa não está deixando os pescadores na mão”.

O texto começa com o depoimento de Zé Sabino, um desses 3 mil pescadores que viviam dos peixes do Rio Doce e que hoje vivem com a compensação paga pela mineradora – um salário mínimo mais 20% de acréscimo por dependente. O valor é bem menor do que os R$ 4 mil citados como rendimento por outro pescador, Valdomiro de Jesus. Ao fim da matéria, a Samarco aparece novamente com o “outro lado”. São três parágrafos para explicar, inclusive, que alguns dos pescadores não se encaixam nos critérios para receber o benefício – critérios esses que não são explicados no texto. Ao leitor, resta pesquisar ainda mais. Não será nessa reportagem que ele poderá entrar totalmente na pele do personagem. Mais uma contribuição para a construção de uma memória parcial, e que deixa a imprensa ficar longe de cumprir seu papel histórico.

 


REFERÊNCIAS

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo. 4. ed. São Paulo: Ed. Manole, 2009.
 

G1. Famílias de Gesteira escolhem local onde casas serão reconstruídas. Acesso em 1/7/2016.
 

G1. Moradores de Gesteira decidem pelo maior terreno para reconstruçãoAcesso em 1/7/2016.
 

G1. Samarco é condenada a pagar R$ 50 mil em indenizações em Colatina. Acessada em 1/7/2016.
 

G1. Veja lista de mortos e desaparecidos no rompimento de barragem em MGAcessada em 01/07/2016.

 


 

Fernando Cesarotti - Jornalista graduado pela Unesp Bauru. Especialização em Jornalismo Literário. Atua há 15 anos na imprensa paulista, em veículos como O Estado de S. Paulo, R7, GloboEsporte.com e G1, especialmente nas editorias de Esporte e Cidades. Professor universitário no Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio, em Salto (SP). É blogueiro no ESPN FC.

 

Imagem de capa JU-online
Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, Minas Gerais. Imagem de julho de 2016 | Foto: Felipe Werneck/Ibama

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