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‘Quero ser bonito’ e o point político da beleza

Os registros feitos em salões pelo fotógrafo Juan Pratgniestós são o tema de artigo de Susana Dobal

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Ao tratar da busca pela beleza em salões populares, o ensaio “Quero ser bonito” do fotógrafo catalão Juan Pratginestós demonstra como a fotografia participa da ideia de beleza tão relativa e difusa na vida cotidiana, ao mesmo tempo em que suscita uma reflexão sobre a beleza em si como um valor.

Juan Pratginestós fez carreira como fotojornalista free-lancer trabalhando para clientes como o Green Peace, o WWF, o Ministério do Turismo, o Ibama, a Embratur, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Nas andanças pelo interior do Brasil e pela América do Sul, registrou por conta própria um assunto do seu interesse entre uma pauta e outra: salões de beleza populares. O fotógrafo é conhecido pela sua atuação em Brasília onde chegou na década de 60, vindo de Barcelona. Conhecia o seu trabalho principalmente por um ensaio fotográfico em que vemos pessoas serenamente iluminadas dentro dos ônibus na rodoviária de Brasília – um espaço caótico e tumultuado, onde o fotógrafo em tempos idos soube aproveitar a luz inclinada do final da tarde atravessando as janelas em trânsito para revelar rostos iluminados. Havia uma dissonância entre aquele espaço tão ruidoso e o semblante calmo das pessoas envoltas em uma luz amarelada. Já naquela época, Juan Pratginestós extraiu beleza de uma situação onde em geral só se vê gente apressada, vendedores, pedintes, filas, cobradores, camelôs e muitos ônibus barulhentos chegando e partindo. Aquelas fotos tinham um silêncio gritante e cúmplice no meio do tumulto.

Os anos passam, e em Pirenópolis (GO), uma amiga chama para conhecer um restaurante excelente que tinha, entre outras iguarias, o melhor carpaccio do Centro-Oeste e também de São Paulo, como os conhecidos depois diriam. O Restaurante Montserrat onde fomos era chefiado por ninguém menos do que Juan Pratginestós. Conversa vai, conversa vem, e surgem à mesa as fotos dos salões de beleza em uma tela passando de mão em mão. Havia algo em comum entre as fotografias dos salões populares e aquele antigo ensaio “Janelas que passam” que para mim identificava o fotógrafo até então sem rosto: a beleza dissonante em cenários às vezes caóticos, mas ironicamente belos. A fotografia sempre esteve atrelada à beleza, embora não exclusivamente, e embora não necessariamente a uma beleza evidente ou fácil. Os salões colecionados aqui e ali falavam de como a fotografia documental, a partir de uma caça aparentemente desinteressada, permitiu a prática de uma antropologia informal do Belo. Não há aqui a objetividade buscada pela ciência, mas existem parâmetros que regem o olhar que vai colecionando barbeiros, cabeleireiros e cabeleireiras, seus clientes e a decoração em volta, para tentar aos poucos desvendar o fenômeno da busca pela Beleza. Estranhamente, esse exercício de ver reúne ironia e cumplicidade.

 Foto: Juan Pratgniestós
Fig.01 - Aula de maquiagem, Goiás Velho, GO | Foto: Juan Pratginestós.

A primeira constatação é de que se trata de um ritual em princípio feminino (fig.01). Às mulheres coube o peso e o deleite da busca da beleza; uma imposição social e um divertido aprendizado, como vemos em uma das fotografias. Tão forte é a associação da busca da beleza do corpo e dos cabelos sobretudo na mulher, que quando pensamos na presença masculina no universo dos cabeleireiros, logo vem à mente que o homem será gay, embora a maioria dos barbeiros não o seja. Algumas fotos nos lembram disso, mas lembram também que assim como as emoções masculinas são em geral abafadas, a busca da Beleza é apenas dissimulada entre os homens, já que manter a barba aparada e a cabeça quase raspada pode ser tarefa que exige bastante dedicação e alguma cumplicidade entre os sensuais camaradas (fig. 02).

Foto: Juan Pratgniestós ​
Fig.02 - Salvador, BA | Foto: Juan Pratginestós

Longe de ser um sintoma de futilidade, os homens afeminados dos salões de outras fotos do ensaio lembram que a delicadeza, em vez da força como moeda de troca com o mundo, traz uma maneira graciosa e, porque não, sábia de existir. Mesmo parados, eles já dizem isso e, quando flagrados em movimento, lembram que a alegria é a arte de esquecer todo do resto (fig. 3 e fig. 4). Porém, sem alguma graciosidade no olhar, já flagrada no ensaio da rodoviária, aquilo que a fotografia pode oferecer não seria revelado: olhar e ver; ver e guardar; guardar e compartilhar; compartilhar pra celebrar. Não por acaso víamos as fotos do ensaio enquanto saboreávamos uma conversa animada e um delicioso jantar.

Foto: Juan Pratgniestós
Fig.03 - Islândia, Peru | Foto: Juan Pratginestós
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Fig. 04 - Benjamin Constant, AM | Foto: Juan Pratginestós

A noção da beleza como ritual coletivo amplia-se para além dos corpos presentes, pois ir ao salão implica rodear-se da presença de outros também presentes em fotografias que celebram a beleza. É assim que Marilyn Monroe faz rima com uma penca de belos rapazes igualmente estampados na parede com flores artificiais em volta, em Tabatinga (Amazonas), ou até um retrato do ex-presidente Lula com a Dona Marisa na Barbearia Chic Unissex, ambos bem vestidos e sorridentes (fig. 5 e fig. 6) em uma parede de barbearia na Feira de São Joaquim, em Salvador. As flores podem estar penduradas, estampadas nos azulejos ou no lençol que cobre o sofá. Esses salões, com tantas oferendas de flores e fotos, parecem mais templos involuntários a deuses da beleza visíveis nas paredes ou nas páginas das revistas. Uma das imagens (fig. 7) aproveita os reflexos no espelho de um corpo fragmentado para chamar atenção para o ritual que, entre quatro paredes, junta em um só ambiente fotos e gente querendo ser igual ao que veem nelas. Até que terminaram virando foto também.

Foto: Juan Pratgniestós
Fig. 05 - Tabatinga, AM | Foto: Juan Pratginestós
Foto: Juan Pratgniestós
Fig. 06 - Feira de São Joaquim, Salvador, BA | Foto: Juan Pratginestós
Foto: Juan Pratgniestós
Fig. 07 - Benjamin Constant, AM | Foto: Juan Pratginestós

E aqui se dá então um salto, pois essas fotografias dificilmente estariam naquelas revistas. Ao buscarem um padrão geralmente inatingível, porém bastante difundido nas revistas, os frequentadores em seus templos-salões terminaram servindo de alvo para um olhar que aprendeu ao longo da história (dele mesmo e da fotografia) a ampliar a noção do Belo para além do que pregam as revistas de salões. Sendo assim, enquadrar a menina à janela com um arco rodeado de fios aparentes dos postes e português mal redigido na placa revela, no meio da rua, o balbucio da beleza (fig. 8). Foi menos o acaso que colocou o fotógrafo diante daquela janela do que uma noção prévia da possibilidade de uma inusitada aparição da beleza, que produziu tal acaso. Sem essa noção prévia não haveria o contraste que permite ver a ironia da beleza brotando de um caos ordinário.

Foto: Juan Pratgniestós
Fig. 08 - Pelourinho, Salvador, BA | Foto: Juan Pratginestós

Faz parte do ritual no salão mostrar ao cliente, para finalizar, um ângulo pouco visto de si mesmo: a cabeleira apreciada de costas ou a nuca com um acabamento bem talhado levam a crer que é preciso sempre encontrar um ângulo raro pra revelar a beleza (fig. 9 e fig. 10).  Em geral, ao final da sessão, o barbeiro enquadra fugazmente a sua obra, mas houve pelo menos um deles que preferiu dar mais duração a essa visão efêmera. Uma fileira de quadros na barbearia exemplifica as nucas possíveis sobre as quais recaem diferentes modalidades de finalização de cortes. Quem poderia imaginar uma taxonomia do Belo tão insólita? (fig. 11) Esse salão colombiano é o único do qual o fotógrafo selecionou três fotos para mostrar o mesmo local – a que não aparece aqui mostra a fachada da barbearia. Talvez ele visse que encontrou enfileirado ali na parede da barbearia um esforço de classificação não muito distante do exercício preconizado por aquele mesmo ensaio fotográfico que ele ia aos poucos tecendo com fotos dispersas.

Foto: Juan Pratgniestós
Fig. 09 - Aglomerado da Serra, Belo Horizonte,MG | Foto: Juan Pratginestós
Foto: Juan Pratgniestós
Fig. 10 - Letícia, Colômbia | Foto: Juan Pratginestós
Foto: Juan Pratgniestós
Fig. 11 - Modelos de corte. Letícia, Colômbia | Foto: Juan Pratginestós

Nas suas andanças pela Amazônia, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Goiás, Peru, Colômbia, Juan Pratginestós conta que Point da Beleza era um nome recorrente para identificar diversos salões (fig. 12). Esse point traz uma incógnita a ser desvendada pelo fotógrafo: uma foto atrás da outra, pelas repetições e diferenças, terminamos avistando algumas pistas pra resolver o enigma do Belo. Nos detalhes e cenas colecionados, a vontade de beleza se revela como potência organizadora de ambientes, de gestos, de rituais, da cultura, da aparência de cada um, e do olhar no lado de cá do visor da câmera que recria a noção mesma do Belo contaminada de alguma ironia. Se a ironia, porém, distancia, era preciso alguma cumplicidade para colecionar os fragmentos que revelam um singular ritual – o ritual da beleza e também do ato de fotografar. Afinal, esse é um raro momento em que se percebe como a busca pela beleza pode ser um ato político, já que há os que procuram a beleza no estranho outro, e há os que se preocupam em defender os padrões que os excluem.

Foto: Juan Pratgniestós
Fig. 12 - Aglomerado da Serra, Belo Horizonte, MG | Foto: Juan Pratginestós

Susana Dobal é professora associada da Universidade de Brasília (UnB), com doutorado em História da Arte/City University of New York/Graduate Center (2003), pós-doutorado na Université Paris 8 (2009) e na Aix-Marseille Université (AMU 2014). Publicou artigos sobre fotografia, cinema e arte contemporânea e o livro Peter Greenway and the Baroque: writing puzzles with images (Lambert, 2010); com Osmar Gonçalves, organizou o livro Fotografia Contemporânea: fronteiras e transgressões (2013). Atua na pós-graduação da UnB/FAC na linha de pesquisa Imagem, Estética e Cultura Contemporânea. 

 

 

Imagem de capa JU-online
Modelos de corte em salão de beleza na cidade colombiana de Letícia | Foto: Juan Pratgniestós

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