Demógrafa constata que, embora oficialmente cancelado por causa de protestos de estudantes, projeto do governo paulista tem continuidade
Apesar de ter sido oficialmente suspenso em 2015, o projeto de reorganização da rede estadual de ensino de São Paulo tem sido colocado em prática pelo governo do Estado, notadamente no que se refere à proposta de oferta de ciclos únicos nas escolas. Em 2016, diversas unidades deixaram de abrir matrículas para os primeiros anos de cada ciclo [1º e 6º anos do Ensino Fundamental e 1º ano do Ensino Médio]. Uma das consequências dessa medida foi o fechamento de salas de aula, o que acarretou o aumento do número médio de alunos nas classes, principalmente no Ensino Médio. As constatações estão na tese de doutoramento da demógrafa Flávia Vitor Longo, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob a orientação da professora Joice Melo Vieira.
Em seu trabalho, Flávia analisou de forma mais detida as questões demográficas envolvidas na proposta de reorganização escolar apresentada pelo governo paulista em 2015. O modelo original, segundo a pesquisadora, estava baseado em argumentos pedagógicos e demográficos. A justificativa do então secretário estadual da Educação, Herman Voowald, era de que as mudanças tornariam as escolas mais preparadas para suprir as demandas de cada etapa escolar, em consonância com a realidade de cada faixa etária.
Trocando em miúdos, o que se pretendia era estabelecer ciclos únicos nas escolas. Na prática, 754 estabelecimentos que compõem a rede de ensino paulista passariam a ofertar apenas um dos três ciclos. Com o rearranjo, 94 unidades seriam fechadas. Ao todo, 300 mil alunos e 70 mil professores e funcionários seriam afetados. O projeto, que mereceu críticas de especialistas em educação. gerou um enorme protesto por parte dos estudantes, que ocuparam escolas em diversos municípios paulistas. A manifestação ganhou o apoio de diferentes segmentos da sociedade. Diante de tamanho descontentamento, o governo paulista anunciou a suspensão do plano.
No ano seguinte, porém, diversas escolas deixaram de abrir matrícula para os primeiros anos dos três ciclos, o que indica que a proposta de oferta de ciclos únicos continua sendo um objetivo do governo, como observa Flávia. “A agenda das políticas de educação no Estado de São Paulo tem seguido uma orientação neoliberal, e a proposta de reorganização está alinhada a essa lógica. Nesse sentido, a medida segue por outras vias que não mais a dos decretos emitidos pelo governador, como foi feito inicialmente”, avalia.
A não abertura de turmas nos primeiros anos, prossegue a demógrafa, indica que dentro de cinco anos uma escola já não terá mais a oferta dos anos iniciais do Fundamental; que dentro de quatro anos não oferecerá os anos finais; e que dentro de três anos não terá mais o Ensino Médio. Esse processo, observa a autora da tese, colide com as aspirações dos estudantes, claramente expostas durante as manifestações de 2015. “As múltiplas escolas ocupadas e os protestos indicaram claramente a posição dos estudantes: nenhum direito está, na prática, garantido. As manifestações significaram um movimento contra o fechamento de escolas e contra a transferência de alunos para outras unidades, o que representou uma luta para manter o direito de estudar onde for melhor possível. Os protestos também enfatizaram que a escola não se resume a um espaço inerte onde alunos vão para aprender e professores vão para ensinar”, pontua.
Os argumentos
O projeto de reorganização escolar elaborado pelo governo paulista foi baseado, reafirma Flávia, em dois argumentos centrais, um de ordem pedagógica e outro de caráter demográfico. A questão pedagógica, explica autora da tese, apoiou-se em estudo feito pela Coordenadoria de Informação, Monitoramento e Avaliação Educacional (CIMA), da Secretaria de Educação. Segundo o documento, escolas com ciclos únicos, ou seja, que atendem alunos com idades próximas, ofereceriam um ensino de melhor qualidade que aquelas que acolhem outros grupos etários. “Esse estudo foi bastante criticado pelas inconsistências teóricas e metodológicas, sobretudo pela falta de significância estatística”, recorda a pesquisadora.
Já o argumento demográfico foi fundamentado em boletim da Fundação Seade que indicava a redução da população em idades escolar no período de 2000-2014, bem como a diminuição do número de matrículas na rede estadual. O decréscimo populacional foi atribuído à diminuição da fecundidade e a queda das matrículas, ao processo de municipalização e às transferências para instituições de ensino privadas. “Constatamos que a redução da fecundidade é apenas um dos aspectos demográficos envolvidos na proposta de reorganização escolar. Também é preciso considerar o ritmo de crescimento dos grupos etários, a mortalidade nas idades escolares, os movimentos de migração e as trajetórias escolares, que variam entre as gerações”, adverte a demógrafa.
A redução da fecundidade, continua ela, impacta inicialmente o contingente que demanda por vagas na Educação Infantil. Os grupos “mais velhos” permanecem relativamente grandes devido à inércia demográfica ou, como dizem os especialistas, porque os padrões de fecundidade do passado ecoam no presente. “Isso significa dizer que a própria demanda absoluta, considerando a população em idade escolar, pode sofrer oscilação entre os anos, o que claramente se coloca como um desafio para a gestão pública”, avalia Flávia. A pesquisa conduzida por ela constatou igualmente que a política de reorganização, ao lidar com idades ideais, exclui das estimativas de demanda crianças e adolescentes que estejam em defasagem idade-série ou aquelas que sequer tenham sido inseridas no sistema escolar.
Outro aspecto salientado pelo estudo refere-se à existência de uma “demanda invisível” por vagas na rede estadual de ensino, especialmente na Educação Básica, etapa que consiste em direito compulsório no Brasil. “A principal fonte de dados empregada para o planejamento de vagas escolares é o Censo Escolar, levantado pelo INEP [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais]. Acontece que o Censo Escolar capta matrículas, isso é, trabalha com informações daqueles já inseridos no sistema escolar. Pessoas que nunca estudaram não constam nesses registros e pessoas com defasagem idade-série ou com mais de 19 anos e que não ingressaram ou não concluíram a Educação Básica não são alvos prioritários de vagas, salvo pela modalidade EJA [Educação de Jovens e Adultos], que não é obrigatória. Nós denominamos esses cidadãos de “invisíveis” porque não são considerados nas estimativas de demanda”, argumenta.
Atualmente, conforme Flávia, aproximadamente 9,5 milhões de pessoas no Estado de São Paulo [com idades entre 19 e 64 anos] não possuem Educação Básica completa. “Esse número revela claramente que precisamos de uma reorganização escolar que incorpore esse contingente e não que torne o seu acesso à escola mais difícil. É preciso lembrar, ainda, que essas pessoas são também parte do grupo considerado economicamente ativo”, afirma a pesquisadora, que contou com bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência ligada ao Ministério da Educação. Atualmente, a demógrafa reside nos Estados Unidos, onde aguarda a finalização dos trâmites para dar aulas na Universidade da Califórnia. Paralelamente, ela mantém colaborações com o Laboratório das Licenciaturas do IFCH e com um projeto multidisciplinar interunidades intitulado “Política educacional na rede estadual paulista (1995-2018)”, financiado pela Fundação de Aparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e sob responsabilidade da professora Márcia Aparecida Jacomini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).