A professora Lea Velho é a primeira de três convidados a analisar a importância do órgão e a crise que o ameaça
“O CNPq é uma instituição que se qualificou para o trabalho que faz e não merece sequer que se cogite a sua extinção”, afirma a professora Lea Velho, que trabalhou no órgão por 13 anos, de 1978 a 1991, até vir para o Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, onde se aposentou e permanece como colaboradora. “O CNPq dá respostas rápidas, desde o início criando programas temáticos para enfrentar problemas nacionais, como por exemplo, o programa integrado de doenças endêmicas (PID) e o programa de genética, ainda nos anos 70. E a agência tem uma simbiose com a comunidade científica que foi construída ao longo de muitos anos – acabar com isso é realmente destruir a nossa chance de ter sucesso globalmente”, pondera.
Lea Velho é a primeira de três especialistas convidados a fazer um resgate histórico da importância do CNPq para o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia e uma análise da grave crise que atinge o órgão devido ao teto de gastos imposto pelo governo – e que já trouxe a incerteza quanto à continuidade do pagamento de bolsas e auxílios à pesquisa, juntamente com rumores de fusão com a Capes, o que na prática significaria seu fim. “O CNPq já passou por altos e baixos do ponto de vista dos recursos, mas nunca ameaçou deixar de pagar as bolsas, nunca.”
Agrônoma de formação, a docente mudou-se para Brasília em 1977 acompanhando o marido que foi abrir uma estação experimental do extinto Planalsucar no Cerrado, no âmbito do Proálcool. Passou em concurso na UnB, que vivia fase difícil durante o regime militar; no ano seguinte, soube que o CNPq estava se transferindo do Rio de Janeiro para Brasília e oferecia vaga na Superintendência de Desenvolvimento Científico, que era a unidade responsável pela alocação de recursos de bolsas e auxílios à pesquisa nas várias áreas do conhecimento. “Enviei meu currículo (ainda não havia concurso formal) e fui aprovada como analista na área de ciências agrárias. Era a única apenas com mestrado, ao lado de colegas de áreas como de medicina, física e matemática, todos eles doutores.”
Lea Velho lembra que o CNPq era uma instituição ainda pequena – até porque em 78 a comunidade científica era pequena – e funcionava de maneira muito diferente de hoje. “O técnico de área conhecia pelo nome os pesquisadores, que trabalhavam apenas em projetos individuais. Não havia edital ou temas prioritários, a escolha de determinada linha de estudo se devia mais a uma decisão do pesquisador. O fluxo de pedidos de financiamento era contínuo, sendo julgados por um comitê assessor que se reunia mensalmente.”
É fato, atesta a professora da Unicamp, que o CNPq sempre se mostrou uma instituição hiperdinâmica, que foi adaptando os seus mecanismos de apoio e a estrutura administrativa para atender não apenas a uma comunidade científica crescente, mas também para se enquadrar nos paradigmas de entendimento de como a ciência é produzida. “Se eu cheguei quando prevaleciam os projetos individuais, com o tempo foi mudando a nossa compreensão de produção do conhecimento, da iniciativa isolada para a interface entre as instituições e o setor produtivo, através de grupos de pesquisa. A maneira de alocação de recursos também foi mudando e praticamente não se fala mais em projeto de pesquisa que não seja em resposta a um edital.”
O CNPq também passou a dar uma autonomia bem maior para as próprias universidades – o que na opinião de Lea Velho representou uma mudança substantiva – distribuindo cotas de bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado. “Antes, os candidatos se submetiam a todos os trâmites internos do órgão. Com as cotas de bolsas, deixou-se para as instituições a decisão de repassá-las para seus programas. O CNPq começou, ainda, a lançar editais por áreas de conhecimento e por temas, incentivando pesquisas em grupo e em colaboração com o setor produtivo.”
A docente do IG observa que o CNPq sempre teve várias instâncias deliberativas e seu próprio vínculo institucional variou no tempo, tendo sido um órgão ligado diretamente à Presidência da República, depois ao Ministério do Planejamento e voltando a ser independente sob a Presidência. “Com a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), em 1990, o CNPq perdeu muito do status de cérebro do Sistema de C&T, quando pensava as grandes políticas e realizava estudos de demanda para a área, como os PBDCTs [Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Pensava as políticas através de seus vários conselhos: o conselho máximo (que passaria ao MCT), os conselhos dos comitês assessores e os próprios comitês assessores – o órgão sempre consultou bastante a comunidade acadêmica na tomada de decisão.”
Segundo Lea Velho, o CNPq foi crescendo em uma dinâmica muito própria e nunca abriu mão, por exemplo, de qualificar os servidores internos, por meio da carreira de ciência e tecnologia, estimulando-os para o mestrado e doutorado. “Motivados e qualificados, esses técnicos estabelecem um diálogo com os membros da comunidade científica, ganhando compreensão do processo de produção do conhecimento e do que significa o trabalho deles – é algo ímpar no cenário brasileiro. Quando os comitês se reúnem, os servidores já fizeram uma pré-análise dos projetos, ficam por perto, sabem sugerir; não decidem, mas são advisers [conselheiros].”
Corte de bolsas
A professora reitera que o CNPq nunca deixou de pagar bolsas, nem nos momentos mais difíceis, quando o nível dos salários ficou baixo a ponto de gerar insatisfação interna e escassearam os recursos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). “Todo presidente do CNPq conseguia negociar recursos e o Congresso Nacional entendia que, no caso da ciência e tecnologia, bolsa é salário, que permite ao estudante realmente fazer pesquisa. Não tenho dados precisos, mas posso afirmar, sem medo de errar, que os alunos de pós-graduação produzem em torno de 80% da publicação científica no Brasil, em colaboração com seus orientadores. É por conta da massa crítica formada por bolsas do CNPq e da Capes que temos uma pesquisa de densidade.”
Lea Velho se pergunta para onde irão as pessoas que não conseguirem terminar o doutorado, ainda mais num momento em que não está havendo concursos para professores nas universidades. “Quando fiz concurso na Unicamp, fui candidata única. Tenho duas alunas de pós-doutorado e uma delas já prestou vários concursos, nenhum com menos de 50 concorrentes. Se essas pessoas não forem mantidas produzindo, dando aulas, formando alunos no âmbito universitário, provavelmente buscarão trabalho fora do país. Não que esteja fácil no exterior, mas temos gente muito qualificada, que custou recurso público para ser formada – e isso não pode ser perdido por um país que precisa produzir conhecimento.”
Lembrando que bolsas suspensas significam projetos paralisados no meio, a docente da Unicamp também dá pouco crédito à alegação de que os cortes são de bolsas que não estavam sendo utilizadas. “Um pós-doutor que consegue trabalho, desiste da bolsa, e é preciso um processo seletivo para colocar outra pessoa no lugar – isso leva tempo e nesse período a bolsa fica inativa, o que não significa que não há ninguém para ocupar a vaga. Aqui no DPCT, uma seleção de pós-doc tem aos menos 15 candidatos, numa área que nem é tão grande no Brasil. Mas outros países estão de olho, querendo gente formada de graça e pronta para trabalhar para eles.”
Fusão com a Capes
Sobre a possível fusão do CNPq com a Capes, Lea Velho observa que o fato de dois órgãos terem algumas atribuições que se sobrepõem, não significa que eles sejam iguais. “Isso já foi cogitado em outras ocasiões. José Goldemberg, ministro da Educação no governo Collor, tinha essa intenção ao propor o Ministério de Ensino Superior e Ciência e Tecnologia, envolvendo as universidades e fundindo as duas agências. Ocorre que a Capes não possui o mesmo histórico do CNPq, de formação de seus técnicos que dialogam com a comunidade; seu corpo administrativo é muito bom, mas são gestores administrativos, sem formação nas áreas de conhecimento nas quais trabalham.”
Na opinião da pesquisadora, os cortes no CNPq trazem sérios riscos inclusive a uma agência forte como a Fapesp, considerada menina dos olhos da comunidade científica de São Paulo. “A Fapesp só consegue atuar tão bem porque as bolsas são garantidas pelo sistema federal; se a agência tiver que cobrir as bolsas de mestrado, doutorado e iniciação científica, seu orçamento iria inteiro para isso e nada faria em termos de financiamento da pesquisa em si. Enquanto o CNPq sempre foi mais aberto a bolsistas, a Fapesp procura muito mais o corpo docente das instituições públicas – e é para isso que foi criada. São duas agências de caráter diferente.”
Lea Velho considera que o debate na área está muito confuso e, em que pese a suspeita de uma política premeditada de desmonte, vê no governo mais uma falta de compreensão do que significa o sistema público de ensino e de pesquisa. “Nisso a comunidade tem um pouco de culpa, pois temos pessoas defendendo a universidade pública, a pós-graduação e o CNPq usando principalmente o argumento da produção científica. O presidente e aqueles homens que estão no governo nem sabem mensurar o que significa se a produção subiu xis por cento. Acho que existe uma incapacidade de relacionar em quê o Brasil se sai bem e o quê leva isso – que é gente capacitada.”
Mudar o discurso
A professora do IG defende que se mude o discurso, mostrando a contribuição da universidade para a produção agrícola, por exemplo, e para tantos outros segmentos da economia. “O agronegócio, que funciona bem e garante divisas ao país (e que o governo adora), só é o que é graças à pesquisa. Todas as grandes commodities (café, cana, açúcar, soja, gado, frango) têm um investimento público de pesquisa enorme, desde o começo do século passado, com o IAC, IBC, estações para melhoramento de cana e outras estruturas que foram sendo apagadas aqui e ali, para de repente as universidades tomarem esse lugar, juntamente com a criação da Embrapa.”
Seguindo com os exemplos, a pesquisadora conta que se atribui o grande sucesso da soja ao Centro Nacional de Pesquisa de Soja da Embrapa, mas que embora esta relação seja verdadeira, a pesquisa não começou ali, devendo-se muito também às universidades públicas, até hoje. “As duas grandes variedades de soja plantadas no Brasil Central foram desenvolvidas pela Federal de Viçosa. O Brasil, aproximadamente até os anos 80, importava suas matrizes de frango, até que a pesquisa, principalmente em Viçosa e também na Esalq, Unesp e outras universidades permitiu produzi-las – e hoje temos essa indústria de frango que nos garante tantas divisas.”
Lea Velho diz ignorar quais seriam as intenções do governo com as medidas anunciadas contra a universidade pública e a pesquisa nestes nove meses. “Mas digo que é a primeira vez, desde que comecei a trabalhar no CNPq, que vejo um presidente da República ter tamanha desconsideração pela produção de conhecimento. Isso num mundo cada vez mais tecnológico, onde todos, inclusive empresários e banqueiros, estão falando da importância da sociedade do conhecimento. Nesse mundo globalizado, o que decide as relações de poder, a hegemonia, é o conhecimento. E nós estamos finalmente alcançando uma massa crítica, com nossa produção científica sendo reconhecida e cada vez mais prestigiada – foram décadas para construir tudo isso.”