Para André Furtado, o CNPq é uma das principais vítimas desta política que não é verbalizada, mas acontece de fato
“O CNPq tem uma ampla gama de atuações, sendo a principal instituição de fomento à pesquisa em nível federal, e vinha numa trajetória de crescimento que permitiu inclusive erguer um prédio próprio, inaugurado em 2010 e capaz de congregar todos os serviços que funcionavam dispersos pela Capital Federal”, afirma o professor André Tosi Furtado, do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. “Este processo começou a se inverter há cinco anos, com a perda de importância do órgão e cortes sucessivos de recursos – já a Capes foi mais preservada no início desse governo, mas acho que as coisas estão piorando também por lá.”
André Furtado é o segundo convidado a oferecer um histórico sobre a importância do CNPq para o Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia e analisar a crise que ameaça o futuro do órgão. “Acredito que há uma clara política de reduzir o apoio à C&T no Brasil, que não é verbalizada, mas que está acontecendo de fato. Houve cortes muito profundos na área e o CNPq foi uma das principais vítimas deste processo. É preciso esclarecer que a C&T não está vinculada apenas ao MCTIC [Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações], que assume parte do sistema, enquanto outra parte importante fica fora do seu âmbito, como no MEC (por meio da Capes), no Ministério da Agricultura (com a Embrapa) ou no Ministério da Defesa.”
Conforme o professor da Unicamp, cada área de governo possui uma força política maior ou menor e, dentre estas forças, ele considera que a do MCTIC não é grande. “Isso concede fragilidade a tudo o que está no seu âmbito, como o CNPq e os institutos públicos de pesquisa igualmente em situação extremamente crítica. Faço parte do Conselho Técnico Científico do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], também ligado ao MCTIC e alvo de críticas do próprio governo, o que dá a entender que o fenômeno é bem mais amplo. Enfim, há uma desestruturação do sistema de C&T em vários aspectos, o que acho bastante preocupante.”
André Furtado lembra que o CNPq foi o primeiro órgão de apoio e planejamento em pesquisa constituído no Brasil, em 1951, com a missão inicialmente voltada para a energia nuclear, área considerada prioritária no período do pós-guerra. “Posteriormente, com a criação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), em 1956, o CNPq assumiu a função mais de apoio à pesquisa civil em C&T e, logo, de planejamento. Durante o governo militar, vinculada à Secretaria de Planejamento, a agência obteve forte apoio e se desenvolveu bastante, passando a elaborar os planos básicos de desenvolvimento científico e tecnológico e ocupando um papel central no sistema.”
Com a redemocratização do país, acrescenta o docente do IG, criou-se o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que assumiu parte das funções do CNPq, ao qual foi atribuída maior carga de fomento à pesquisa fundamentalmente científica e acadêmica. “Na verdade, o processo decisório sobre parcela importante da alocação de recursos cabe à comunidade científica, através dos comitês científicos, em que pesem as prioridades políticas e áreas consideradas estratégicas.”
Furtado informa que foi a partir de 2005 que o CNPq apresentou um crescimento bastante expressivo no financiamento à pesquisa. Esse financiamento cresceu ainda mais ao assumir parte do programa Ciência sem Fronteiras (CsF), com consequente aumento do volume de bolsas para o exterior. “O CNPq responde ainda pelo financiamento de projetos de pesquisa, a exemplo do INCT (Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia). O Rhae [Programa de Formação de Recursos Humanos em Áreas Estratégicas], voltado para a competitividade, também foi aumentando em importância com a concessão de bolsas para fixar mestres e doutores em equipes de pesquisa das empresas. Já o doutorado acadêmico industrial é uma iniciativa mais recente, para atrair doutorandos às universidades, mas fazendo suas pesquisas em empresas.”
O docente da Unicamp é de opinião que a pós-graduação no Brasil está bastante em jogo porque vivenciou grande expansão e agora o governo quer fazer o ajuste com um corte profundo. “Não sei o que será mantido depois desse corte, provavelmente pouca coisa será preservada de todo o sistema que está por trás da produção científica, e responsável por grande parte do investimento público em C&T. Poderíamos perguntar se pretendem tirar de uma área e colocar em outra de interesse específico, mas não creio em crescimento nem mesmo na área militar, que tem peso diferenciado no jogo de poder, sendo o setor civil, obviamente, o mais vulnerável.”
Na Unicamp, segundo a Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP), 1.113 alunos de pós-graduação correm o risco de ficar sem seus vencimentos depois de setembro se não houver aporte orçamentário ao CNPq: são 478 de mestrado e 635 de doutorado, havendo ainda cerca de 650 graduandos com contratos de iniciação científica. “Se continuar assim, os alunos vão ter que se virar. Na Argentina o sistema de pós-graduação é muito menos desenvolvido, e pago, embora não seja um valor alto. Possivelmente caminhemos na mesma direção. O Banco Mundial sempre colocou que o ensino superior deve ser cobrado e a pós-graduação, mais ainda. Questionam por que o Brasil gasta tanto se forma poucas pessoas; não olham pelo lado da pesquisa. Se aparentemente o sistema é ineficiente, para quê manter toda essa estrutura funcionando?”
Furtado considera preocupantes os rumores de fusão com a Capes ou mesmo da extinção do CNPq, recordando uma experiência pregressa – e trágica – com o governo Collor. “A MP 150 [medida provisória], de março de 1990, extinguiu a Capes, desencadeando intensa mobilização acadêmica e científica que conseguiu reverter a decisão que ainda seria apreciada pelo Congresso Nacional. Mas à época a verba cessou, a Capes parou de pagar as bolsas e o que poderia parecer uma racionalização, acabou se mostrando altamente destrutivo, pois exigiria um remanejamento orçamentário.”
O professor do IG argumenta, por exemplo, que o CNPq não tem a capacidade da Capes para avaliar programas e atribuir notas, o que considera muito importante para melhorar a pós-graduação do país. “As duas instituições são bastante complementares, cada uma atuando em seu plano, o que dá mais resiliência à política de C&T em nível federal. Se acabarem com uma delas, provavelmente o seu orçamento sumirá junto; e uma suposta fusão seria, na prática, a extinção do CNPq. Ademais, isso não foi objeto de debate, não se apresentou um plano. Tudo bem reestruturar, mas é preciso saber para onde vamos. O que se ouve são rumores do que parece mais o aniquilamento de um setor, o que acho difícil. Mas no momento que estamos passando, tudo pode acontecer.”
Interesses outros
O pesquisador ignora se procede a hipótese de que o enfraquecimento do sistema de ciência e tecnologia serviria a interesses externos, embora considere a possibilidade. “Estão contratando uma empresa para monitoramento ambiental e prescindindo do Inpe. Entendo que a C&T pede um investimento de longo prazo e hoje não é uma prioridade para as elites econômicas, que consideram isso desnecessário ou pouco interessante para elas. Sempre achei que o Brasil é uma espécie de anomalia em termos de investimento na área dentro da América Latina: o Chile, por exemplo, destina 0,3% do PIB em P&D e o Brasil, 1,2% – acho que hoje não mais, pois os dados que o MCTIC vem divulgando são duvidosos, para dizer o mínimo; devemos estar em torno de 1,05%.”
André Furtado diz perceber uma questão ideológica nesta crise no ensino superior e na pesquisa, com as universidades sendo taxadas, por exemplo, de “centros de subversão”. “Isso se parece muito com o que vimos no golpe militar, que no início foi muito desfavorável às universidades, tendo havido expurgos como na UnB e na USP. Havia um sentimento anti-universidade e que foi reforçado com o AI-5 – depois, os militares mudaram bastante a sua orientação. Este governo parece reproduzir aquele sentimento, enxergando a comunidade científica como foco de subversão e contestação, com acusações do tipo que o diretor do Inpe [Ricardo Galvão] estaria a serviço de ONGs. Existe o risco de revivermos as mesmas situações do passado, com perseguições, o que torna a pesquisa acadêmica civil bem vulnerável a esse momento.”