Reitor cria GT para viabilizar participação no projeto da Marinha que inclui a construção do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB)
Atendendo ao convite do Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro (CDPNB) para participar de grupo técnico (GT-9) visando dinamizar a capacitação de recursos humanos para o setor nuclear brasileiro, a Unicamp decidiu criar seu GT interno multidisciplinar, através de portaria do reitor Marcelo Knobel, para se integrar a esse esforço nacional na área de ciências nucleares. Participam do grupo técnico do CDPNB cerca de 20 instituições, sendo a maioria do estado de São Paulo, como USP, Unesp, UFABC, UFScar, além da UFRJ, CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear), IPEN (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), Amazul (Amazônica Azul Tecnologias de Defesa S.A) e Eletronuclear (responsável pelas unidades de geração nuclear de Angra).
A predominância de parceiros paulistas se deve à proximidade física com o Centro Industrial Nuclear de Aramar (CINA), da Marinha do Brasil, mesmo local onde será construído o Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), na cidade de Iperó, região de Sorocaba (SP). Esse reator será fundamental para garantir o atendimento da demanda por radiofármacos do Sistema Único de Saúde (SUS), para diagnóstico e tratamento de doenças, como o câncer. “É fundamental que a Unicamp se integre a esse esforço em desenvolver a tecnologia nacional para os inúmeros usos benéficos das radiações, o que vai dinamizar suas mais diversas pesquisas nas áreas de ciências exatas e da saúde. E isso já está sendo feito através do grupo criado recentemente pela Reitoria”, afirma Luiz Carlos Kretly, professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) e coordenador do GT.
O reitor Marcelo Knobel visitou o CINA em 2017, juntamente com a alta administração da Unicamp, ao passo que integrantes do GT interno lá estiveram em agosto último. “Temos todo o interesse em colaborar com o país em grandes projetos”, ressaltou Knobel. “Acompanhamos as iniciativas do Comitê do Programa Nuclear Brasileiro, a construção do Reator Multipropósito MB e a possibilidade de colaborar na formação de recursos humanos. Estamos dedicados a buscar pesquisadores interessados no tema para que possam contribuir com o projeto e também nos beneficiarmos dele, já que a Marinha possui laboratórios avançados no seu centro em Iperó.”
Luiz Carlos Kretly explica que o CDPNB é coordenado pelo general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. “O reitor Marcelo Knobel indicou como representantes da Unicamp a mim e ao professor Celso Darío Ramos, que tem uma longa trajetória em medicina nuclear e já participou de reuniões anteriores sobre o projeto em Brasília.”
O docente da FEEC, por sua vez, foi indicado para representar as áreas de exatas e tecnológicas por seu envolvimento em um projeto junto aos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) sobre pequenos reatores nucleares aplicados à energia elétrica. “É uma tecnologia inovadora – denominada Small Modular Reactors (SMR) – aplicada em países como Canadá, Rússia, China e Estados Unidos, e que permite implantar pequenas centrais nucleares para atender microrregiões ou microrredes (microgrids) em energia elétrica. Diria que uma pequena central cabe num navio, como mostrou a Rússia, que levou uma central flutuante para o Ártico.”
A título de comparação, Kretly informa que a usina chinesa de Três Gargantas, a maior do mundo, tem capacidade de 22.500 MW (megawatts), Itaipu de 14.000 MW e Angra 3 de 1.350 MW, ao passo que uma SMR gera de 135 a 300MW elétricos, o suficiente para atender milhares de habitantes em regiões mais remotas como de Roraima ou Amapá. “É certo que existe, mundialmente, um grande preconceito contra a energia nuclear, que é associada a armas e acidentes nucleares. Mas isso está acabando. Tanto que Bill Gates criou uma empresa para construir pequenas centrais nucleares em que o combustível utilizado é reciclado de grandes usinas. Ele está montando a TerraPower na China, que é mais liberal na regulamentação, mas suspendeu temporariamente o projeto devido à disputa comercial com o governo Trump.”
Autossuficiência em radiofármacos
O Reator Multipropósito Brasileiro, em construção em Iperó, deve tornar o Brasil autossuficiente na produção de radioisótopos, que são os elementos ativos dos radiofármacos utilizados no diagnóstico e tratamento de câncer e outras doenças. Em que pese a ênfase inicial a esta área de medicina nuclear, o RMB também ampliará a capacidade nacional em pesquisa de técnicas nucleares, com aplicações estendidas à agricultura, indústria e meio ambiente, além de servir para testar e qualificar materiais e combustíveis.
Celso Darío Ramos, professor do Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e responsável pelo Serviço de Medicina Nuclear do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, vê a medicina nuclear como um dos principais exemplos de uso benéfico das radiações. “E ela não pode ser substituída por nenhum outro método. A técnica consiste em administrar quantidades muito pequenas de substâncias radioativas ao paciente, uma radiação um pouco maior do que já recebemos normalmente no ambiente, mas suficiente para se produzir imagens de órgãos e de diversos tecidos. E, em quantidades maiores, estas substâncias radioativas servem para o tratamento de doenças, sobretudo de alguns tipos de câncer.”
Presente à última reunião do grupo técnico do CDPNB de 24 de setembro, Celso Darío considera que a medicina nuclear está bem avançada no Brasil, realizando-se aqui a maior parte dos procedimentos feitos em países desenvolvidos. “A metodologia pode ser empregada em doenças cardíacas, neurológicas, ortopédicas, renais, do sistema endócrino, ou seja, praticamente em todos os órgãos. Uma técnica recente, por exemplo, permite detectar muito precocemente a recorrência do câncer de próstata e, também, tratá-lo em estágio avançado. Uma substância muito parecida com o PSA – que todo homem deve receber uma dosagem anual a partir dos 50 anos – é tornada radioativa e, com uma radiação menos intensa, usada para produzir imagens e localizar onde está a recorrência do câncer; com radiação mais intensa, serve para tratar de maneira direcionada os locais para onde o câncer se disseminou.”
Segundo o professor da FCM, a medicina nuclear está disponível em todo o país – embora menos no Norte e Nordeste – e é coberta pelo SUS na maioria dos procedimentos. “Mesmo assim, a oferta para a população mais pobre é bem menor do que para quem dispõe de convênios médicos. Isso se deve em parte à carência dos materiais radioativos, estando aí a importância do convênio da Unicamp com a rede proposta pelo grupo técnico do CDPNB, centrado no futuro Centro Tecnológico Nuclear em Aramar (CTNA), contribuindo na formação de recursos humanos para trabalhar no Reator Multipropósito Brasileiro. Lá serão produzidos vários radioisótopos, entre eles o molibdênio-99, principal insumo para o tecnécio-99, material mais usado para diagnóstico. Atualmente, o Brasil importa todo o molibdênio-99 que utiliza – da África do Sul, Argentina, uma parte da Bélgica e recentemente da Rússia.”
Submarino nuclear e Angra 3
O Programa Nuclear Brasileiro vem desenvolvendo, além das centrais nucleares em Angra, o submarino movido a propulsão nuclear brasileiro, cujo protótipo em construção em Iperó SP já está em fase avançada de testes – apenas seis países no mundo têm programas de submarinos nucleares. Os pesquisadores da Unicamp tiveram a oportunidade de conhecer o Laboratório de Geração Nucleoelétrica (Lagnege), que é o protótipo em tamanho real do submarino nacional.
Luiz Carlos Kretly ressalta que a energia nuclear é vista por muitos como a única solução para o suprimento de energia elétrica livre de emissão de carbono no mundo, já que a energia solar é muito flutuante do dia para a noite e a eólica mais oscilante ainda, dependente dos ventos. “A energia nuclear é contínua, dizemos que é dispatchable (despachável), podendo ser enviada sob demanda. Não por acaso, a China constrói uma Angra 3 por ano, e também tem um projeto de pequenas centrais nucleares, sendo que nosso trabalho na FEEC, junto a chineses e russos, é avaliar seus impactos tanto do ponto de vista de segurança como no setor elétrico, cujo sistema de distribuição e transmissão atuais são muito caros, enquanto as centrais nucleares modulares são sistemas regionalizados.”
Kretly aponta outras vantagens dos pequenos reatores, que além de serem muito aplicados na dessalinização de água do mar devido à energia intensa, ainda armazenam o excedente em vapor podendo acionar as turbinas novamente para geração de energia elétrica. “Uma proposta que está no radar da comunidade de pesquisas é desenvolver reatores a tório, que tem um isótopo radioativo e é muito seguro, já que por si só não sustenta a reação em cadeia como urânio e plutônio, por exemplo. Uma tonelada de tório gera a mesma quantidade de energia que 200 toneladas de urânio ou 3,5 milhões de toneladas de carvão, sendo que o Brasil detém 11% das reservas. Acontece que ainda não é uma tecnologia consolidada, sabemos de pesquisas nos Estados Unidos, Finlândia e Rússia.”
Mudança de paradigma
Nos últimos seis meses, conforme o coordenador, o GT elencou dezenas de disciplinas que a Unicamp pode oferecer para a formação de recursos humanos (maior mérito da instituição), as pesquisas possíveis de desenvolver junto ao Reator Multipropósito Brasileiro e em energia nuclear para a área de energia elétrica, bem como as linhas de pesquisa de interesse de nossos pesquisadores que seriam viabilizadas nos laboratórios em Iperó. “Um último documento, a pedido da Reitoria, foi a formatação desses aspectos em um convênio guarda-chuva entre a Unicamp e o CTNA – o memorando de entendimento já está sob análise da Marinha do Brasil.”
Luiz Carlos Kretly vê inclusive uma mudança de paradigma da própria Unicamp ao entrar na área de pesquisas nucleares. “Temos competências no uso da energia nuclear, trabalhos já produzidos e, para os novos estudantes de mestrado e doutorado, é um novo atrativo ao qual não estávamos muito atentos. A Marinha, por outro lado, concentra grande parte do conhecimento em área nuclear no país e quer compartilhá-la com diversas universidades – uma fala corrente é que ela vai abrir seus laboratórios na expectativa de oxigenar o sistema acadêmico.”
As unidades da Unicamp que participarão do projeto do CDPNB e da rede centrada no CTNA são a Faculdade de Ciências Médicas (FCM), Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF), Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC), Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM), Instituto de Biologia (IB), Faculdade de Engenharia Química (FEQ), Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), Instituto de Química (IQ), Instituto de Geociências (IG) e Centro de Engenharia Biomédica (CEB).