“Trabalhadores no Tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo”, de Fernando Teixeira da Silva, uma referência sobre estudos dos mundos do trabalho, tem edição em inglês lançada pela editora alemã De Gruyter Oldenbourg
As questões que circundam o mundo do trabalho, em especial os direitos trabalhistas e a Justiça do Trabalho, são sempre fontes de discussões em todo o planeta e, especificamente no Brasil, onde essas discussões ganharam novos capítulos com a recente Reforma Trabalhista e também com os trâmites para aprovação da Reforma da Previdência, o tema é pauta diária em grupos de estudos e em mesas redondas de debates. A História do Trabalho no Brasil tem muitos capítulos de luta pelos direitos trabalhistas e Fernando Teixeira da Silva, professor do departamento de História, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, analisou a capacidade organizativa e reivindicativa dos trabalhadores brasileiros e seu acesso à Justiça do Trabalho em seu livro Trabalhadores no Tribunal – Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do Golpe de 1964 (editora Alameda, 2016).
Como o interesse ao tema não se restringe ao público brasileiro, e em vista da importância da obra de Teixeira da Silva, o livro foi publicado recentemente na Alemanha pela editora De Gruyter Oldenbourg, onde ganhou uma versão em inglês, que foi baseado na segunda edição brasileira, lançada também em 2019 e que foi revista e ampliada pelo autor.
Intitulada Workers before the Court: Conflicts and Labour Justice in the Context of the 1964 Coup D’Etat in Brazil, a edição alemã foi pensada para que o leitor estrangeiro, que não está familiarizado com a história dos trabalhadores no Brasil, pudesse também se contextualizar sobre os acontecimentos. “Escrever para um público estrangeiro me alertava para determinadas passagens da primeira edição que não me pareciam mais suficientemente esclarecedoras de alguns argumentos centrais do estudo”, explica o autor.
A obra também atua como importante ferramenta de divulgação da historiografia que vem sendo produzida no Brasil. Mesmo sendo publicada na Alemanha, o fato de os editores escolherem o inglês como idioma do livro é importante porque pode auxiliar em sua disseminação, uma vez que abrange leitores de todo o mundo, além de contribuir para o debate internacional. “Exceto os especialistas estrangeiros em História do Brasil, a língua portuguesa permanece ignorada e intransponível para muitos leitores e pesquisadores de outros países... Na medida em que temos estudos traduzidos para outras línguas, especialmente para o inglês, aumentam as possibilidades internacionais de interlocução institucional e intelectual”, avalia Teixeira da Silva.
Nesta entrevista, Teixeira da Silva fala sobre como foi o processo para a confecção do livro para um público estrangeiro, os desafios a serem considerados, importância para historiografia brasileira e adianta alguns pontos de sua nova pesquisa, que vem para complementar o debate sobre a História do Trabalho no Brasil.
Leia abaixo a entrevista:
O livro em inglês foi feito com base na segunda edição do original, que foi revista e ampliada. Quais são os pontos que foram ampliados e revistos na segunda edição e, consequentemente, na edição alemã?
Fernando Teixeira da Silva - À medida que preparava o livro para a segunda edição, fui ao mesmo tempo reformulando-o para a edição alemã a fim de adequar a linguagem, a análise e as informações para um público pouco ou menos familiarizado com a história do Brasil contemporâneo, assim como com o tema e as questões mais específicas em torno do ordenamento legal e jurídico das relações de trabalho do país. Da mesma maneira, escrever para um público estrangeiro me alertava para determinadas passagens da primeira edição que não me pareciam mais suficientemente esclarecedoras de alguns argumentos centrais do estudo. Por isso, tanto no Prefácio à segunda edição brasileira quanto no da versão em inglês considerei três desafios. Primeiro, relacionar o golpe de 1964 com o golpe que derrubou Dilma Rousseff em 2016 a fim de sugerir que ambos têm ao menos um ponto em comum, embora, é claro, em contextos diferentes: a questão dos direitos estava no centro dos dois acontecimentos. Minha intenção foi reforçar algo que já se encontrava anunciado na edição de 2013: o que estava em jogo, mais do que as lutas por direitos, era a maneira como estes eram disputados, conquistados e reconhecidos institucionalmente, ou seja, dentro de espaços públicos decisórios. Isso me levou a abordar um segundo aspecto: dialogar criticamente com duas explicações sobre as relações causais entre a participação política dos trabalhadores e o golpe de 1964. Busquei refutar a tese do “colapso do populismo”, segundo a qual, em linhas gerais e de modo aqui muito redutor, os trabalhadores, ao ingressarem nas instituições de representação de interesses criadas desde 1930, teriam feito girar a máquina da “dominação populista” que fatalmente os teria moído quando do golpe. Outra teoria (a tese da “radicalização dos atores”, na expressão do historiador Marcos Napolitano) procurou sustentar que, sobretudo no governo João Goulart, os movimentos sociais e as esquerdas teriam ultrapassado os diques institucionais construídos por Vargas, levando a uma polarização de forças que conduziria ao desfecho de 1964. Em ambas as interpretações, assim muito resumidas, estaria em segundo plano a democracia como valor político substantivo no período de 1945 a 1964. Busquei mostrar que ambas as teses estão plasmadas em uma “memória da culpa” pela efetivação do golpe, transformada em explicação acadêmica. Ao analisar como os trabalhadores do estado de São Paulo se relacionaram com a Justiça do Trabalho na resolução dos conflitos naquele contexto de golpe, coloquei em relevo os significados e os efeitos da “intromissão” deles na institucionalidade e nos dilemas em torno da própria democracia. O terceiro desafio foi o de aprofundar comparações e conexões internacionais, em particular com a Itália fascista, o New Deal dos Estados Unidos nos anos 1930 e 1940, o trabalhismo australiano do início do século XX, a estruturação da Justiça do Trabalho alemã da República de Weimar, a judicialização das relações de trabalho levada a efeito na França desde o século XIX e o suposto “absenteísmo legal” de países “liberais” como Inglaterra e Canadá.
Com isso, concluí que a Justiça do Trabalho brasileira não foi o decalque de experiências institucionais e de ideias de outros “casos nacionais”, como pretendem algumas análises, sobretudo nas versões que defendem a “modernização” da legislação do trabalho no Brasil, sob o pressuposto de que aquela instituição é uma importação de “ideias fora do lugar” e do tempo. Tampouco teria sido uma criação integral e originalmente nacional, como sugerem os arquitetos dos marcos legais erigidos nas décadas de 1930 e 1940. A construção da Justiça do Trabalho foi um arranjo criativo de influências internacionais adaptadas à própria história da regulação do trabalho no Brasil, que remonta ao período da Primeira República (1889-1930). Assim, nas duas edições publicadas em 2019, incorporei diálogos com estudos mais recentes, acrescentei informações, suprimi passagens que me pareciam desajeitadas e, principalmente, tentei tornar mais clara a argumentação em torno dos problemas que estruturaram e deram unidade ao livro.
Como foi o processo para que o livro fosse publicado no exterior e, mais especificamente, na Alemanha? A editora que intermediou?
Fernando - A publicação na Alemanha se deve a uma instituição chamada “re:work - Work and Human Life Cycle in Global History”, sediada em Berlim, voltada para estudos na área das Ciências Humanas. As pesquisas do re: work tratam de compreender os fundamentos históricos da sociedade atual por meio de comparações e conexões internacionais no campo do trabalho. A instituição promove intercâmbio entre pesquisadores de diversas nacionalidades por meio de conferências e oficinas. Em parceria com a prestigiosa editora alemã De Gruyter Oldenbourg, o re-work coordena a série Work in Global and Historical Perspective que está preocupada em estabelecer conexões entre diferentes regiões do globo, problematizando as fronteiras entre trabalho assalariado, forçado, escravo, doméstico, autônomo etc. Foi por meio do incentivo do historiador Sidney Chalhoub (professor da Unicamp e da Universidade de Harvard), que faz parte do re: work e da coleção, que submeti o livro à editora e à apreciação de especialistas em história do trabalho. A casa editorial considerou que o livro se adequava aos propósitos da coleção por traçar conexões entre uma localidade específica e lugares distantes e processos de mudança de longo prazo, permitindo assim um diálogo em perspectiva transnacional.
Quais os ganhos para a produção historiográfica brasileira com a publicação de obras em outras línguas? Em especial falando da sua obra e em língua inglesa, que pode ter um alcance muito maior.
Fernando - A história do trabalho produzida no Brasil tem sido muito dinâmica e inovadora, interferindo nos debates internacionais de maneira vigorosa, como atestam, por exemplo, vários estudos sobre trabalho escravo, compulsório e “livre”. No entanto, exceto os especialistas estrangeiros em História do Brasil, a língua portuguesa permanece ignorada e intransponível para muitos leitores e pesquisadores de outros países, o que, evidentemente, coloca sérios limites para que a nossa produção seja mais bem conhecida fora das fronteiras nacionais. Na medida em que temos estudos traduzidos para outras línguas, especialmente para o inglês, aumentam as possibilidades internacionais de interlocução institucional e intelectual. Abordagens conectadas, cruzadas, comparativas e transnacionais retro-alimentam de forma significativa a própria historiografia realizada no país e suas ferramentas de análise, ampliando o leque de temas e problemas de pesquisa, além de colocar em questão supostas excepcionalidades nacionais que, muitas vezes, só aparecem como peculiaridades por desconhecimento de outras realidades e experiências históricas. Portanto, novos cruzamentos em termos transnacionais podem confrontar rígidas fronteiras nacionais e regionais, permitindo mobilizar, cotejar e problematizar um conjunto bastante amplo de fontes históricas e tradições historiográficas que continuam confortavelmente fincadas em histórias nacionais.
Está desenvolvendo alguma outra pesquisa relacionada a esta que pode complementar o debate sobre o tema?
Fernando - No momento, com o historiador Alexandre Fortes (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), organizei uma coletânea intitulada Trabalho & Labor: histórias compartilhadas (Brasil e Estados Unidos, século XX), com lançamento previsto para o próximo ano pela Editora Sagga. O livro, que congrega historiadores de diferentes origens nacionais e acadêmicas, parte da constatação de que a fecunda história do trabalho estadunidense permanece ainda bastante desconhecida no Brasil, exercendo pouca influência sobre a historiografia brasileira. Cabe acrescentar que, por suas atribuídas excepcionalidades, as histórias dos dois países parecem estranhas entre si, desencorajando comparações, diálogos e abordagens transnacionais. Assim, a coletânea nasceu de nossa percepção sobre a necessidade de preencher a enorme lacuna representada pela ausência de obras dedicadas ao estudo integrado das experiências históricas dos trabalhadores norte-americanos e brasileiros no século XX. A publicação em curso é um convite para alargar o campo de análises sobre diversos temas e problemas que há muito fazem parte da produção historiográfica sobre trabalho e trabalhadores no Brasil e nos Estados Unidos, mas que ainda não têm suscitado diálogos mais estreitos entre estudiosos das duas nações. As contribuições dos colaboradores versam sobre uma gama de assuntos clássicos, como movimento operário e sindicalismo, imigração, raça e etnicidade, trabalho urbano e rural, sistemas de relações de trabalho, legislação e direitos do trabalho, política e Estado, feminismo e história das mulheres, Guerra Fria e relações internacionais. Minha contribuição nessa obra é um capítulo que analisa a penetração do corporativismo na regulação do trabalho nos Estados Unidos durante o New Deal de Roosevelt (anos 1930 e 1940) e sua posterior estigmatização como um “desvio” daquilo que a narrativa histórica tradicional descreve como uma trajetória de longo prazo caracterizada pela livre-negociação entre empregados e empregadores, sem interferência legal e estatal. A tônica de texto está na participação da classe trabalhadora na política e no aparato estatal daquele país, assim como na problematização da imagem de uma classe trabalhadora “livre e autônoma”, sem mediações público-institucionais. Tal problemática me levou também a enfrentar em outro estudo, que está para ser publicado, o atual debate sobre a Reforma Trabalhista sancionada em 2017, discutindo, entre outros aspectos, sobre o falso “paradigma americano” de desregulamentação do trabalho, cada vez mais alçado a modelo a ser implantado no Brasil.
Mas a pesquisa mais sistemática que desenvolvo agora está voltada ao estudo dos trabalhadores rurais em suas relações com as leis, os direitos e a Justiça do Trabalho, o que envolve a investigação da crise do sistema de colonato na região de Ribeirão Preto (São Paulo) entre os anos de 1950 e 1970, as experiências no interior do trabalho familiar e os limites e as potencialidades da legislação trabalhista no campo. Uma das questões essenciais da pesquisa é analisar os trabalhadores rurais nas fronteiras entre “trabalho livre” e trabalho forçado. O resultado principal será a elaboração de um livro que envolva também um debate com outras experiências de trabalhadores no campo na América Latina, especialmente na Argentina, Chile, Peru e México, que passaram por processos semelhantes.