Testes em seres humanos avaliam segurança de técnica que corta e edita o DNA para tratar doenças
Ilustração: Zé Vicente
Considerada revolucionária, a técnica de edição de genes conhecida pela sigla Crispr-Cas9 começa a tornar mais próxima da realidade a alteração ou substituição de genes para tratar ou evitar doenças. O resultado de seu primeiro uso em seres humanos foi descrito em setembro de 2019 em um artigo na revista New England Journal of Medicine. No trabalho, o imunologista Deng Hongkui e sua equipe na Universidade de Pequim, na China, relataram um teste pioneiro com um homem de 27 anos que tinha leucemia, câncer causado pela proliferação de células de defesa imaturas, e era portador de HIV, o vírus da Aids. Após controlar as enfermidades com medicamentos, em 2017, os pesquisadores submeteram o paciente a um tratamento inovador. Tanto a leucemia como a infecção por HIV afetam as mesmas células de defesa, os linfócitos, que atacam organismos invasores e células doentes. Como a solução envolvia restaurar a produção de linfócitos saudáveis, os médicos decidiram combater os dois problemas com um transplante especial. Retiraram células da medula óssea de um doador e, antes de transferi-las para o paciente, utilizaram a Crispr para desativar o gene contendo a receita de uma proteína usada pelo HIV para invadir os linfócitos. Assim, esperavam restabelecer a produção de células de defesa sadias e imunes ao vírus, como ocorreu em 2008 com Timothy Ray Brown, o chamado paciente de Berlim, após receber a medula de um doador que naturalmente não produzia a proteína.
O sucesso foi parcial. Os pesquisadores transplantaram uma mistura de células editadas e não editadas (não foi possível fazer a modificação em todas). Um ano e meio mais tarde, a leucemia permanecia em remissão e a nova medula continuava a produzir linfócitos saudáveis, embora só 5% deles apresentassem a alteração protetora. “O teste foi idealizado para avaliar a segurança e a viabilidade do transplante”, afirmou Deng por e-mail a Pesquisa FAPESP. A experiência funcionou como prova de princípio e indicou que é possível realizar o procedimento, aparentemente sem danos. Antes de avaliar a eficácia da estratégia para debelar a infecção por HIV, porém, será preciso aumentar a eficiência da edição e aprimorar o protocolo de transplante – o ideal é que todos os linfócitos se tornem imunes ao vírus. “Decidimos melhorar a técnica antes de tratar outros pacientes”, contou o imunologista.
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A Crispr não é a primeira nem a única forma de modificar ou inativar genes testada em seres humanos. A ideia de que era possível cortar o material genético das células em pontos específicos e alterá-lo – inserindo um gene novo ou desativando outro com ação indesejada – nasceu com a descoberta de um sistema de defesa de bactérias. Nos anos 1960, os pesquisadores norte-americanos Hamilton Smith e Daniel Nathans (1928-1999) e o suíço Werner Arber identificaram nesses organismos proteínas chamadas nucleases, que funcionam como tesouras moleculares e cortam em pontos específicos o material genético (DNA) de vírus invasores. A descoberta rendeu ao trio o Nobel de Medicina de 1978 e levou ao desenvolvimento de estratégias para modificar o DNA das células.
Duas técnicas propostas nos anos 1990 e 2000 se aproveitavam desse princípio: a edição com nucleases dedo de zinco (zinc finger nucleases, ou ZFN) e a com nucleases efetoras do tipo ativador de transcrição (transcription activator-like effector nucleases, a Talen). Ambas usam uma proteína artificial, formada da junção de duas outras: uma que reconhece o trecho do material genético e outra que o corta. Elas funcionam de modo preciso e estão sendo avaliadas em animais e seres humanos – há uma dúzia de ensaios clínicos com a ZFN e metade disso com a Talen. Existe, porém, um entrave. Proteínas são moléculas grandes, complexas e difíceis de se produzir em laboratório. Outra complicação é que é preciso desenhar uma nova proteína para cada trecho-alvo do DNA.
Aí a Crispr leva vantagem. Ela também usa uma molécula híbrida, mas formada por uma proteína (a Cas) e um RNA, que é bem menor e mais simples de ser desenhado em laboratório. Em 2012, a bioquímica norte-americana Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, e a geneticista francesa Emmanuelle Charpentier, hoje no Instituto Max Planck, Alemanha, criaram uma versão simplificada do sistema Crispr-Cas e mostraram que funcionava em testes com DNA. No ano seguinte, o bioquímico sino-americano Feng Zhang, do Instituto Broad, nos Estados Unidos, usou a estratégia para manipular o DNA de células humanas. Publicados na revista Science, esses resultados dispararam uma corrida mundial para dominar a técnica – e uma disputa por direitos de propriedade intelectual entre Berkeley e o Broad.
“Produzir sequências curtas de RNA em laboratório é banal e barato, o que torna a Crispr mais versátil e acessível do que qualquer outra técnica de edição gênica”, afirma o geneticista Carlos Menck, da Universidade de São Paulo (USP). Em parceria com a pesquisadora Clarissa Rocha, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele usa a Crispr para identificar genes que tornam as células tumorais resistentes aos medicamentos.
Por causa da facilidade e da versatilidade, em pouco tempo pesquisadores no mundo todo passaram a testar a Crispr em plantas e animais com os mais variados objetivos, de aprimorar a produção de alimentos a criar modelos para estudar doenças humanas. Camundongos, ratos, coelhos, porcos, cães e macacos já foram alterados geneticamente com a Crispr, muitos de modo pioneiro por pesquisadores na China. Menos de cinco anos após a publicação dos artigos na Science, surgiram trabalhos mostrando ser possível corrigir genes defeituosos em embriões humanos e começaram os tratamentos experimentais em pessoas.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.