É o que mostra estudo de pesquisadores da Unicamp em artigo recém-publicado no periódico Scientific Report , do grupo da Nature
A caquexia, síndrome que leva à perda dos tecidos muscular e adiposo, da massa corpórea e consequentemente de peso, determinando o extremo enfraquecimento do organismo, acomete principalmente portadores de determinados tipos de canceres mais agressivos que se manifestam particularmente no pulmão, estômago, pâncreas e intestino grosso. Essa síndrome, que provoca um intenso emagrecimento, levou a população a cunhar a expressão “só pele e osso” ao referir-se a pessoas muito magras e extremamente debilitadas. Suas vitimas manifestam grande fragilidade e fadiga intensa, o que reduz a qualidade de vida. Em cerca de 80% dos pacientes com estado avançado de cânceres, a caquexia é responsável por 30% das mortes.
O Laboratório de Nutrição e Câncer, coordenado pela professora Maria Cristina Cintra Gomes Marcondes, do Departamento de Biologia Estrutural e Funcional, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, concentra-se no estudo do que ocorre no organismo de animais (ratos) portadores de tumores que desenvolvem a caquexia. Uma das estratégias que vêm sendo muito utilizadas em humanos para combater essa síndrome é a suplementação alimentar com leucina, um aminoácido essencial muito conhecido por esportistas que almejam o desenvolvimento da massa muscular. Ela efetivamente atua no aumento da massa muscular acelerando sua síntese proteica, robustecendo o músculo, ajudando o processo hipertrófico e contribuindo para a diminuição da quebra (atrofia) do músculo. No paciente, a manutenção da massa muscular adequada permite que ele não perca a qualidade de vida, contribuindo para que seu organismo se recupere mais facilmente de cirurgias e resista aos efeitos dos tratamentos para controlar a proliferação do câncer. Igualmente, no rato com tumor a suplementação alimentar com leucina visa diminuir a perda da massa muscular e consequentemente a perda de peso corpóreo. Como essa atuação se dá é o principal objeto de estudos do Laboratório.
Embora o Laboratório estivesse sempre muito focado em estudar o músculo, com vistas a minimizar seu comprometimento em decorrência da caquexia, em novo trabalho orientado pela docente, a bióloga e pós-doutoranda Laís Rosa Viana se propôs a direcionar as pesquisas para o tecido tumoral que provoca essa síndrome. A pergunta que se colocava era: será que a leucina, tão eficiente para a manutenção e desenvolvimento da massa muscular, não contribuiria também para o desenvolvimento do próprio tumor? “Resolvemos, então, focar nossa atenção na determinação de qual seria o efeito da leucina no desenvolvimento e metabolismo do tumor. Mesmo porque, se já era amplamente conhecido que a leucina pode estimular a síntese proteica no músculo esquelético e estudos recentes mostravam aumento na capacidade oxidativa da célula muscular relacionada com esse amino ácido, por outro lado, os efeitos da leucina em tecidos tumorais precisavam ser melhor elucidados”, esclarece ela.
Desse trabalho resultou um grande achado e uma descoberta auspiciosa: a constatação de que os ratos submetidos a dieta suplementada com leucina desenvolvem menor número de metástases, assim chamadas, como amplamente sabido, as manifestações tumorais que ocorrem em outros órgãos ou tecidos, além do tumor original, embora não houvesse diminuição do seu tamanho. Detectou-se também a redução da captação de glicose, surpreendente, pois a maioria das células cancerígenas utiliza preferencialmente a glicose como fonte energética, constituinte fundamental do seu metabolismo.
A pesquisa
A pesquisa, que contou com o apoio da Fapesp, concentrou-se no tumor de Walker 256, um adenocarcinoma originalmente mamário, um câncer de mama, identificado inicialmente em uma rata, em 1928, pelo pesquisador de quem lhe veio o nome. Ele é comumente introduzido em animais para induzir a caquexia porque reproduz com muita proximidade o que ocorre em humanos e também por ser já muito bem estudado. As células do tumor são inoculadas nos animais que simultaneamente passam a receber alimentação suplementada com leucina.
Com efeito, ratos da linhagem Wistar portadores do tumor foram aleatoriamente distribuídos em dois grupos. Os animais de um dos grupos receberam uma dieta padrão de ratos e os do outro grupo foram submetidos à mesma dieta suplementada com 3% de leucina.
Esse tumor, a exemplo de muitos outros, tem grande afinidade por glicose. Para determinar eventuais diferenças da sua captação pelo tumor dos ratos constituintes dos dois grupos injetou-se glicose marcada radiativamente nos animais anestesiados. Verificou-se então que os tumores dos animais que receberam suplementação alimentar de leucina foram os que captaram menos glicose. Ocorre que o consumo de glicose pelas células cancerígenas está intimamente relacionado à agressividade do tumor e ao desenvolvimento de metástases. E, de fato, nos animais em que o tumor se tornou menos agressivo verificou-se menor número de sítios de metástases. Uma alvissareira constatação.
O achado é surpreendente, pois, se a leucina estimula a síntese proteica, contribuindo para o aumento da massa muscular, por que não contribuiria também para a progressão do tumor? Então, como explicar o efeito da leucina no controle da agressividade do tumor? Os tumores se alimentam preferencialmente com glicose em um mecanismo também conhecido como efeito Warburg, através do qual as moléculas de glicose são quebradas produzindo muito lactato que, quando exportado para fora das células do tumor, causa acidificação do meio extracelular, o que favorece a formação de metástases. Entretanto, a leucina altera esse metabolismo no tumor e o processo deixa de ser essencialmente glicolítico e passa a ser preferencialmente oxidativo. Essa nova via energética leva à diminuição da produção de lactato e, em decorrência, diminui a acidez do meio extracelular, reduzindo concomitantemente a formação de metástases. O artigo, publicado no prestigiado periódico Scientific Report, do grupo Nature, sob o titulo “Dieta rica em leucina induz mudança no metabolismo tumoral, reduzindo o consumo de glicose e metástase em ratos portadores do tumor de Walker 256”, aborda basicamente essa importante modificação no mecanismo metabólico do tumor causada pela leucina, que elucida seu efeito.
As pesquisas em ratos foram também reproduzidas in vitro alimentando diretamente as células cancerígenas com leucina, em um processo livre de interferências suscetíveis de se verificarem nos organismos animais muito mais complexos, o que permitiu validar os resultados.
Alerta
Para a professora Maria Cristina, o trabalho possibilitou um salto com a revelação de que um aminoácido, embora benéfico para recuperação e formação da massa muscular, não contribui para o desenvolvimento do tumor, pelo contrario, diminui sua agressividade e consequentemente a possibilidade de metástases. O tumor não deixa de crescer, mas tem reduzida sua agressividade e proliferação para outros órgãos ou tecidos, minimizando a possibilidade de mortes por metástases. Essas foram as descobertas mais importantes. Apesar disso, ela alerta: “Os resultados devem ser relativizados, pois resultaram de estudos em animais e sobre um tumor especifico. Seria muito perigoso extrapolar agora os resultados para humanos e para outros tumores. O acompanhamento de pacientes com câncer deve ser assessorado por médicos, nutricionistas e nutrólogos“.
A docente lembra que, para uma segunda etapa do estudo, estão sendo entabuladas parcerias com pesquisadores do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, com vistas à possibilidade de trabalhar com amostragens de portadores de cânceres agressivos e estender as descobertas experimentais para futuramente verificar os resultados em pacientes.
Embora grande parte do estudo tenha sido efetuado por Laís no Laboratório de Nutrição e Câncer, as pesquisadoras enfatizam que todas as análises necessárias ao desenvolvimento do trabalho só puderam ser realizadas graças às parcerias estabelecidas com vários pesquisadores da Unicamp, o que evidencia seu caráter multidisciplinar, fundamental para atingir resultados de maiores amplitudes e impactos. Neste particular, elas destacam as colaborações dos professores Celso Dario Ramos, do Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e diretor do Serviço de Medicina Nuclear da mesma unidade; Anibal Eugenio Vercesi, do Departamento de Patologia Clinica tambem da FCM; Leonardo Reis Silveira, do Departamento de Biologia Estrutural e Funcional, do Instituto de Biologia (IB); e Sílvio Roberto Consonni, do Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual do mesmo instituto. Consideram, também, muito importante que a população seja informada das pesquisas desenvolvidas em uma universidade pública e que, portanto, deve ter o compromisso e a obrigação de prestar contas à sociedade brasileira que a mentem.