No Dia das Mulheres e das Meninas na Ciência, quatro docentes da Unicamp contam suas trajetórias e avaliam os desafios da busca por maior equidade na academia
Nesta terça-feira, 11 de fevereiro, comemora-se o Dia Internacional das Mulheres e das Meninas na Ciência. A data, instituída pela pela Organização das Nações Unidas (ONU) com a intenção de promover uma maior equidade de gênero no campo das ciências, suscita debates sobre o acesso à igualitário à academia e aos órgãos de pesquisa, colocando em questão a invisibilidade feminina e as barreiras a postos de destaque na representação científica.
No Brasil, as mulheres são a maior parte dos inscritos em pós-graduação, de acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mas o topo da carreira científica ainda é ocupado majoritariamente por homens. No ensino ensino superior, por exemplo, a presença feminina é menor: de acordo com o Censo do Ensino Superior de 2017, elas representam 46% do corpo docente. Na Unicamp, elas são 38%.
Com relação à distribuição por campos do conhecimento, os estereótipos que ligam as mulheres a áreas relacionadas ao cuidado, resultantes de uma socialização de gênero distinta para meninas e meninos, fazem com que haja uma subrepresentação nas ciências exatas e tecnológicas, consideradas no senso comum masculinas. Na Unicamp, como nas outras instituições de ensino, há uma concentração de homens nos cursos de engenharias, enquanto as mulheres estão mais presentes na saúde, na educação e nas humanidades.
A professora Débora de Souza Santos, por exemplo, é docente na Faculdade de Enfermagem (FEnf), onde atualmente só há mulheres lecionando. Já as professoras Katia Lucchesi Cavalca Dedini, da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM); Leticia Rittner, da Faculdade de Engenharia Elétrica (FEEC), e Esther Luna Colombini, do Instituto de Computação (IC), no sentido inverso, integram o corpo docente de áreas que possuem menos de 10% de mulheres na docência.
O Jornal da Unicamp convidou as pesquisadoras para contar sua trajetória acadêmica e avaliar os motivos da subrepresentação feminina em determinadas áreas e da preponderância em outras. Em comum, elas compartilham a certeza de que a diversidade na pesquisa só vem a trazer benefícios para a produção de conhecimento.
“Precisamos promover a representatividade e a diversidade”
Estudar, conta a professora da FEnf Débora de Souza Santos, foi um hábito sempre estimulado pelo pai, que enfatizava a necessidade de independência para as filhas. “Desde muito cedo eu tenho esse fascínio pelos estudos como uma maneira de me destacar. Já que eu não me destacava porque eu não era homem, eu era mulher, e além de tudo eu era uma menina negra, eu conseguiria me destacar sendo inteligente”.
Docente há 15 anos, Débora deu aula em universidades na Bahia e em Alagoas, até voltar à Unicamp, onde se graduou. Desde 2017, ela integra o corpo docente, exclusivamente feminino, da FenF. Para a professora, a predominância feminina está diretamente associada à história de desvalorização da profissão.
Há um paralelo da história da profissão com a história do papel da mulher na sociedade, afirma a docente, que faz com que os estereótipos que as mulheres recebem da sociedade sejam atribuídos também à enfermeira e à enfermagem em geral. “A enfermeira tem esse estereótipo que às vezes é uma mulher santa e pura e às vezes uma mulher vulgar que não tem valor”.
Além disso, o percurso da profissão, pontua a docente, mostra que o papel de cuidadores sempre foi relegado às pessoas que não tinham lugar na sociedade. “O cuidado era marginalizado e por ser marginalizado era praticado principalmente pelo público feminino”. Assim, a Enfermagem nasce desprestigiada, o que se reflete até hoje na visão da profissão como auxiliar da medicina, e não como um campo autônomo. “A luta pela legitimidade da profissão é a mesma luta da mulher por igualdade, por direitos equitativos”, avalia Débora.
Mas a diversidade, frisa a professora, vai além da questão de gênero. Na FenF, das 30 docentes mulheres, ela é a única mulher negra. “E o que é uma nesse universo de 30 se a gente for pensar que 54% da população brasileira é negra? Significa que eu sou a exceção confirmando a regra, já que a regra é que não tenha nenhuma. Tem gente que me olha como algo exótico e isso é muito triste. Precisamos promover a representatividade e a diversidade”.
Uma das formas com que Débora atua, tanto para contribuir na luta antirracista quanto na luta contra o machismo, é promovendo conhecimento sobre o assunto. Ela foi responsável, por exemplo, pela disciplina de verão com o assunto de gênero e diversidade, na qual foram abordadas as questões das minorias e seu cruzamento com a saúde. Além disso, ela encabeça uma linha de pesquisa sobre saúde da população negra, que historicamente é negligenciada.
“A universidade precisa desses novos saberes. A produção de conhecimento não pode ser feita por um grupo seleto e para um grupo seleto. Esse é o papel da universidade: revolucionar o conhecimento para que não seja produzido por poucos e para poucos. Que seja um conhecimento que de fato transforme a vida da sociedade e que melhore a vida do coletivo, e que represente essa diversidade. E acho que a mulher na ciência tem essa possibilidade”, avalia.
“Se eu sou uma das poucas, tenho que fazer muito bem feito”
O despertar para a vida acadêmica, para Leticia Rittner, professora da FEEC, veio após um período de sete anos trabalhando na indústria automotiva. De volta à Unicamp, onde havia se graduado, ela cursou o mestrado, o doutorado e, em 2014, ingressou como docente. No momento, é uma das cinco mulheres entre os 75 professores na FEEC, faculdade onde há a maior desproporção de gênero no corpo docente.
“A gente é sempre menos de 10%, na indústria também. É um ambiente muito masculino e onde a gente se sente um peixe fora d’água, do ponto de vista que a gente se destaca por ser minoria’, diz Letícia. Segundo a professora, apesar de ter passado por alguns momentos de piadas ou comentários desagradáveis ao longo de sua carreira, ela fez uma opção por ignorar. “No meu ponto de vista, a melhor forma de lidar com essa sensação de ser minoria ou de estar sendo questionada em sua capacidade é com resultados. Sempre tirei boas notas, sempre fui boa aluna, nunca desisti perante as dificuldades e o resultado falava por mim”.
Atuando em métodos de processamento e inteligência artificial aplicada a imagens médicas, especialmente de cérebros, a professora se destaca na área, que auxilia a pesquisa médica no entendimento dos mecanismos das doenças. Por ser uma das poucas professoras na FEEC, Leticia diz que costuma se cobrar para ser uma boa referência a outras mulheres. “Se eu sou uma das poucas, tenho que fazer muito bem feito para não ser um exemplo negativo. E me cobro principalmente para ser um bom modelo para quem vem depois”.
A baixa representatividade feminina na área, segundo sua avaliação, se dá pela falta de referências. “Poucas mães, poucas tias são engenheiras. É uma profissão que não passa na cabeça porque elas não conhecem outras mulheres na engenharia”, afirma. Ela também diz que a maternidade é um desafio, mas possível de conciliar. "Enquanto outras pessoas demoram dois anos para fazer o mestrado, eu demorei quase quatro. Enquanto outras pessoas demoram quatro anos para fazer o doutorado, eu demorei quase cinco porque eu tinha dois filhos pequenos. Mas eu fiz. Quem olha de longe pensa que é um desempenho ruim, mas foi uma escolha".
Mesmo com as dificuldades, Leticia pontua que há mulheres que são bem-sucedidas e líderes, apesar de serem pouco celebradas e pouco divulgadas. “É preciso dar destaque e espaço para mulheres que fizeram carreira, que têm sucesso, que têm uma posição de liderança, para que elas apareçam. Seja em uma revista, chamando a dar uma palestra, uma aula magna. Caso contrário, você sempre tem a sensação de que não há mulheres, que as mulheres não têm sucesso na área. Se há a sensação de que não têm mulheres, continua não vindo mulheres porque as poucas que têm estão escondidas”, observa.
Pensando nisso, ela conta que já há um tempo tem a preocupação de garantir a paridade de gênero nos eventos que organiza, pois geralmente só homens são chamados a compor mesas e a dar palestras. A docente também saliente que o grupo Women In Engeneering também atua no mesmo sentido, de expandir a presença feminina na área.“A diversidade é importante em qualquer área. É necessária em qualquer ambiente profissional. Ela enriquece e ter mais mulheres nas engenharias é benéfico tanto para a faculdade quanto para o mercado de trabalho”.
“Eu não tirei o diploma, mas você vai tirar”
A professora Katia Lucchesi Cavalca Dedini conta que surpreendeu a família quando, aos 17 anos, anunciou o desejo de cursar Engenharia Mecânica. “A gente precisa se situar no tempo, eu nasci em 1963 e naquela época realmente não era comum mulheres irem para a engenharia, quanto mais engenharia mecânica”. Apesar de não encontrar resistência ou reação negativa dos pais, ela conta que a expectativa era que fizesse algo “mais adequado”.
O incentivo, na trajetória acadêmica, veio especialmente pela mãe, que desde cedo afirmava: “eu não tirei o diploma, mas você vai tirar”. Imigrante italiana, a mãe de Katia veio no início da adolescência para o Brasil, após uma infância em meio à Segunda Guerra mundial. No interior paulista, trabalhava desde cedo com a família, casou e não teve mais a chance de estudar, a não ser como autodidata. “As mulheres da geração da minha mãe são umas heroínas que dificilmente faziam o que gostavam de fazer. A sociedade pesava muito”, observa Katia.
Assim, marcando as diferenças geracionais, a docente relembra o início da trajetória profissional, quando era a única mulher no estágio do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (CTA), em um grupo de 11 engenheiros. “Aceitação nunca é imediata, o diferente nunca é bem aceito, o pessoal olha com desconfiança. Tinha que ter paciência, muita humildade, ir devagar”, analisa. Dessa época, conta, teve início a paixão pela área de dinâmica de rotores e vibração, linha de pesquisa na qual atua até hoje.
Apesar de ter recebido proposta de trabalho no mesmo local, ao se formar, Katia conheceu a Unicamp e teve vontade de seguir os estudos. Assim, ingressa no mestrado em 1986 e dá sequência vida acadêmica. Após cursar o doutorado na Itália junto a seu marido, também professor na Engenharia Mecânica, em 1995 ela presta concurso e é aprovada como professora doutora. Hoje, ela é uma das seis docentes entre os 71 professores do curso.
Katia salienta, no entanto, que na época era visto com suspeição o fato do seu marido ser professor. “Quando eu cheguei aqui não me jogaram pétalas de rosa no chão para eu entrar, todo mundo olhou com desconfiança e o fato de ser casada com um professor daqui só complicou minha vida. Eu era a mulher do Dedini, eu não tinha nem nome quando cheguei”.
A dedicação à pesquisa, porém, foi superando qualquer desconfiança quanto ao trabalho da professora. Hoje, Katia é primeira e única mulher a integrar e o IFToMM Technical Committee in Rotordynamic, um comitê internacional que reúne pesquisadores de 48 países da área de dinâmicas de rotores. Além disso, ela preside pela segunda vez o órgão, em uma votação que foi unânime. “Apesar de sermos poucas, temos a chance de ser reconhecidas”, frisa.
Para as jovens que pensam em ingressar na carreira da engenharia mecânica, a professora dá o conselho de que não se autocensurem. “A mulher tem que tomar muito cuidado com a autocensura”, avalia. Um objetivo a cumprir, segundo Katia, é que a juventude não enfrente tanto os preconceitos existentes hoje, e que eram piores há décadas atrás. “Tem que ser paciente e jogar os jovens um passo mais para frente de onde se acabou”.
“A briga por igualdade é boa para todos os lados”
Esther Colombini é uma das oito professoras do corpo docente de 50 professores do IC da Unicamp. Engajada no estímulo à participação feminina na área, ela se apaixonou pela computação por entender que através dela é possível atuar em diferentes áreas e ter um impacto na transformação da sociedade.
Durante sua trajetória acadêmica, sempre foi uma das poucas mulheres nas turmas por onde passou. “Fiz mestrado e doutorado no ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica], que é um lugar primordialmente masculino. Eu nunca tive uma professora mulher na universidade, nunca tive no mestrado e tive uma no doutorado. Isso tem um impacto significativo para a gente, de não se identificar, não achar referências dentro dos cursos”, pontua.
A falta de referências, aliás, é entendida por ela como um dos principais motivos da baixa presença feminina nos cursos ligados à computação e das áreas de exatas em geral. “Até o fundamental 1 você tem muitas mulheres professoras, as “tias” que ensinam matemática. Aí você passa para o fundamental 2 e para o ensino médio e as professoras passam a ser primariamente de biológicas e humanas. Aí a aluna perde a referência”, explica Esther, referenciando as conclusões de um estudo realizado pela Microsoft na Europa.
Mas na computação, nem sempre foi assim. A área era ocupada principalmente por mulheres até meados da década de 1980, quando começaram a aparecer os computadores de uso pessoal. “Começou a haver um estigma de a computação ser uma área dura e não pertencente às mulheres e aí vira uma bola de neve porque quanto menos você se sente representado menos você vai atrás e menos acha que é para você”, observa a professora.
Pesquisadora da área de inteligência artificial e robótica, Esther encabeça diversas atividades para estimular o interesse das jovens pelo campo. “Como a gente enxerga os problemas da falta de representatividade e tem empatia por isso, há um grupo pequeno de mulheres no IC que têm trabalhado com o bem-estar das nossas alunas, para que se sintam melhores e mais bem acolhidas, mas também para propagar a ideia de que a computação sim é para as mulheres”, afirma.
Além disso desenvolve ações em torno da Olimpíada Brasileira de Robótica, competição da qual participou da criação, e na Mostra Nacional de Robótica (MNR) para verificar a participação feminina e busca dar visibilidade aos trabalhos desenvolvidos por elas. Dessa forma, por exemplo, todas as quartas-feiras são publicados projetos de jovens mulheres na página da MNR. A professora, neste ano, também é uma das colaboradoras do Meninas SuperCientistas. O programa, desenvolvido por alunas de graduação da Unicamp, visa estimular jovens do ensino fundamental a seguirem carreiras na ciência.
Para a docente, do mesmo jeito que é possível se apaixonar por história, medicina ou qualquer outra área, também é possível se apaixonar pela computação. “Qualquer coisa é para qualquer pessoa”, diz. E as mulheres, pontua, vêm se destacando nas turmas. Na última formatura de Ciência da Computação, dos cinco prêmios por desempenho entregues, os quatro primeiros foram para formandas. “Elas estão fazendo a diferença”, frisa Esther.
Atual coordenadora de curso, a docente pontua que a academia é um lugar mais tranquilo de trabalhar do que o mercado, apesar de reproduzir alguns problemas. “O número de mulheres na academia é maior do que o de homens, mas o número em cargos de destaque, com bolsa de produtividade, é absolutamente inferior. E não por falta de qualidade técnica. Tem estudos que mostram que quando uma mulher é a primeira autora de um artigo ele tem menos citação”.
Um ambiente mais igualitário, em todos os espaços, é, para Esther, uma luta que deve ser de todos. “Há grupos minoritários, não só de mulheres, mas de negros, e a gente precisa deixar esse ambiente favorável para todo mundo. Todo mundo cresce se o ambiente for bom. A briga por igualdade é boa para todos os lados”.