Pesquisa de doutorado mostra a sacralização de lideranças camponesas e indígenas vitimadas em conflitos de terra no Brasil
“Ele não foi enterrado, foi plantado”, afirmam reiteradamente os indígenas em respeito ao cacique Xicão (Francisco de Assis Araújo), dotando o líder assassinado em 1998 de materialidade nas águas, matas e terras do povo Xukuru do Ororubá, em Pesqueira (PE). Isso também é recorrente nas narrativas sobre a missionária Dorothy Stang, assassinada em 2005 no município de Anapu (PA). “Os peregrinos afirmam que o corpo dela não foi enterrado, mas plantado, como semente, e que seu sangue derramado fecunda o solo, fertiliza a plantação e fortalece a luta pelos direitos à terra e à vida”, escreve o antropólogo Edimilson Rodrigues de Souza em “Sacralização de lideranças camponesas e indígenas assassinadas em contextos de conflito de terra no Brasil”, tese de doutorado orientada pela professora Emília Pietrafesa de Godoi, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
“Na verdade, esta pesquisa começou no meu mestrado, quando tive acesso, em 2010, aos arquivos de Raimundo Ferreira Lima, o Gringo. O filho dele, Alex Costa Lima, era ainda pequeno quando o pai foi assassinado em 1980 e, quando cresceu, criou o hábito de colecionar reportagens sobre o crime, citações em livros e artigos e vídeos”, explica o autor da tese. “Todos os materiais aparecem como denúncia da violência no campo, mas alguns indicam a transformação daquela liderança em uma figura simbólica de luta. Também conversei com a viúva, Maria Oneide, que me contou ter participado de romarias em que era convidada a falar da trajetória do marido. Soube ainda que aconteciam romarias da terra e da água, em homenagem a lideranças sindicais.”
Embora sem tempo hábil para explorar o tema no mestrado – em que se ateve à biografia de três líderes: Gringo no sul do Pará, padre João Bosco no nordeste do Mato Grosso e Xicão Xukuru em Pernambuco – Edimilson Rodrigues foi convidado ainda naquela época a acompanhar a Romaria dos Mártires da Caminhada. “Em 2011, na romaria que acontece a cada cinco anos em Ribeirão Cascalheira, estavam imagens e narrativas das três lideranças que estudei e de várias outras. Os diálogos dos peregrinos eram permeados por denúncias de violação dos direitos humanos e ali multiplicados como forma de superação dos contextos de violência e morte. Esta romaria serviu como propulsora do meu projeto de doutorado.”
Na tese, o antropólogo analisa os efeitos da transformação ritual de lideranças camponesas e indígenas assassinadas em mártires da terra e encantados. Para compreender a dimensão simbólica da luta pela terra, água e floresta na Amazônia e Nordeste brasileiros, ele realizou trabalhos de campo de caráter etnográfico em caminhadas organizadas e/ou apoiadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Conselho Indigenista Missionário (CIMI): a Romaria da Terra e da Água Padre Josino, nas cidades de São Sebastião do Tocantins e Buriti do Tocantins; a Romaria da Floresta, em Anapu (PA); a Romaria dos Mártires, em Ribeirão Cascalheira (MT), sede da Galeria dos Mártires da América Latina; e a Assembleia Xukuru do Ororubá, em Pernambuco.
Rodrigues conta que, ao refazer o caminho dos mártires e encantados entre os locais dos assassinatos e dos sepultamentos, observou a ação de sistemas simbólicos, como afirmações de que os líderes mortos “continuam vivos e presentes na caminhada”, foram “plantados como sementes” ou que seu “sangue fortalece a luta pela terra”. “O ato narrativo e a caminhada sugerem a modificação do estatuto da vida e da morte ao recolocar o líder martirizado e encantado no centro do enfrentamento cotidiano por direitos humanos, à terra, água, floresta e vida. A partir de narrativas orais (cantos, falas) e visuais (fotografias, objetos pessoais, painéis, camisetas) estes grupos trazem à tona a dimensão criativa e reivindicativa destas romarias e assembleias”.
Dados alarmantes
Edimilson Rodrigues apresenta estatísticas do Cimi e da CPT, que considera cada vez mais alarmantes, sobre enfrentamentos e mortes na Amazônia e Nordeste envolvendo castanheiros, seringueiros, garimpeiros, posseiros e indígenas. “No período de 1985 e 2017, a CPT registrou 1.438 casos de conflitos, com 1.904 assassinatos; desse total, apenas 113 casos foram julgados, com a condenação de 31 mandantes e 94 executores. Nesses 32 anos, o estado do Pará é líder no país, com 466 casos e 702 vítimas, seguido por Maranhão (168 vítimas em 157 casos) e Rondônia (147 assassinados em 102 casos). Vários desses atores denunciaram apropriações ilegais, grilagem e apoiaram ou lideraram mobilizações pelo direito de permanência e retomada de territórios tradicionalmente ocupados.”
O autor da pesquisa ressalta que as cerimônias estão articuladas com setores mais progressistas da Igreja Católica Romana, desde que missionários, padres, freiras e leigos foram atuar nestas zonas de conflito, nas décadas de 1970 e 80, para a formação de lideranças e de Comunidades Eclesiais de Base, chamando a vizinhança rural para cursos bíblicos e celebrações de missa, e também para oferecer formação política e de educação popular. “Esta formação, naquele momento, estava baseada primeiramente na proposta pós-Concílio Vaticano II de uma nova igreja, a ‘igreja do povo de Deus’, como narram esta transformação em seu interior.”
Esta transformação na igreja, segundo Rodrigues, teve forte eco na América Latina, por ser um continente marcado por violência e pobreza, genocídios indígenas e grande período de escravatura de populações negras. “Tem-se então na década de 70 a articulação de religiosos para o trabalho com a população do campo, seja camponesa ou indígena. Por outro lado, religiosos estrangeiros migraram para o Brasil (pude acompanhar franceses e norte-americanos em campo), motivados pela proposta de uma nova igreja. Convém lembrar que era um período de ditadura militar, de violência de Estado, com um processo de violação de direitos fundamentais e da dignidade de populações vitimadas pela fome.”
O antropólogo acrescenta que neste contexto começa a aparecer a ideia de martírio e romaria dos mártires da terra, a partir do assassinato do padre João Bosco Penido Burnier, confundido com o bispo Dom Pedro Casaldáliga, dentro de uma delegacia, em 1976. “O crime teve grande repercussão, seguida da mobilização da igreja e da população de Ribeirão Cascalheira numa caminhada como ato de protesto. O movimento seguiu pelas décadas de 80 e 90, mesmo no período de redemocratização, já que áreas da Amazônia e de Pernambuco continuam sendo palco de muita violência de Estado e de uma política de espoliação de territórios de comunidades tradicionais.”
Na visão de Rodrigues, a adesão às caminhadas, inicialmente local, foi se ampliando com a participação de movimentos como das Comissões de Direitos Humanos, de Justiça e Paz, CNBB e Teologia da Libertação, sendo que o assassinato de missionários ou religiosos estrangeiros, como de Dorothy Stang, trouxe contornos de denúncia internacional. “A religiosa norte-americana trabalhou em Anapu desde quando o município era vila, mediando direitos e demandas por educação e saúde básicas, e na formação de professores. Seu assassinato resultou na Romaria da Floresta, com pessoas que conviveram e foram atendidas por ela.”
Relação afetuosa
O autor da tese vê, portanto, uma relação afetuosa da população com as lideranças mortas, em que as romarias oferecem a possibilidade de se reunir e partilhar o sofrimento e a saudade, além do aspecto político de denunciar o assassinato e outros contextos de violência. “Na minha perspectiva, é uma adesão em rede, de solidariedade entre camponeses e indígenas de áreas distintas. É o que tento demonstrar com mapas indicando onde a romaria acontece e de onde as pessoas vieram. Na Romaria da Floresta, que acompanhei em 2016 e 17, o número de caminhantes mais que dobrou de um ano para o outro; na Assembleia Xukuru do Ororubá, quase que triplicou.”
Edimilson Rodrigues esclarece que cada cerimônia tem sua especificidade, mas de modo geral envolvem oficinas de educação popular, formação política e falas de lideranças sobre demandas de luta. “Além da homenagem a lideranças assassinadas, as cerimônias reúnem lideranças ameaçadas de morte, para que a ameaça vire denúncia naquele lugar. Os rituais também trazem momentos de ludicidade, com músicas, danças e encenações teatrais. Contudo, o aspecto mais importante de todas as cerimônias é o ato de caminhar, entre a sepultura até o lugar onde o líder foi assassinado.”
No caso do padre João Bosco, os peregrinos caminham do centro de Ribeirão Cascalheira até a delegacia onde ele foi baleado na nuca por um policial (o prédio acabou derrubado e transformado no Memorial do Martírio); a caminhada por Xicão Xukuru se dá da sepultura na Aldeia Pedra D’Água até a casa de sua irmã, local do assassinato; por Dorothy Stang, o percurso é de 55 quilômetros, do Centro de Formação Pastoral São Rafael até a área de assentamento PDS Esperança, em Anapu, onde foi morta – uma particularidade é que há um túmulo também nesse local. “Nos croquis da tese, os locais do assassinato e do sepultamento – e o percurso – aparecem como fortes marcadores, como um anticaminho da morte ou hipercaminho da vida. As narrativas tratam de vida, de sangue que fortalece, de semente que brota, e que se multiplicam nos caminhantes, virando uma nova luta.”
Contexto atual
Sobre o atual contexto dos conflitos por terras no Brasil, o autor da pesquisa atenta para dois marcadores importantes no período de redemocratização, que são de proteção e ao mesmo tempo de desproteção das lideranças camponesas e indígenas pelo Estado. “Nos anos 90 e 2000 temos uma lista de lideranças protegidas por meio de órgãos como as Secretarias Especiais de Direitos Humanos e da Mulher, do Ministério da Justiça. Com o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de Temer como presidente, as lideranças passam a fazer parte de uma lista de ‘marcados para morrer’ que circula entre fazendeiros e oligarquias das áreas de conflito; os órgãos de proteção começam a se afastar e se tem um processo de criminalização dos movimentos e de suas lideranças.”
O antropólogo alerta para as notícias revelando um aumento do número de camponeses e indígenas assassinados, ameaçados e expropriados dos territórios tradicionais nos últimos dois governos. Dados de 2015 divulgados pela CPT e o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH) apontam 50 mortes, 114 pessoas ameaçadas e 50 tentativas de homicídio em áreas de conflitos de terra, sendo que 90% destes casos ocorreram em Rondônia, Pará e Maranhão; em 2016, os conflitos continuaram concentrados na Amazônia e Nordeste, somando 58 dos 69 assassinatos registrados.
Entre março e maio de 2017, enquanto o pesquisador acompanhava os preparativos da Romaria Padre Josimo e da Assembleia Xukuru, grandes conflitos eclodiram em áreas próximas: no dia 20 de abril, em Colniza (MT), 10 homens foram assassinados por um grupo de pistoleiros e diversas pessoas feridas e outras desaparecidas; em 30 de abril, em Viana (MA), um grupo armado atacou uma aldeia do povo Gamela e feriu aproximadamente 13 pessoas; Kátia Martins, presidente de uma associação de agricultores familiares na divisa de Castanhal e São Domingos do Capim (sudeste do Pará), foi assassinada com cinco tiros numa embosca em 04 de maio; em 24 do mesmo mês, nove homens e uma mulher foram mortos num acampamento em Pau D’Arco, também no sudeste paraense.
Edimilson Rodrigues atribui tanta violência também à omissão do Estado, que deixou de demarcar terras indígenas e de conceder títulos de assentamento para camponeses acampados ao longo de estradas. “Assim como nas décadas de 60, 70 e 80, a violência de Estado se repete agora, apoiando, inclusive com aparato policial, intimidações e assassinatos produzidos por oligarquias locais, fazendeiros, empresas de extração de madeira e minério, que invadem terras tradicionais, enquanto o governo sucateia os órgãos que protegiam essas populações. As queimadas aparecem nesse contexto, como ‘incidentes’ devidos ao clima, a chamas trazidas pelo vento.”