Dissertação defendida no IG analisou resultados da ação que visa a construção de cisternas com capacidade de armazenamento de 52 mil litros de água da chuva em escolas rurais
Quando pensamos na seca do semiárido brasileiro, uma das imagens que nos vem à memória é a do quadro “Retirantes”, de Cândido Portinari - uma família pobre, carente de água e de alimentos saindo de sua região em busca de uma vida melhor. Mas como reverter a situação retratada na obra e tão marcante na vida de quem mora naquela região? Desde o período colonial, políticas públicas priorizam ações de combate à seca. No entanto, esse é um fenômeno natural recorrente, impossível de ser combatido. Há cerca de 20 anos distintas organizações da sociedade civil, como associações de agricultores, cooperativas, sindicatos rurais, entre outras, reuniram-se para transformar a relação do homem com o espaço a partir dos princípios de convivência com o semiárido. Nasceu assim a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), centrando suas ações no direito ao acesso à terra e à água.
Uma das ações desenvolvidas é o Programa Cisternas nas Escolas, que visa a construção de cisternas com capacidade de armazenamento de 52 mil litros de água da chuva em escolas rurais do semiárido brasileiro. O Programa foi o foco da dissertação de mestrado de Kezia Andrade dos Santos, defendida no início de fevereiro no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, no Programa de Ensino e História de Ciências da Terra. A pesquisa teve como orientador Roberto Greco, docente e coordenador da Comissão de Extensão do IG, e como co-orientadora Priscila Pereira Coltri, pesquisadora e diretora associada do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri).
Kezia analisou como o Programa contribui para ressignificar o entendimento acerca do fenômeno da seca e a convivência no semiárido brasileiro, especialmente com a população rural. “Os resultados obtidos mostram que o Programa realmente contribui a partir das capacitações oferecidas sobre educação contextualizada, a partir da valorização do homem do campo e da valorização do conhecimento local sobre o entendimento acerca do fenômeno da seca”, aponta.
A ideia de pesquisar o tema surgiu em 2017, quando Kezia trabalhava na Secretaria de Educação do município de Mucugê, na Bahia. Ela foi a responsável por acompanhar a implantação do programa em 19 escolas da zona rural da cidade. “Participei de todas as etapas – cadastramento, execução da obra, fiscalização, organização das capacitações”, disse a mestre. “Ela teve uma posição privilegiada para acompanhar e construir uma rede de contatos. Com isso, tentamos analisar os resultados desse programa ao longo do tempo. No grupo de pesquisa Geociências e Sociedade que coordeno, uma das linhas de pesquisa se dedica ao ensino. Por isso, nosso objetivo foi entender como a metodologia utilizada no projeto de ensino contextualizado contribuía para o aprendizado e atividades de educação da escola e para essa mudança de paradigma”, disse o orientador Roberto Greco.
A partir da troca do paradigma combate à seca por convivência com a seca, a dissertação contribui para entender melhor o que é o semiárido, o que é a vivência das populações naquela área e como as populações locais têm grande potencialidade sobre o ambiente em que vivem. “O conhecimento pode ser adquirido e passado por gerações. Há valorização do homem do campo, das mulheres, dos próprios alunos na produção do conhecimento. Os professores têm um novo olhar sobre o que é o ambiente semiárido, sobre o que é uma cisterna e sobre o acesso à água”, aponta Kezia.
Para Greco, com as propostas da ASA, que utilizam tecnologia social a baixo custo, moradores rurais podem se empoderar e aprender a utilizar essas obras. “Na maioria dos casos são eles mesmos que constroem as cisternas utilizando os materiais fornecidos pelo Programa. Já está mudando a perspectiva das pessoas que estão tendo acesso a água, mas também estão entendendo seus direitos e responsabilidades, adquirindo um novo patamar de cidadania”, disse Greco. De 2009 a 2017, 571 municípios do semiárido brasileiro já haviam sido contemplados com o Programa.
Convivência com a seca
No imaginário popular brasileiro é impossível de se habitar na seca e impossível de conviver com ela. “Essa visão de combate indica que você está ligado à fatalidade do caso e da situação em que está empregado. Já o paradigma da convivência mostra que é possível viver de forma digna com as potencialidades do local, que eram negligenciadas como se fosse um lugar só de limitações. Sob o olhar da convivência, esse é um fenômeno natural que está ali em dado espaço de tempo, mas que é possível, através de técnicas certas e da utilização correta do solo e dos próprios recursos naturais, conviver com esse ambiente”, lembra Kezia.
Priscila Coltri, que é agrometeorologista, conta que passou a ver o clima sob um ponto de vista diverso ao que está acostumada. “O Cepagri lida com água. Com a dissertação, passamos a olhar a seca pelo lado da convivência. Fomos educados a pensar que o sertanejo precisa fugir da seca que causa fome e que naquela região nada se planta. Mas é possível conviver com esse fenômeno, por exemplo, se plantarmos as espécies arbóreas certas”, aponta.
Os estudos também indicaram que o Programa colabora para o desenvolvimento regional de forma sustentável e participativa. Segundo a Kezia, “ao respeitar o ambiente e aplicar corretas técnicas de manejo sustentável, a população tem voz ativa. A educação também é um pilar dessa convivência, que é importantíssima para a construção do conhecimento. Assim como a água, ela passa a ser um instrumento de direito e não de favor”.
O Programa visa ainda a capacitação de profissionais que atuam diretamente nas escolas – merendeiras, agentes de limpeza, professoras, coordenadores e diretores. Kezia teve contato com esses atores sociais durante sua dissertação. “Através de oficinas de gerenciamento de recursos hídricos escolar, as merendeiras, por exemplo, passam por capacitação para que entendam a dinâmica das cisternas e como é o cuidado com a água”, informa a pesquisadora. Já a população geral tem reuniões com técnicos em que a comunidade passa a entender o que pode ser feito através do programa. “A cisterna não é só para a escola. Se faltar água na comunidade, a população tem direito de utilizá-la”, lembra Kezia. A comunidade tem, portanto, o poder de participar e ajudar. “Muitas pessoas levavam água e bolos e se sentiam parte da construção”, finaliza.