Museóloga foca tese de doutorado em diário de viagem daquele que formou a principal coleção de arte europeia da América do Sul
“Bardi está muito esquecido”, diz a museóloga catarinense Eugênia Gorini Esmeraldo, que por 14 anos foi assistente de Pietro Maria Bardi (1900-1999), fundador e diretor do Museu de Arte de São Paulo (Masp), e que resolveu tirá-lo do esquecimento em tese de doutorado focada em diário de viagem escrito em 1933 – então ainda jovem, o galerista foi enviado de Nápoles, durante o governo fascista de Benito Mussolini, para organizar uma exposição de arquitetura racionalista italiana em Buenos Aires. “O navio aportou em alguns portos brasileiros, de modo que foi o primeiro contato de Bardi com o país que, anos depois, em 1946, ele escolheria para morar a convite do empresário Assis Chateaubriand, para juntos criarem o Masp.”
Chateaubriand, ou Chatô, era um dono de jornais, rádios e revistas que depois introduziu a televisão no Brasil (a hoje extinta TV Tupi). Bardi, nascido em La Spezia, participou da fundação do museu desde o primeiro dia. “Eles se conheceram no Rio assim que Bardi chegou ao país, com Lina Bo [1915-1992], sua mulher, arquiteta cada vez mais reconhecida, o que é muito justo. Bardi passou a escrever nos jornais de Chatô em São Paulo e no Rio, divulgando que seria criado um museu de arte. A inauguração ocorreu em outubro de 1947 e foi um organismo cultural inédito, com escolas, orquestra, cursos e conferências. O acervo pequeno do início se fortaleceu com as obras adquiridas na Europa e Estados Unidos por Bardi, grande conhecedor de pintura e do mercado de arte. É a principal coleção de arte europeia da América do Sul e, até hoje, uma referência internacional”, conta a autora da tese.
Eugênia Gorini, que havia feito jornalismo antes de vir para São Paulo, foi aceita no curso de especialização em museologia do Masp em 1978 e, em menos de um mês, já estagiava com Anna Carboncini, assistente de Bardi. “Ele escrevia seus textos à mão e, devido à prática jornalística, eu conseguia ler os manuscritos e passei a transcrevê-los. Isso nos aproximou e em fevereiro de 1979 virei sua assistente – Anna ficou responsável pelo acervo. Apesar da diferença de idade, eu me tornei próxima de Bardi, que também dava aulas no curso de museologia e eram muito boas”, recorda a museóloga, que foi orientada pelo professor Jorge Sidney Coli Junior, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Jorge Coli orientou a aluna também no mestrado (2000), em torno de três obras de Edouard Vuillard, da coleção do Masp. Quanto à pesquisa de doutorado, o professor a considera fora do comum em vários sentidos, e não apenas pela alta qualidade. “Eugênia a realizou num momento da vida em que um título de doutor não incide sobre sua carreira, como ocorre com o pesquisador que tem pela frente um percurso profissional. Fez seu trabalho por pura generosidade intelectual. Além disso, a tese é particularmente preciosa, porque a pesquisadora foi assistente do professor Bardi durante longos anos e tem uma familiaridade não apenas intelectual, mas pessoal com seu objeto de estudo. Enfim, revela documentos inéditos, que ela é uma das poucas pessoas a conseguir decifrar (a escrita de Bardi é quase ilegível), cruciais para a história da arte no Brasil.”
Enquanto assistente do diretor, a museóloga participava de todas as atividades do Masp, até porque eram poucos os funcionários: das montagens de exposições, que variavam a cada 15 dias, geralmente individuais de artistas novos ou consagrados; de pesquisas para as exposições; das respostas à correspondência diária do diretor; do arquivo histórico que se formava; da vistoria dos livros recebidos para a biblioteca. “Trabalhei no Museu até 2017 [39 anos] e fiquei com muitos manuscritos de Bardi quando ele saiu em 1992. Bardi está muito esquecido. Na Unicamp, ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa em 1989.” (Leia matéria publicada no JU 40, página 9)
Eugênia comenta a experiência de retomar os estudos em sua faixa etária e diverte-se por ter mais idade que o orientador – ela fez 73 anos em 12 de agosto (dois dias depois da defesa), ao passo que Jorge Coli só faz em 29 de novembro. “Foi interessante pelo óbvio enriquecimento e pela constatação de mudanças impressionantes no sistema brasileiro de ensino, além da variedade de origens geográficas e étnicas dos meus colegas. Também observei a diversidade de assuntos que permeiam o estudo da arte atualmente: cinema, arte pop, arte afro-brasileira, poesia, textos clássicos. Ao expor aos jovens colegas o objetivo da tese e minhas ideias iniciais, ainda com o título 'A escrita de Bardi', em abril de 2014, e perceber o interesse deles pela figura hoje mítica com quem convivi, foi impactante. E reforçou a necessidade de retirá-lo do esquecimento. Aos poucos foquei o trabalho no Diário de Viagem.”
Segundo a pesquisadora, trata-se de um texto inédito e muito pessoal, escrito na viagem de navio para Buenos Aires, e que foi encontrado há alguns anos por Ivani Di Grazia Costa, coordenadora da biblioteca do Masp. “Estava em meio aos livros raros que Bardi e Lina doaram ao museu em 1977: uma lombada pequena, escurecida pelo tempo, que chamava pouca atenção. Foi uma boa surpresa encontrar o diário de viagem sobre o qual Bardi às vezes comentava. Era seu primeiro contato com cidades brasileiras, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos; no retorno o navio atracou em Santos e com outros passageiros Bardi esteve em São Paulo, onde visitou alguns lugares – apreciou o Butantã, por exemplo. No manuscrito aparece um homem ainda jovem, passando por alguns conflitos pessoais. Nota-se seu espírito curioso, observador, por vezes irônico, coletor de informações e dados para transformar em textos.
Na ditadura Mussolini
Eugênia observa que o maior desafio, colocado por Jorge Coli ao propor o diário como objeto do estudo, implicou examinar a época em que Pietro Maria Bardi esteve ligado ao regime fascista de Benito Mussolini, que o convidou a dirigir a Galleria d'Arte di Roma em 1930. “Ele nunca escondeu isso. Bardi atuava como galerista em Milão e de repente ascendeu ao poder central na capital italiana – ali fez carreira entre a elite e os intelectuais. Uma vez conversamos a respeito, contou que o Duce prometia uma Itália melhor para todos. O país tinha sido unificado no final do século 19, portanto, estava nos inícios a sua democracia, mas ainda havia a figura do rei. Foi complicado entender a realidade daquele momento político complexo (os problemas, as polêmicas, as disputas internas do regime), algo distante de nosso mundo e ainda hoje em exame.”
Contudo, conforme salienta a ex-assistente, Bardi sempre se considerou jornalista e já ganhava notoriedade (e problemas) por sua capacidade de comunicação, sendo sabido que, como muitos dirigentes e intelectuais no regime, foi posto sob vigilância confidencial nos anos 1930. “Embora não fosse panfletário, ele escreveu muito em jornais contra a arquitetura oficial adotada e preferida por Mussolini, que julgava pesada e, sobretudo, ultrapassada; e em alguns artigos irônicos comentando casos do regime, não agradava à vigilância. Busquei dados daquele momento em publicações italianas em que Bardi é sempre visto como um galerista importante, hábil, articulado e ativo, que apoiava os artistas, inclusive alguns judeus que depois foram perseguidos ou se exilaram. Por volta de 1938 foi proibido de assinar artigos e não escreveu mais para jornais.”
A autora da tese transcreveu o diário de viagem da mesma maneira que Bardi escreveu, com os mesmos espaços, ao passo que no português usou formato corrido e tom diferente, incluindo comentários de fatos que conseguiu localizar e deduzir. Ela agradece a ajuda de Anna Carboncini e Paolo Rusconi para decifrar termos do manuscrito, bem como de Raúl Antelo sobre personagens citados e de Jorge Schwartz para elucidar expressões locais. “Creio que o leitor compreenderá um pouco mais de uma pessoa que muito fez pela cultura brasileira. Seu período no Brasil é conhecido por seus livros sobre o Masp, mas na tese é o Bardi ainda italiano, de modo que traz este aspecto novo. Tentei sempre manter a isenção e separar assuntos para evitar o perigo da complacência e da hagiografia [biografia de santos], o que nem ele gostaria.
Doações ao Brasil
Pietro Maria Bardi naturalizou-se brasileiro em 1951 e, de acordo com Eugênia Gorini, não escondia seu orgulho por ter adquirido para o país grandes pinturas como o “Conde Duque de Olivares” de Diego Velazquez, “A Ressurreição de Cristo” de Rafael (neste ano se comemora os 500 anos do artista) e obras de Monet, Manet e Cézanne. “O Masp é conhecido pela alta qualidade das obras impressionistas e Bardi tinha o olho para fazer a escolha certa. Ele mesmo se jactava desse seu talento. Um aspecto importante é que Bardi doou muito ao Brasil. Deu várias pinturas para o Masp; os desenhos que tinha de Le Corbusier, ilustrando conferências feitas no Rio de Janeiro ainda antes da sua chegada ao país, doou ao Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional]; e o casal ainda deixou sua residência, a Casa de Vidro, no Morumbi, para ser um centro de pesquisa de arquitetura e arte, que justamente se chama ‘Instituto Lina Bo e P.M. Bardi’”.