Força-tarefa de combate à Covid-19 resulta em dois trabalhos divulgados na plataforma medRxiv e assinados por 65 e 74 autores, respectivamente
Dois estudos coordenados por pesquisadores da Unicamp, divulgados na plataforma medRxiv, trazem novas e importantes informações sobre a Covid-19 – e representam um frutífero exemplo de cooperação entre dezenas de cientistas de universidades e institutos de pesquisa. O primeiro trabalho, assinado por 65 autores e publicado em 28 de setembro, mostra que o vírus Sars-Cov-2 é capaz de infectar e matar linfócitos, comprometendo o sistema imunológico do paciente. A segunda pesquisa, que tem 74 colaboradores, postada em 13 de outubro, comprova que o novo coronavírus pode infectar também os astrócitos (células do tecido cerebral), levando, mesmo para indivíduos com a forma leve de Covid-19, o risco de prejuízos de funções como memória, atenção, consciência e linguagem.
Ambos os estudos já vêm impactando a área de combate à pandemia. Por isso, o que vale ser destacado agora é o sucesso deste modelo de colaboração científica, na opinião do professor Marcelo Mori, que coordenou o estudo com linfócitos juntamente com o professor Alessandro Farias, seu colega no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. “É um modelo já adotado por muitos grupos no Brasil e mundo afora – a exemplo dos Cepids [Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão] financiados pela Fapesp e dos INCTs [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia] do CNPq. É uma forma de interação que foi potencializada pela pandemia de Covid-19.”
Mori destaca também a maneira como os pesquisadores lidaram com a doença, montando uma força-tarefa que desde o início foi bastante interdisciplinar e muito focada em metas. “Todos se uniram de forma altruísta e solidária, com o propósito único de ajudar a sociedade a enfrentar o novo coronavírus. Outro aspecto que potencializou o modelo foi a organização, diante da tendência de que, por causa da vontade de encontrar soluções individualmente, os cientistas acabassem dispersando essas iniciativas. A força-tarefa juntou os pesquisadores para discutir e divulgar ideias, avaliando o que cada um tinha de melhor e como contribuir. Os grupos foram subdivididos em frentes diferentes, mas com um objetivo comum. Foi um grande exemplo de cooperação.”
Segundo Marcelo Mori, o trabalho envolvendo linfócitos já começou com parcerias e aproveitando a expertise de cada um, como de Alessandro dos Santos Farias, chefe do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do IB-Unicamp. “O professor Farias trabalha com linfócitos há muito tempo e foi um dos que capitanearam a força-tarefa, inclusive coordenando a frente de diagnóstico. Ele tinha interesse em entender como o vírus Sars-Cov-2 afetava estas células, pois já se sabia que havia uma diminuição na quantidade de linfócitos em pacientes de Covid-19.”
Na chefia do Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual da Unicamp, Mori, por sua vez, buscou a colaboração do grupo do professor Robson Carvalho, da Unesp, para identificar, computacionalmente, a interação da proteína da espícula do vírus com uma molécula da superfície dos linfócitos. “Os testes mostraram que a interação realmente acontece. Foi importante entender como o vírus impacta no sistema imune, pois é esta resposta imunológica que determina se o indivíduo vai progredir para a forma grave da doença ou não. E observamos que o mecanismo utilizado pelo Sars-Cov-2 para infectar células importantíssimas na orquestração desta resposta é parecido, embora não exatamente igual, ao do HIV. Achamos que a elucidação deste mecanismo pode ajudar a entender como se dá a disfunção imunológica que acontece durante a Covid-19.”
O professor da Unicamp atenta que para viabilizar o estudo foi necessária a ajuda de cientistas computacionais, como do professor Munir Skaf, do Instituto de Química, que faz modelagens de interações moleculares, bem como de virologistas, imunologistas e outros especialistas de áreas diversas, todos organizados em grupos. “Tínhamos reuniões semanais para discutir os resultados, que compartilhávamos com grupos no WhatsApp. Eu e Alessandro Farias coordenávamos as iniciativas para que cada um atuasse de forma pontual, a fim de construir uma história. Sabíamos os pontos importantes a serem estudados e isso acabou movendo a pesquisa muito mais rapidamente.”
Marcelo Mori participou do estudo mais recente divulgado na plataforma medRxiv, coordenado pelo professor Daniel Martins-de-Souza, também do IB-Unicamp. Ali, aponta Mori, foram identificadas alterações estruturais no cérebro associadas a sintomas neuropsiquiátricos, como ansiedade e problemas cognitivos, em indivíduos infectados com o Sars-Cov-2 mas que não desenvolveram sintomas respiratórios graves. “Observamos esses sintomas neuropsiquiátricos entre 20% e 50% dos infectados, o que é bastante significativo; e isso no período de 20 a 120 dias pós-detecção do vírus, ou seja, os sintomas perduram por um tempo, que é um aspecto preocupante.”
Na tentativa de associar as alterações neuropsiquiátricas e estruturais do cérebro ao mecanismo de infecção do novo coronavírus, verificou-se que ele conseguia alcançar o sistema nervoso central e que estava presente nos pacientes principalmente em células chamadas de astrócitos – muito importantes no cuidado do neurônio e para que o funcionamento do sistema nervoso aconteça. “Quando esses astrócitos são infectados, acabam alterando seu perfil metabólico e o padrão de secreção de moléculas que leva à morte dos neurônios em maior quantidade. O estudo é importante para determinar, ou pelo menos propor, o mecanismo de disfunção do sistema nervoso observada em alguns indivíduos infectados”, diz Mori.
Faceta assustadora
Daniel Martins-de-Souza, que liderou esta pesquisa com astrócitos, foi quem criou o Laboratório de Neuroproteômica no IB-Unicamp, o primeiro da América Latina, onde se estuda as vias bioquímicas do sistema nervoso central associadas à esquizofrenia. “Quanto mais soubermos sobre o Sars-Cov-2, mais ferramentas teremos para combatê-lo, ainda que os resultados de nossa pesquisa pareçam assustadores: 'poxa, mais uma faceta desse vírus, pode também chegar no cérebro?' Sim. Mas a médio e longo prazo, os resultados podem indicar tratamentos mais assertivos em relação a onde o vírus está no corpo: se a pessoa tem sintomas neurológicos, será que adianta tratar a doença no pulmão? Aparentemente, um remédio para a Covid-19 não existe, então, vamos ter que tratar sintomas e curar a doença onde quer que ela se instale.”
Obviamente, Martins não trabalhou sozinho. As investigações foram conduzidas por diversos grupos da Unicamp e da USP, todos financiados pela Fapesp, e também colaboraram pesquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino (Indor) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Este modelo de cooperação acaba sendo acentuado quando existe uma emergência por respostas – o que fizemos na Unicamp foi juntar diversos pesquisadores de três Cepids, ampliando e potencializando o trabalho, porque temos que responder rápido. Dificilmente conseguiremos concorrer com países como Estados Unidos ou da Europa, em termos de qualidade da ciência, fazendo pesquisas sozinhos no laboratório.”
Daniel Martins afirma que outro ponto importante a ressaltar no modelo colaborativo é a operacionalização, o que demanda organização e uma pessoa que consiga transitar por todos os grupos para integrá-los. "São 74 autores, que estão distanciados não somente em diferentes departamentos da Unicamp, mas também em outras universidades e institutos. A operacionalização da pesquisa é baseada no diálogo amigável e sincero entre os pesquisadores e no compromisso de cumprir tarefas, mostrando que todos estão trabalhando em prol da ciência, pelo melhor que podemos fazer para resolver essas questões importantes.”
Laboratório aberto
O professor Marcelo Mori cita parceiros fundamentais nos dois estudos divulgados na medRxiv, como os patologistas Alessandro Fabro e Thiago Cunha, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), e Paulo Saldiva, da USP de São Paulo; na Unicamp, Clarissa Yasuda, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e do Instituto de Pesquisas sobre Neurociências e Neurotecnologia (Brainn), e José Luiz Proença Módena, do IB, que literalmente abriu seu Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve) para todos os grupos de pesquisa, incluindo os de fora da Unicamp. O Leve é o único espaço da Universidade com nível de biossegurança 3 (NB3), necessário para trabalhar com organismos altamente patogênicos, como o vírus Sars-Cov-2.
Mori enaltece ainda a grande vontade dos alunos em ajudar, motivados também pela importância dos achados. “Mais do que publicar um artigo como primeiro autor, eles eram movidos pelo simples fato de contribuir, o que foi muito importante. Também no hospital, enquanto um neurologista focava na sua parte, muitas pessoas coletavam amostras de pacientes, talvez distantes do que acontecia no laboratório, mas sabendo que estavam contribuindo para o entendimento de algo importante – e fizeram seu trabalho de forma bastante eficiente. Não tivemos grandes problemas de transferência de dados ou de colaboração entre as pessoas, ao contrário.
Marcelo Mori considera que este modelo de cooperação científica é necessário para as instituições brasileiras, a fim de que o país possa competir propondo métodos e ações de igual para igual com grupos de outros países, como no caso destes dois artigos recém-depositados na plataforma medRxiv. “No caso da Covid-19 foi mais fácil porque o objetivo estava muito bem definido e as pessoas com vontade de colaborar, voluntariamente. Mas uma questão deve ficar para o pós-pandemia: como motivar as pessoas a trabalharem em grupo e de forma tão solidária, diante de problemas que não sejam tão urgentes ou emergentes, mas em benefício da sociedade?”.
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