Bióloga enfrenta até madrugadas de chuva para acompanhar a abertura de flores e a visita de polinizadores em espécie rara e com potencial econômico
Uma longa escada, carregada com a ajuda de colegas pesquisadores para alcançar as flores das árvores de 7 a 10 metros de altura, foi uma ferramenta fundamental que a bióloga Marília Claudiano Tavares utilizou para sua dissertação de mestrado. Ela investigou se uma espécie de árvore que faz parte de um gênero economicamente importante no Brasil, afortunadamente encontrada no campus da Unicamp em Campinas, era capaz de se reproduzir naturalmente mesmo fora de seu ambiente original ameaçado pelo desmatamento. “Não era fácil passar madrugadas em cima das árvores acompanhando a antese (abertura) das flores, observando os visitantes florais e fazendo os cruzamentos. Em alguns horários de coleta estava chovendo. Então eu precisei muito de alguma pessoa ali me instigando”, recorda a bióloga.
Marília Tavares estudou a “Biologia reprodutiva e morfologia floral de Spondias macrocarpa Engl.”, orientada pela professora Sandra Maria Carmello-Guerreiro, do Departamento de Biologia Vegetal do IB-Unicamp. “É muito difícil encontrar essa espécie em áreas naturais, justamente por conta da perda de território com o desmatamento e talvez por sua reprodução estar sofrendo interferência. Dentro do gênero existem diversos sistemas sexuais, desde a monoicia até a dioicia, e diversos subtipos. Há plantas que precisam economizar recursos na hora de se reproduzir e, assim, surgem essas variações para otimizar sua reprodução. Nada se sabia sobre o sistema sexual dessa espécie.”
A autora da pesquisa explica que as espécies pertencentes ao gênero Spondias são parentes muito próximos, por vezes identificadas apenas pela morfologia dos frutos, como o cajá (Spondias mombin), umbu (Spondias tuberosa), seriguela (Spondias purpurea) e cajá-manga (Spondias dulcis). Mais recentemente descobriu-se que a cajarana (ou umbu-cajá) seria uma outra espécie, denominada Spondias bahiensis. “O fruto da nossa espécie em questão, Spondias macrocarpa, possui diversos nomes populares e, por isso, há certa confusão, sendo chamado também de cajarana em alguns lugares e de cajá-mirim em outros. O fruto é comestível e utilizado mais para sucos, por ser azedo e ‘amarrar’ a boca.”
Para Marília, encontrar a Spondias macrocarpa no campus da Unicamp foi um achado, já que é bem rara no ambiente natural e também não é cultivada. Das 13 árvores encontradas, todas elas distribuídas em frente ao Cecom (Centro de Saúde da Comunidade), foram marcadas e estudadas oito, devido à dificuldade da altura. “É uma espécie arbórea endêmica de distribuição muito limitada, ocorrendo apenas nas áreas de Mata Atlântica do Nordeste e Sudeste (Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro). É considerada uma espécie vulnerável, uma vez que muitos espécimes de coleções de herbários vêm de áreas que não são mais florestadas.”
A bióloga acredita que sua pesquisa, realizada no período de outubro de 2017 a dezembro de 2018, pode contribuir para o sucesso reprodutivo e produção de frutos da Spondias macrocarpa. “Descobrimos, por exemplo, que esta espécie é autoincompatível, ou seja, não consegue se reproduzir se estiver totalmente isolada no meio ambiente, já que depende do pólen de outra planta para a fecundação. O que nos levou a outra conclusão: a sua dependência dos polinizadores para que ocorra a formação dos frutos; e, mesmo assim, a produção de frutos foi relativamente baixa quando houve essa polinização cruzada.”
Uma hipótese apontada pela autora da pesquisa é de que talvez os polinizadores disponíveis na área urbana, como neste caso, não sejam tão eficientes quanto os polinizadores de áreas originais, o que mostra a importância da conservação do seu habitat natural, que é o Cerrado, para garantir a perpetuação da espécie. “Para que a polinização cruzada ocorra é imprescindível que as plantas ofereçam recursos para atrair os visitantes florais. Nas espécies do campus da Unicamp, os principais polinizadores foram abelhas, sendo Trigona spinipes [arapuá, sem ferrão], Tetragonisca angustula [jataí-amarela] e Apis mellifera [europeia] as que contribuíram com maior número de visitas.”
Conforme Marília Tavares, além do pólen, outros recursos podem estar presentes, como o néctar, óleos e resinas. É na flor que se localizam os principais recursos e onde ocorre a produção e abrigo dos gametófitos. O tipo floral mais comum é a flor bissexuada, que apresenta cálice, corola, androceu e gineceu. Algumas flores aparentam ser hermafroditas, mas com gineceu ou androceu não funcionais. “Quando ocorre este último caso, a determinação do sistema sexual pode ser dificultada devido a interpretações errôneas de estudos morfológicos. Espécies do gênero Spondias L. possuem diferentes descrições na literatura para o sistema sexual, tornando o gênero interessante, do ponto de vista morfológico, para se compreender as diferentes estratégias utilizadas pelas plantas em busca do sucesso reprodutivo.
Assim, a bióloga esclarece que seu trabalho teve como objetivo determinar o sistema sexual da Spondias macrocarpa através da análise morfológica floral detalhada, viabilidade polínica, receptividade estigmática e experimentos controlados de polinização. Todo o material coletado foi processado e analisado sob microscopia óptica de luz e eletrônica de varredura. Além disso, foram acompanhados o desenvolvimento e arquitetura da inflorescência, a longevidade floral, receptividade do estigma, características do pólen, sistema reprodutivo e visitantes florais. “Nos estudos morfológicos identificamos flores bissexuadas e flores funcionalmente masculinas em um mesmo indivíduo, caracterizando o sistema sexual do tipo andromonoico.”
Segurando a escada
A professora Sandra Carmello-Guerreiro, orientadora da dissertação, foi uma das pessoas que contribuíram com Marília segurando a escada e fazendo companhia nas madrugadas de observação das árvores, juntamente com os pós-doutorandos Elisabeth
Tölke e Carlos Pereira Nunes. Todos eles estão envolvidos em estudos de Anacardiaceae, que é da mesma família de Spondias macrocarpa. “A família Anacardiaceae é amplamente distribuída nos trópicos e em particular no Brasil. Várias espécies da família são cultivadas fora de seus ambientes naturais, devido à sua importância ornamental, alimentícia (manga, caju, pistache e outros) ou madeireira (aroeira)”, explica a docente do IB.
De acordo com Sandra, embora as espécies da família Anacardiaceae apresentem certa homogeneidade em relação à morfologia floral, tal homogeneidade esconde uma grande variação de processos reprodutivos, que é o objeto de pesquisa desta dissertação de mestrado. “Este é apenas um dos aspectos importantes de se estudar profundamente os processos sexuais nessas espécies, já que eles podem atuar, juntamente com outros fatores bióticos e abióticos, na diversificação ou extinção de clados [organismos originados de um único ancestral]. Entender como isso ocorre em um pequeno universo, seja de uma espécie ou de um gênero, vai nos ajudar a coletar dados que serão úteis em análises de macroescala, foco de nossas pesquisas futuras.”
Elisabeth Tölke¸ mestre e doutora pela Unicamp e agora pós-doutoranda na USP, contribuiu neste estudo sobre Spondias macrocarpa na parte de morfologia, anatomia e sobretudo na motivação, mesmo durante as coletas sob chuva, como recorda a autora da dissertação. “O trabalho da Marília trouxe contribuição significativa para o nosso grupo de pesquisa. Já temos bastante experiência com a família Anacardiaceae e a reprodução dessas plantas sempre nos intrigou, pois exibem uma diversidade enorme de sistemas sexuais e reprodutivos, sem que quase ninguém se dedique a estudá-las. Eu a orientei na parte experimental e no tratamento dos resultados.”
Lembrando que existem várias espécies do gênero Spondias ocorrendo no Brasil, Elisabeth justifica a escolha da S. macrocarpa por estar dentro do campus da Unicamp, facilitando o trabalho experimental em árvores bastante altas, o que seria inviável em áreas abertas como o Cerrado. “Marília foi muito guerreira nas observações e experimentos, subindo nas árvores para ensacar as flores e realizar cruzamentos artificiais. O resultado foi um artigo com muitas informações novas para a espécie e o gênero. Descrevemos o sistema sexual andromonoico para S. macrocarpa e sua dependência dos polinizadores para reprodução.”
O pós-doutorando Carlos Eduardo Pereira Nunes, mais conhecido como Coquinho, contribuiu para o estudo na identificação dos polinizadores, cruzamentos e estatística – a parte ecológica – e também carregando a escada e equipamentos. “Apesar de as flores parecerem todas iguais, um mesmo cacho apresenta flores masculinas e outras com duas funções sexuais (hermafroditas) – é o que chamamos de andromonoicia. As grandes árvores dependem exclusivamente de pequenos insetos para levar o pólen de uma a outra e gerarem frutos e sementes. Provavelmente, existe uma incompatibilidade genética entre o pólen e as estruturas femininas de uma mesma árvore, fazendo com que não se formem frutos de autopolinização: pólen de uma flor na mesma flor ou em outra flor da mesma árvore. O trabalho de carregar o pólen de uma árvore para a outra é de pequenos insetos, em sua maioria abelhas sem ferrão, mas também besouros e moscas que visitam as flores em busca de alimento.”