Livro premiado com o Jabuti foi reimpresso. Coleção traz lado oculto do processo criativo de grandes artistas plásticos.
Após alguns anos fora de catálogo, o livro Tarsila do Amaral – Cadernos de Desenho foi reimpresso pela Editora da Unicamp. A obra integra a Coleção Cadernos de Desenho e venceu o Prêmio Jabuti de 2009 na categoria “Arquitetura e Urbanismo, Fotografia, Comunicação e Artes”.
A organização da coleção é feita pela artista plástica Lygia Eluf, doutora em Artes Poéticas Visuais pela USP e professora aposentada do Instituto de Artes da Unicamp. Publicada desde 2008 e contando, até o momento, com oito volumes, a coleção propõe-se a expôr os processos criativos de grandes artistas plásticos a partir de seus cadernos, sejam eles de esboços, croquis ou projetos. Entre os artistas publicados, há nomes como Eliseu Visconti, Anita Malfatti, Iberê Camargo e Fayga Ostrower.
Nós convidamos Lygia Eluf para falar um pouco sobre a idealização e desenvolvimento da coleção e as particularidades de cada volume.
Editora da Unicamp: A Coleção Cadernos de Desenho permite que os leitores tenham contato com parte do processo criativo de grandes artistas plásticos. Como coordenadora da coleção, quais critérios nortearam a organização dos livros?
Lygia Eluf: A ideia dos cadernos de desenho sempre me fascinou. Por meio dessas anotações, quase despretensiosas, muitas vezes somos capazes de registrar a essência de nosso pensamento visual. Eles têm acompanhado os artistas por toda a história e reúnem aspectos pouco conhecidos de sua produção. São momentos de intimidade e cumplicidade únicos, quase nunca divulgados e permanecem num canto do ateliê, geralmente acessíveis somente aos olhos do próprio artista. Seu uso recorrente, como bloco de anotações, carnês de viagem ou diários de artistas, apresenta a possibilidade de revelar o pensamento construtivo que norteia o processo de criação e de construção das imagens. A Coleção Cadernos de Desenho nasce dessa relação e através dela pretende revelar o que está oculto, guardado na intimidade do caderno de bolso, do ateliê, da expressão primeira do artista em contato com o mundo que o cerca. Procuramos privilegiar o desenho como meio de expressão artística, como registro de ideias, sensações e pensamentos, como projeto ou ainda como meio independente de realizações plásticas.
Tudo se desenvolveu de um modo quase intimista: pessoas relacionadas diretamente com essa história foram se aproximando, se interessando e apresentamos o primeiro resultado de nosso trabalho que procura fornecer algumas pistas sobre o modo como alguns artistas se relacionam com o que lhes é revelado pelo olhar. Trata-se, na verdade, de um trabalho realizado com a ajuda de muitas pessoas a quem agradecemos; pessoas que de algum modo compartilham essa paixão pelo desenho. Decidimos que os volumes apresentariam uma espécie de discurso visual, sem o auxílio de grandes ensaios acadêmicos ou informações que pudessem orientar o leitor. Incluímos algumas pistas que pudessem complementar essa experiência: uma pequena biografia, um pequeno texto, preferencialmente escrito por alguém que tivesse intimidade com o artista. Não havia restrições para esses textos em relação ao estilo e conteúdo, sendo que a única exigência é que deveriam ser escritos de maneira a aproximar o leitor e permitir que pudessem alimentar esse conhecimento sensível.
Editora da Unicamp: Os Cadernos trazem esboços e projetos de artistas muito diferentes entre si, como Anita Malfatti, Iberê Camargo e Fayga Ostrower. Você poderia falar um pouco sobre as particularidades dos primeiros volumes?
Lygia Eluf: É sempre um prazer para mim falar desses volumes. De fato, os artistas são muito diferentes entre si e essa diversidade me encanta. Essa característica é um dos aspectos fundamentais da coleção. Apresentar a imensa diversidade do pensamento artístico e tentar deixar claro como essa diversidade fortalece a produção artística. Arte não é exclusão, ao contrário: tudo coexiste simultaneamente e cada ação fortalece as demais.
A escolha dos dois primeiros volumes, Tarsila e Visconti, tem uma razão peculiar e conto essa história no texto que escrevi para apresentar a coleção pela primeira vez. Em viagem à Itália em 1995, encontramos, Fernando Chaves e eu, na casa de amigos dos tempos de colégio, duas coleções de desenhos: de Tarsila do Amaral e de Eliseu Visconti. Já sabíamos da existência deles, mas a lembrança de como vieram parar nas mãos de nossos amigos italianos estava perdida em algum canto da memória. Quando crianças, éramos amigos da família, frequentávamos a mesma escola. Embora a família tenha voltado para a Itália nos anos 1970, a amizade continuou. Nunca mais falamos dessas coisas. Eram momentos difíceis para serem lembrados: a galeria sendo invadida no meio da noite para se recuperar o que fosse possível. O que se perdeu, sem que nunca mais soubéssemos do fim que aquilo tudo havia tido...
Sabíamos da história: o acervo havia sido comprado diretamente da Tarsila, já então doente e precisando de todo tipo de ajuda. Sabíamos também que naquela visita nosso amigo “devolveu” a Tarsila o par de brincos, do famoso autorretrato, comprado anteriormente por outro colecionador, e “arrematou” tudo o que havia no ateliê. Hoje devemos agradecer à família Gnutti-Businco por essa oportunidade de mostrar esse acervo até então inédito. Falar dessa coleção é lembrar do trabalho e da generosidade desse colecionador italiano que esteve no Brasil nos anos 1970 e que movimentou de maneira única (até os dias de hoje) o cenário artístico do país.
No final dos anos 1970, conheci os cadernos de desenhos de Evandro Carlos Jardim e, naquele universo, a qualidade gráfica magnífica das gravuras passa a ser revelada pelos desenhos iniciais que geraram tais imagens. Eram séries inteiras de figuras, lugares, memórias poéticas e indicações para a construção das gravuras. Quando surgiu a ideia de realizar a Coleção Cadernos de Desenho, lembrei dos desenhos de Evandro e propus ao conselho da coleção o terceiro nome. Escolhemos o caderno construído durante a viagem pelo rio São Francisco, em 1972, de Juazeiro do Norte até Pirapora. Estava completo o primeiro lote de livrinhos. Infelizmente esse volume não foi impresso e está ainda hoje “na fila”, aguardando um sinal verde da editora.
Editora da Unicamp: Após esses primeiros volumes, como foi dar prosseguimento à coordenação da coleção?
Lygia Eluf: Entendi que não poderíamos seguir aquela lógica inicial de lançar simultaneamente três períodos distintos dentro do panorama da produção artística brasileira, mas de alguma maneira essa ideia estrutural ainda era o eixo central de minhas buscas. As três grandes damas que seguem os lançamentos são Anita Malfatti, Renina Katz e Fayga Ostrower. Anita Malfatti tem inúmeros cadernos de desenhos que registram, de maneira intensa, sua intenção artística. Esses cadernos são propriedade do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. A direção do IEB e as pesquisadoras que trabalhavam na época com Anita impuseram algumas restrições, como a impossibilidade de reproduzir um caderno inteiro, o que era minha intenção. Decidi então selecionar, entre todos os cadernos que tive acesso, os desenhos de figura humana, paisagens e alguns desenhos religiosos. Foi um trabalho intenso e extremamente prazeroso ser introduzida naquele universo quase inacessível, já que os cadernos estão guardados e nunca foram expostos.
Renina Katz sempre manteve o hábito de usar cadernos de desenho e anotações onde construía esboços extremamente refinados para desenvolvê-los depois, especialmente em litografias. Seus cadernos também estão sob a guarda de uma instituição, a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Dessa vez foi possível reproduzir um caderno inteiro, já que Renina, ainda viva, autorizou a publicação. A artista, também professora, formou diversas gerações de jovens gravadores e suas reflexões, leituras e as poéticas composições policromáticas constituem um registro raro e complexo de sua atuação no mundo.
Dentre todos os volumes, talvez o mais curioso seja o de Fayga Ostrower. Quando conversei com sua filha por telefone, soube da existência de inúmeros cadernos de desenho e decidi então que seria o próximo volume. Na primeira visita ao ateliê da artista, no Rio de Janeiro, hoje Instituto Fayga Ostrower, descobri que na verdade a artista destruía todos os desenhos preparatórios para suas gravuras. Outra decepção. Mas descobri também um modo de trabalho que me parecia até então inédito e que teria um lugar de interesse dentro da coleção. Ela mantinha um registro sistemático de todas as gravuras que realizava e de todas as obras que vendia. Seus inúmeros cadernos eram verdadeiros inventários de suas vendas. E o mais curioso é que ela reproduzia, com um desenho esquemático e singelo, a gravura que havia sido vendida e a lista dos compradores.
Depois das três damas e de todas as adaptações que já havíamos feito na ideia original, decidimos deixar que a própria coleção, naquele momento já consolidada e respeitada, apontasse seus caminhos. Os dois volumes que se seguiram são resultado de oportunidades que não poderíamos perder: a primeira delas era o fato de Marcello Grassmann estar ainda vivo e muito empolgado com a coleção, além de que, até aquele momento, não havia nenhum livro dedicado ao desenho do grande mestre gravador. Desenhista compulsivo, Marcello mantinha essa atividade cotidiana até praticamente os seus últimos dias de vida. Embora nunca tenha tido nada parecido com um caderno de desenho ou anotações, seu ateliê repleto de desenhos era como um grande caderno. Hoje, se fossemos reeditar o livro de Grassmann, eu incluiria fotografias com toda a ambientação do espaço, sua mesa de desenho e paredes. A escolha dos desenhos que iriam para o volume foi feita em parceria com Marcello e a ideia de organizá-los cronologicamente foi dele. O outro volume, o de Flávio de Carvalho, também foi escolhido em função de uma oportunidade única: temos na Unicamp, no acervo do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae/IEL), a coleção de desenhos que Flávio de Carvalho fez para acompanhar os trinta e nove artigos da coluna “A Moda e o Novo Homem”, no Diário de S. Paulo, entre 4 de março e 21 de outubro de 1956. Esse trabalho de Flávio culminou no happening que o artista realizou nas ruas de São Paulo usando o “traje de verão masculino”: saia plissada acima do joelho, blusão, chapéu, meias arrastão e sandálias de couro cru.
E finalmente, o último volume publicado, Iberê Camargo. Depois de uma pesquisa extensa em todo o acervo da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, decidimos novamente selecionar uma parte de sua imensa coleção (cerca de dois mil desenhos), mais especificamente os desenhos de figura humana, organizados cronologicamente, incluindo inclusive os dois desenhos que realizou em seu leito de morte.
Editora da Unicamp: Existe certo fascínio em admirar e analisar desenhos que, invariavelmente, não são obras finalizadas. O que você acha que gera esse sentimento?
Lygia Eluf: O que provoca esse sentimento é, sem dúvida, o fato de que o desenho é o registro de um pensamento. Diante da hegemonia do pensamento verbal, o pensamento visual fica quase relegado a um segundo plano. A maioria das pessoas desconhece esse modo de articular as ideias. Para o artista isso é fundamental: o desenho é sua primeira ferramenta, é a maneira como constrói seu trabalho. Não importa o modo que cada artista desenvolva esse processo, mas, na maior parte das vezes, o discurso é construído com desenhos, rabiscos, anotações. Quando temos a possibilidade de nos aproximarmos desse processo, algo nos é revelado que torna mais clara a intenção artística.
Editora da Unicamp: Dentre os Cadernos, você teria algum favorito, seja pela escolha do artista, seja pelo processo de seleção, enfim, por alguma razão especial?
Lygia Eluf: O procedimento para a escolha de cada volume foi pensado inicialmente de modo que pudéssemos construir um pequeno panorama do desenho brasileiro. Num primeiro momento, tínhamos a intenção de lançar três exemplares, contemplando os períodos virada dos séculos XIX/XX, modernismo e desenho contemporâneo. Essa é a razão pela qual os primeiros escolhidos foram Visconti, Tarsila do Amaral e Evandro Carlos Jardim. Aí já me deparei com os inúmeros obstáculos do mundo editorial. Por razões externas à coleção, o volume com a obra de Evandro, que já estava pronto para ser impresso, foi cancelado e lançamos apenas Tarsila e Visconti. A partir daí, enfrentamos toda uma série de contratempos que às vezes impediam que o processo se completasse. Algumas vezes encontramos dificuldades com herdeiros do artista escolhido, outras, com os próprios artistas. Mas sempre tivemos claro esse percurso e a lista de artistas estava de alguma maneira pronta em minha cabeça. Sempre procurei privilegiar, antes de tudo, a obra; evidentemente, o caráter afetivo que eu tinha pessoalmente com o artista e sua obra era um fator importantíssimo para mim, porém, sempre tentei me guiar pela qualidade do desenho como meio de pensamento e expressão. Cada um deles carrega, em sua essência, o pensamento visual que constrói, a partir do conhecimento sensível, uma obra importante no cenário brasileiro. Na verdade, não há um volume favorito para mim. Todos são extremamente queridos e especiais.
Serviço:
Tarsila do Amaral – Cadernos de Desenho
Organizador: Lygia Eluf
ISBN: 9788526808140
Edição: 1
1ª reimpressão 2020
Ano: 2008
Páginas: 104 p.
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