Achado abre perspectivas para o melhor entendimento deste novo mecanismo que, ao menos até agora, parece ser comum entre a Esclerose Múltipla e a Neuromielite Óptica
As células citotóxicas são parte do arsenal do sistema imunológico e tem por função atacar a células do corpo que se tornaram nocivas como, por exemplo, aquelas infectadas por vírus ou células potencialmente tumorais. Essa função protege o organismo e preserva a saúde. Entretanto a literatura cientifica mostra que em indivíduos que possuem doenças autoimunes - distúrbios nos quais o organismo “se engana” e passa a atacar suas próprias estruturas identificadas como estranhas pelo sistema imunológico -, a ativação excessiva de células citotóxicas se mostra indevida e prejudicial, colaborando para o agravamento da condição do paciente. Embora já tenham sido identificadas mais de 80 doenças de origem autoimune estão entre as mais comuns: lúpus, vitiligo, diabetes tipo 1, esclerose múltipla, doença de Graves, hepatite autoimune, doença de Crohn, psoríase. Respostas imunológicas do tipo citotóxicas estão bem descritas em pacientes com esclerose múltipla (EM), uma doença autoimune, inflamatória e neurodegenerativa do sistema nervoso central.
No Laboratório de Estudos em Autoimunidade, coordenado pelo professor Alessandro dos Santos Farias, do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, tem sido estudado o comportamento do sistema imunológico em pacientes com doenças autoimunes. Em um dos trabalhos lá desenvolvidos o biólogo e doutor Vinícius de Oliveira Boldrini demonstrou que na Neuromielite Óptica (NMOSD) – uma doença também neurológica que compartilha algumas características com a EM – a resposta agressiva do sistema imunológico parece também mostrar-se bastante ativada, o que não se esperava que ocorresse de forma impactante em seus portadores. Este achado, segundo os pesquisadores, abre perspectivas para o melhor entendimento deste novo mecanismo que, ao menos até agora, parece ser comum entre a EM e a NMOSD.
Estudos como este, que buscam entender o comportamento do sistema imunológico em doenças autoimunes, poderão vir a auxiliar no desenvolvimento de novos medicamentos e beneficiar no futuro o tratamento de portadores das duas doenças. Com efeito, no trabalho desenvolvido foi demonstrado, pela primeira vez, a presença de linfócitos agressivos (citotóxicos) em um paciente refratário ao tratamento das crises da NMOSD. A presença destas células no sangue e sobretudo no líquido cefalorraquidiano, conforme descrito em artigo publicado (link abaixo), pode estar relacionada à falha da terapêutica empregada no paciente e ainda sugerir uma forma clínica nova e mais agressiva da NMOSD.
Em vista de algumas evidências descritas na literatura Vinícius propôs-se a investigar qual seria a importância da citotoxicidade do sistema imunológico no contexto da EM que, excetuando traumas, é a maior causa de incapacidade em adultos na faixa média de 20-40 anos, acometidos mais frequentemente por dificuldades visuais e de locomoção, fadiga, formigamento em membros superiores e inferiores e perda de força. Segundo estimativas atuais, 30 a 40 mil pessoas no Brasil e 2,5 milhões no mundo possuem a doença. Diante da inexistência de exames laboratoriais, o diagnóstico apenas clínico baseia-se nos sintomas do paciente e em imagens de ressonância magnética do cérebro, que revelam lesões causadas por células do sistema imunológico.
Premiações e publicação
Os resultados inicialmente obtidos pela equipe coordenada pelo professor Alessandro Farias indicavam que em animais (camundongos) induzidos para apresentar sintomas semelhantes aos dos pacientes com esclerose múltipla, a atividade citotóxica do sistema imunológico era importante para o desenvolvimento da doença. Isso foi fundamental para identificar quais mecanismos supostamente poderiam ou não se repetir também nos portadores da doença. Foi quando, com o intuito de confirmar os achados nos animais doentes, o então doutorando Vinícius passou a investigar pacientes diagnosticados com EM, verificando que a mesma atividade citotóxica estava presente, mesmo nos pacientes que utilizavam medicamentos muito eficazes para o controle da doença. Os resultados sugerem, pelo menos por ora, que algumas medicações conseguem “represar” as células com atividade agressiva, impedindo-as de migrar para o cérebro e atacá-lo, controlando a doença. O conjunto destes resultados venceu a categoria de melhor pôster apresentado no XIX Congresso Brasileiro de Esclerose Múltipla de Neuromielite Óptica (XIX BCTRIMS), realizado em agosto de 2018 em São Paulo. Atualmente este trabalho encontra-se submetido para publicação em um periódico internacional.
Posteriormente, foram aprofundadas as investigações sobre a atividade citotóxica do sistema imunológico em pacientes com EM buscando entender se as células chamadas de linfócitos B, responsáveis pela produção de anticorpos, poderiam também desempenhar função agressiva em relação à imunidade. Segundo descrito na literatura, estas células tradicionalmente não desempenham respostas citotóxicas. No entanto, algumas evidências recentes sugerem que esta função agressiva pode ser desempenhada também por estas células durante algumas infecções. Em vista deste panorama, os resultados obtidos por Vinícius em cerca de cento e vinte pacientes mostraram pela primeira vez, de forma robusta, que este fenômeno também ocorre durante a EM. Os portadores da doença possuem no sangue as células produtoras de anticorpos com função citotóxica. Os resultados abrem uma nova perspectiva para o entendimento da doença, pois não se sabia que os linfócitos B poderiam “imitar” o comportamento de outras células do sistema imunológico desempenhando funções agressivas durante a EM. O trabalho foi considerado o melhor, na categoria Pesquisa Básica, apresentado no V Encontro de Investigadores Brasileiros em Neuroimunologia, na Convenção Nacional dos Departamentos Científicos da Academia Brasileira de Neurologia, evento realizado em Campinas em agosto de 2019.
Perspectivas
Para o pesquisador, o achado das células produtoras de anticorpos, os linfócitos B, capazes de produzir a atividade citotóxica em pacientes com EM abriu nova perspectiva para investigar doenças em que a produção de anticorpos - e consequentemente a participação dos linfócitos B - parece ser a resposta imunológica predominante. “Decidimos então estudar o espectro de doenças de Neuromielite Óptica (NMOSD), uma doença neurológica também autoimune e que compartilha semelhanças clínicas com a EM”, esclarece o pesquisador. Os portadores de NMOSD manifestam em geral sintomas semelhantes aos da EM, como dificuldades de locomoção, dificuldades visuais, fadiga, formigamentos em braços e pernas, perda de força. A diferença é que estes sintomas costumam ser mais severos na NMOSD.
Em vista da relevância dos anticorpos no desenvolvimento da NMOSD, o então doutorando Vinícius resolveu investigar se a atividade citotóxica estava também presente em seus portadores, o que poderia revelar um mecanismo compartilhado entre a EM e a NMOSD e, mais especificamente, em células que, segundo estudos clássicos, não desempenhariam tal atividade: as células produtoras de anticorpos. Para o desenvolvimento desse trabalho, Vinícius contou com a colaboração dos médicos neurologistas Carlos Otávio Brandão (Pesquisador colaborador do IB/UNICAMP) e Maria Lúcia Vellutini Pimentel (responsável pelo Ambulatório de Doenças Desmielinizantes da Santa de Misericórdia do Rio de Janeiro), que se dispuseram a enviar amostras de sangue e de liquido cefalorraquidiano de um paciente com NMOSD que apresentava um quadro clinico bastante agressivo e que não respondia adequadamente aos tratamentos.
Investigando o sangue e o líquido cefalorraquidiano com metodologias adequadas (por uma técnica chamada Citometria de Fluxo), o pesquisador identificou no paciente a presença maciça de células imunes agressivas, citotóxicas. A respeito dessa descoberta, diz ele: “Para nossa surpresa, as células produtoras de anticorpos - linfócitos B - fugiam das suas atividades fundamentais e apresentavam características citotóxicas, a exemplo do que mostravam os resultados nos portadores de EM”. O resultado advindo deste único paciente recebeu na categoria de melhor apresentação oral o Prêmio Gilberto Belisário no XX Congresso Brasileiro de Esclerose Múltipla e Neuromielite Óptica (XX BCTRIMS) realizado em agosto de 2019 em São Paulo. O trabalho foi publicado sob o título "Massive activity of cytotoxic cells during refractory neuromyelitis optica spectrum disorder" no periódico Journal of Neuroimmunology. A pesquisa se detém, no momento, em um número maior de pacientes portadores de NMOSD e parte dos resultados já obtidos deverão ser submetidos a publicação nos próximos meses.
Vinícius considera que no estudo “o entendimento do comportamento do sistema imunológico, especificamente da atividade citotóxica, pode ajudar: 1) a compreender mais profundamente os mecanismos moleculares envolvidos durante a EM e a NMOSD; 2) a estabelecer um novo parâmetro para o diagnóstico/prognóstico para essas doenças; e 3) talvez, no futuro, auxiliar no desenvolvimento de terapias mais eficazes e especificas para o tratamento dessas duas doenças”.
Esclarecimentos adicionais
A linha de pesquisa do professor Alessandro dos Santos Farias, orientador do trabalho, concentra-se no estudo dos mecanismos de ação de doenças autoimunes relativas ao sistema nervoso central, particularmente a EM. A propósito diz ele: “Queremos entender os mecanismos gerais dessas doenças, o que fundamentalmente envolve conhecer como as células e moléculas interagem durante suas manifestações. Concentramos os estudos na imunologia celular, que envolve investigar as características das células, o que está acontecendo dentro delas, o que estão produzindo e liberando em relação ao comportamento agressivo autoimune. Em suma, queremos saber em termos celulares o que um portador de doença autoimune tem de diferente em relação a uma pessoa sadia. Esse conhecimento assume particular importância quando se sabe que cerca de 7% de indivíduos no mundo tem alguma das cerca de 80 doenças autoimunes conhecidas”.
Ao estudar pacientes atendidos pelo Hospital de Clínicas da Unicamp, os pesquisadores constataram que alguns mecanismos do sistema imunológico pareciam importantes no desencadeamento da EM. Como os sintomas da EM e da NMOSD eram parecidos resolveram estudar esta última diante da possibilidade de que as duas doenças pudessem compartilhar mecanismos imunológicos semelhantes. O professor lembra que há cerca de duas décadas não havia distinção entre essas duas doenças e a NMOSD era considerada uma forma óptica espinhal da EM, muito mais comum em asiáticos, principalmente no Japão, e por isso conhecida também como EM japonesa. Mas nestas duas últimas décadas descobriu-se que a maioria dos mecanismos imunológicos envolvidos são diferentes e por isso também os medicamentos utilizados no tratamento de cada uma delas devem ser diferentes.
Estudando os mecanismos envolvidos nas duas doenças, ou seja, como o sistema imune age sobre o próprio organismo, Vinícius, lembra o docente, levantou evidencias de que apesar das características bem definidas entre a EM (na qual predomina o ataque ao sistema nervoso por meio das células agressivas) e a NMOSD (predomínio de anticorpos agressivos), as duas doenças parecem compartilhar o mecanismo das células citotóxicas.
No bojo de suas investigações Vinícius, que já concluiu o seu doutorado, se deparou com um caso de NMOSD em que as células pareciam particularmente superagressivas, e paralelamente, o paciente se mostrava refratário a qualquer tratamento. Esse quadro, enfatiza o docente, “sugere duas hipóteses: ou se está diante de um mecanismo celular ainda desconhecido para a NMOSD ou se tem o desenvolvimento de células muito agressivas especificamente em pacientes que não respondem a nenhum tratamento. Para responder à questão precisamos acompanhar um número maior de pacientes”.