Equipes registram três resultados positivos para PCR em duas casas de acolhimento
Cerca de 60 mulheres trans e travestis receberam atendimento, orientações e fizeram testes para SARS-CoV-2, em ação conjunta da Força-Tarefa Unicamp contra a Covid-19 (FT) e o Centro de Referência e Defesa da Diversidade de São Paulo (CRD), com apoio de organizações não governamentais. Das pessoas testadas, três apresentaram positivo para PCR (padrão de referência) e foram encaminhadas a um serviço de isolamento da Prefeitura paulistana; não houve registros positivos no teste rápido sorológico (IgM). "O resultado foi importante porque identificamos três casos em que havia o vírus ativo, mas sem a geração de anticorpos, e conseguimos cortar a transmissão dentro das duas casas do CRD", afirma o professor Sávio Machado Cavalcante, coordenador da Frente de Ações Sociais da FT Unicamp.
O professor do Departamento de Sociologia refere-se às Casas Florescer 1 e 2, onde o CRD promove ações de saúde junto a populações LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais), que continuam ignoradas inclusive na pandemia. "A nossa conversa com o CRD já existia e percebemos no início deste ano que seria bem importante fazer testagem ampla nas duas casas, que acolhem mulheres trans e travestis. Estamos vivendo o pior momento da pandemia e precisamos fortalecer ainda mais os esforços coletivos. Há uma boa possibilidade de a Força-Tarefa da Unicamp, depois desta ação, firmar parceria para construir outros pontos de atendimento na área central de São Paulo e em outras regiões da cidade.
Na ação efetivada em 17 de março, foram aplicados, pela primeira vez, testes rápidos e para PCR em todo o grupo de mulheres trans e travestis que vive nas duas casas. Pesquisadoras da Unicamp que integram a Frente de Diagnósticos, Dieila Lima e Maraysa Melo, acompanharam a ação e também realizaram coletas. "Um enfermeiro da ONG que nos auxiliou a aplicar parte dos testes não achava necessário o de PCR para quem não estivesse com IgM positivo, o que é compreensível, porque eles trabalham na escassez de recursos. Mas depois, pelo número de pessoas, concordaram em fazer os dois testes em todas, a fim de termos uma ideia da soroprevalência (quem já teve a doença e possui o anticorpo) e também o PCR, em que a Força-Tarefa processa as amostras identificando o vírus ativo para cortar contágios futuros. Fico pensando em quantas mortes seriam evitadas se estivéssemos melhor equipados para testagem em massa".
Sávio Cavalcante conta que a Frente de Ações Sociais da FT-Unicamp já realizou testes para Covid-19 em moradores de ocupações, em indígenas e em entregadores de aplicativos, ressaltando que esta ação conjunta com o Centro de Referência e Defesa da Diversidade “Brunna Valin” permitiu congregar pesquisadores da Unicamp e da USP junto grupos LGBTI que exigem atenção maior neste momento devido à vulnerabilidade em suas várias dimensões. A antropóloga Larissa de Rezende Tanganelli está entre esses pesquisadores: "A vulnerabilidade dessas pessoas não tem origem na pandemia, devemos considerar que o cenário político acentua ou inaugura modos de tratamento criminosos e marginalizantes, colocando-as em uma posição particularmente vulnerável em meio ao genocídio promovido pelo Estado brasileiro".
Larissa Tanganelli desenvolve pesquisa de doutorado sob orientação da professora Joana Cabral, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), focando produções das ciências biológicas sobre as "bases genéticas" da orientação sexual e identidade de gênero, considerando que os produtos destas investigações ultrapassam as esferas da produção científica especializada. "A produção das ciências biológicas sobre sexualidade e gênero é um tema caro, principalmente no âmbito da antropologia, pois traz à tona problemáticas que são constitutivas do campo e recolocam, no plano político contemporâneo, disputas de lastro histórico. Relações entre natureza e cultura, ciências humanas e biológicas, ciência e política, ciência e gênero/sexualidade estão nos meandros das minhas reflexões."
No seu mestrado, a antropóloga já havia destacado as experiências de dissidentes de sexualidade e gênero durante a ditadura civil-militar no Brasil, tratando dos crimes de Estado sobre estas pessoas. "Com a redemocratização e o chamado período democrático, esta população conquistou uma série de direitos, mas foi mantida socialmente marginalizada em muitos sentidos, situação particularmente agravada no caso de pessoas trans e travestis. Este quadro foi em muito acentuado desde a campanha para as eleições presidenciais em 2018, lembrando que a segunda pessoa assassinada por motivos políticos no período eleitoral foi uma travesti, Priscila, esfaqueada aos gritos de ‘Bolsonaro, ele sim!’ após uma discussão."
A pesquisadora afirma que no atual mandato as perdas e ameaças aos direitos desta população têm sido imensuráveis, somando-se às orientações de ânimo punitivo e violento a ela dirigidas. "Moro em uma região do centro de São Paulo com presença histórica de dissidentes de sexualidade e gênero e muitos, sobretudo no começo da pandemia, tiveram seus trabalhos reduzidos a uma renda que não estava mais viabilizando suas vidas. A exposição ao vírus por conta de sua situação de moradia e trabalho era grande e não estavam mais tendo os retornos financeiros necessários, nem foram em sua maior parte contempladas com o auxílio emergencial."
Justificativas para a ação
Enquanto graduada e pós-graduanda de uma universidade pública, e tendo sua pesquisa de doutorado financiada por uma agência pública de fomento à pesquisa (Capes), Larissa Tanganelli sentiu que não poderia deixar de assumir um compromisso público e político com o que estava acontecendo. Daí ter procurado a Coordenação da Frente de Ações Sociais da FT e conhecido melhor as iniciativas que vinham sendo realizadas, como entre povos indígenas do Estado de São Paulo, que teve participação de sua orientadora. "Conversei então sobre a possibilidade de realizarmos uma ação com dissidentes de gênero e sexualidade em situação de vulnerabilidade no centro de São Paulo, partindo de uma comunicação com o Centro de Referência e Defesa da Diversidade."
Dentre as justificativas para a ação conjunta da FT com o CRD, está o mais recente inquérito sorológico promovido pelo Projeto SoroEpi (conduzido pela Universidade Federal de São Paulo - Unifesp), indicando que a soroprevalência na população LGBTI no município de São Paulo é de 29,9%, conforme amostragem de 14 a 23 de janeiro de 2021. Porém, há uma diferença estatisticamente significativa entre a soroprevalência nos distritos mais ricos, que é de 22,8%, enquanto nos distritos mais pobres o índice sobe para 36,4%. Ou seja, a incidência da doença, com repercussão no número de mortes, é maior nos grupos mais pobres.
Segundo o relatório, se a Covid-19 afeta mais aos pobres, ela irá repercutir diretamente nos grupos que vivenciam discriminações, violência, exclusão e precariedade de vida em razão de identidade de gênero e orientação sexual. "Estes fatores se somam às condições de vida e saúde específicas em que se encontram trabalhadores(as) do sexo, moradores(as) de rua e de locais ocupados, portadores(as) de HIV-Aids e outras doenças que passam por processos de hormonioterapia que podem incidir sobre o sistema imunológico. Também se trata de uma população que circula, trabalha ou reside em uma das regiões com maior densidade populacional por metro quadrado da cidade".
Observa-se ainda que esta população é acometida por duas outras epidemias entrecruzadas com a Covid-19 e reconhecidas enquanto tal pelos órgãos de saúde governamentais: de HIV-Aids e de sífilis que, em ambos os casos, têm apresentado crescimento exponencial na última década. "Muitos dos portadores têm acesso restrito aos serviços públicos de saúde ou apresentam frequência esporádica às UBSs, o que dificulta a detecção da doença, o acompanhamento e facilita a sua propagação. A proposta é que a Força-Tarefa Unicamp contra a Covid-19 possa servir de instrumento complementar aos esforços já realizados por Secretarias de Saúde de municípios."
A vida das LGBTI na pandemia
Larissa Tanganelli realizou entrevistas sobre aspectos da vida de mulheres trans e travestis durante a pandemia, junto com o colega antropólogo Rafael Pacheco, doutorando da USP. "A doença não só se manifesta diferentemente em diferentes corpos, mas também assume diferentes formas de realidade e significação para as pessoas. Procuramos compreender melhor os modos como essas pessoas têm experienciado a pandemia e sobrevivido nesse contexto: se podem se proteger ou precisam se expor, como se sustentam, seus modos de circulação. Embora aspectos de saúde e trabalho fossem importantes, as questões iniciais sugeriam que elas falassem de si e suas vidas, mesmo antes da pandemia."
Conforme a doutoranda, boa parte das mulheres trans e travestis, por terem feito a testagem no CDR, conta com uma boa situação de acolhimento e de circulação mais restrita durante a pandemia. "A maioria não é de São Paulo e chegou recentemente à cidade, o que incide sobre a circulação e suas redes de relações. Além do acolhimento, contam com outras políticas municipais específicas para a população trans, como o programa Transcidadania. Algumas relataram que, por isso, puderam parar com o trabalho sexual, por receio de infecção, mas mencionaram que esta não é a situação da maior parte de suas amigas e conhecidas."
Larissa notou que nas duas casas, Florescer 1 e 2, as mulheres trans e travestis estão informadas e comprometidas com as medidas de isolamento. "De distintas formas, o acolhimento, que aglutina a questão da moradia com a de trabalho, é muito relevante no enfrentamento da pandemia. A grande maioria é de uma população jovem, que interrompeu os estudos por conta de conflitos familiares após assumirem sua identidade de gênero e muitas manifestaram vontade de voltar a estudar, buscando programas de educação básica e universidades que mantenham políticas específicas para pessoas trans e travestis."
Mobilização evita fechamento
Fundado em 2008, o Centro de Referência e Defesa da Diversidade Brunna Valin tornou-se o principal serviço prestado pelo Grupo Pela Vidda São Paulo, que há mais de 30 anos assiste a população LGBTI e portadores de HIV, com subsídio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. A Prefeitura chegou a anunciar o fechamento do CRD em meados do ano passado, mas voltou atrás diante da mobilização de usuários, trabalhadores e organizações sociais.
"O Grupo Pela Vidda percebeu que na época de sua criação, 1989, as várias ações de enfrentamento da epidemia de Aids tinham que passar por ações outras, principalmente para atingir a população LGBT+ e as profissionais do sexo. Não adiantava falar em uso de camisinha ou de teste se as pessoas estavam em situação de extrema vulnerabilidade, com muita discriminação e preconceito", recorda Eduardo Luiz Barbosa, coordenador do CRD-SP.
Já o Centr de Referência foi criado em 2008 e, segundo Barbosa, soma, junto com o Pela Vidda, quase 5 mil cadastrados, sendo perto de 2 mil ativos, com uma maioria de travestis e transexuais. "A maior parte está vivendo em abrigos, ocupações ou equipamentos da prefeitura provisórios para dormir, e outra parte morando realmente em situação de rua. Nesses quase 12 anos de atuação do CRD, temos uma série de trabalhos, junto com o Pela Vidda, que vão da assistência social a cursos e oficinas de geração de renda (línguas, informática, maquiagem, cabelo, empreendedorismo)."
O coordenador acrescenta que, além da assistência social, as mulheres trans e travestis recebem atendimento psicológico e também jurídico. "Elas são auxiliadas na retificação de nomes, busca e conquista de direitos e enfrentamento da homo-lesbo-transfobia. Um serviço oferecido é o encaminhamento a vários setores públicos e privados para busca de um pouco de autonomia e melhora de vida e exercício da cidadania. No contexto da saúde, continuamos com o oferecimento de autotestes para HIV e mantivemos por um período testagem para sífilis."
Segundo Eduardo Barbosa, neste momento de pandemia o apoio tem sido emergencial, com oferta de cestas básicas, marmitas, kits de higiene e limpeza, bem como auxílios para compra de gás e o aluguel. "Temos um apoio parcial da prefeitura, mas ele vem mesmo da comunidade. A pandemia nos tirou as rodas de conversa e cursos presenciais. Como muitas travestis e transsexsuais também estão no contexto do trabalho sexual, temos uma ação bastante forte para o uso de máscara, álcool gel e de acesso aos mecanismos de prevenção. Esta parceria com a Unicamp visando ao diagnóstico com a testagem de Covid-19, tem sido fundamental para adequar nosso serviço, pensando em levar ao poder público alternativas mais efetivas e diretas junto a essa comunidade."