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Livro reúne estudos sobre História da África

Obra destaca o protagonismo africano e as relações mediadas pelos oceanos Atlântico e Índico

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O livro África, margens e oceanos: perspectivas de história social, publicado pela Editora da Unicamp, é uma coletânea de estudos que aborda a experiência histórica do continente africano às margens dos oceanos Atlântico e Índico – ou em conexão com eles – entre os séculos XVII e XX. Organizado por Lucilene Reginaldo, doutora em história social e professora no Departamento de História da Unicamp, e Roquinaldo Ferreira, doutor pela Universidade da Califórnia e professor no Departamento de História da Universidade da Pensilvânia (Upenn), o livro faz parte da coleção Várias Histórias, que tem o propósito de divulgar pesquisas sobre a diversidade da formação cultural brasileira, pelo ponto de vista da história social.

Os 16 textos que compõem a obra apoiam-se no diálogo entre as produções africanistas no Brasil e no mundo, com ênfase nas confluências e distinções entre elas. O objetivo dos estudos é situar a África nos circuitos globais de comércio, fluxos migratórios e difusão de conhecimento e de práticas religiosas anteriores à presença europeia, valorizando o ponto de vista e o protagonismo dos africanos nos processos e nas relações estabelecidas com o oceano Índico, em vez de apenas considerar o contexto das relações da África mediadas pelo Atlântico. O livro também traz reflexões sobre a produção de conhecimento e o ensino da história do continente africano nas universidades e escolas brasileiras, assim como sobre as discussões que culminaram na lei 10.639 de 2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” na composição das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio.

Convidamos os organizadores para falar um pouco sobre o livro:

Editora da Unicamp: Como foi para vocês, estudiosos do continente africano, selecionar os textos que compõem esse livro?

Organizadores: A seleção partiu de uma série de critérios. Em primeiro lugar, nosso objetivo foi sublinhar a produção brasileira. Há um bom tempo, nós compartilhamos o interesse e o entusiasmo pelas pesquisas sobre a história da África desenvolvidas nos últimos anos no Brasil. Em segundo lugar, queríamos que o livro tivesse a contribuição de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes centros de pesquisa do país. Para nós, isso era fundamental, porque, além de demonstrar que a história da África de fato se tornou um tema de pesquisa com abrangência nacional, também era uma forma de evidenciar a diversidade dessa produção, marcada por tradições historiográficas particulares, a exemplo da importância das pesquisas sobre a Costa da Mina e o Golfo do Benin na Bahia. A flexão de gênero aqui (quando falamos “pesquisadores e pesquisadoras”) não é só retórica. A equidade de gênero também foi um critério de seleção. Do mesmo modo, consideramos a representação racial na composição das seções do livro. Nesse particular, chamamos atenção para o fato de que hoje, entre os africanistas brasileiros, há pesquisadores negros e negras que se destacam pela qualidade e pela originalidade de suas contribuições. Ainda sobre essa questão, também reconhecemos a relação da pesquisa e do ensino de história da África no Brasil com as lutas pela equidade racial. Essa compreensão, aliás, está explicitada na nossa introdução e na organização do livro.

Organizadores do livro, professores Lucilene Reginaldo, da Unicamp e Roquinaldo Ferreira, da Universidade da Pensilvânia

Editora da Unicamp: Olhar a África a partir das relações construídas entre o continente e os oceanos Atlântico e Índico: vocês poderiam falar um pouco sobre esse eixo temático e sua importância dentro da história africana?

Organizadores: A importância das relações entre o continente africano e o oceano Atlântico é, poderíamos dizer, fundadora de vertentes da historiografia dedicada à época moderna. A chamada história dos impérios, que privilegia o protagonismo do Estado-nação e o estudo do domínio colonial europeu (português, espanhol, britânico, holandês etc.) sobre os demais continentes, foi atenta aos chamados circuitos atlânticos e aos deslocamentos de pessoas, produtos, ideais nesse cenário. Para a world history, uma vertente historiográfica formulada nas décadas de 1960/1970, o oceano Atlântico foi, ao mesmo tempo, uma criação do mundo capitalista e condição histórica para a realização de uma economia-mundo, ou seja, do capitalismo. Mas, recentemente, a história atlântica, sobretudo na vertente denominada Black Atlantic, promoveu deslocamentos importantes em relação às perspectivas anteriores no tocante à diversidade de enfoques (além dos estados coloniais e da economia capitalista) e de protagonistas (não apenas europeus, mas também africanos e seus descendentes). Nesse último caso, a própria definição encerra a centralidade do Atlântico como espaço de circulação e produção de ideários políticos, identidades e sociabilidades. Por outro lado, desde os anos 1960, os estudiosos da África Ocidental reconhecem a importância das relações e dos circuitos atlânticos para a compreensão de dinâmicas locais, para além do tráfico de escravizados. Também é importante ressaltar que os estudos feitos no Brasil ofereceram aportes importantes nessa perspectiva. Desde o clássico de Pierre Verger (Fluxo e refluxo), passando pelo livro de Luiz Felipe de Alencastro (Trato dos viventes), até os trabalhos mais recentes, colecionamos evidências das conexões e do seu papel na formação das sociedades nos dois lados do oceano Atlântico.

No que toca ao Índico, o que se constata é que as relações com a África muito precederam a chegada dos europeus, o que dá margem a uma reflexão na qual o papel da Europa é relativizado em favor de uma abundância de atores locais. A chegada dos europeus se dá numa perspectiva quase subalterna. A circulação de pessoas tinha como base redes locais, em que o fator religioso cumpria papel vital na formação de espaços extremamente cosmopolitas. Um dos desafios que o livro propõe, sobretudo na introdução, foi iniciar um debate sobre o que seria semelhante e dessemelhante nos dois oceanos. Para tanto, tentamos promover um diálogo pautado em temas e perspectivas historiográficas mais recentes.

Editora da Unicamp: Um dos objetivos do livro é estabelecer um diálogo entre a produção africanista feita no Brasil e aquela produzida em outros países. De que maneira vocês acreditam que os textos reunidos cumprem esse objetivo?

Organizadores: Em primeiro lugar, é preciso dizer que o Brasil tem uma longa tradição de estudos historiográficos de ponta. No que toca à coletânea, os textos refletem preocupações que também se encontram entre historiadores estrangeiros, o que atesta o cosmopolitismo da produção nacional. Questões como formação de redes transnacionais e o papel de atores locais em suas formações não são novidade no Brasil. De certo modo, a participação de autores estrangeiros na coletânea – e brasileiros sediados em instituições de pesquisa e ensino no exterior – também foi uma forma de promover esse diálogo, que pode ser igualmente constatado nas referências bibliográficas dos trabalhos. Mas há diferenças substanciais quando distinguimos as margens dos dois oceanos. Não há dúvida de que os historiadores brasileiros têm mais familiaridade e diálogos mais estreitos com os estudos e os temas das margens atlânticas. Nesse sentido, os textos de Edward Alpers e Eugênia Rodrigues, historiadores dedicados às conexões africanas com o Índico, foram escolhas atentas ao cenário descrito acima. Um dos objetivos da coletânea foi justamente dar visibilidade e estimular os diálogos com as margens africanas do Índico.

Editora da Unicamp: Na introdução do livro, é dito o quanto essa forma de ver a África, valorizando o protagonismo de seus povos, tem marcado a historiografia da África no Brasil recentemente, uma vez que aqui, por muito tempo, os estudos sobre o continente tinham como foco o tráfico de escravizados africanos e a relação dele com a formação da sociedade colonial brasileira. Como vocês enxergam essa mudança e como ela acrescenta ou até mesmo modifica a nossa compreensão da formação do nosso país?

Organizadores: De certa forma, a resposta a essa questão nos obriga a reiterar pontos já destacados. No Brasil, a criação de programas de pós-graduação em história data dos anos 1960, o que inicia um processo de criação de todo um aparato de pesquisa nos âmbitos federal e estadual. Longe de ser perfeito, esse aparato, na verdade, contribuiu e ainda contribui para o apagamento da história da África. Por exemplo, até hoje não temos uma subárea de história da África na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e nas mais importantes agências estaduais de fomento à pesquisa. No entanto, é inegável que essa mesma estrutura universitária possibilitou a formação de muitos pesquisadores que agora estão na vanguarda não só das pesquisas sobre a África como também de debates sobre as bases institucionais da produção de conhecimento sobre a África no Brasil.

Agora, indo diretamente ao ponto, é importante reconhecer que a escravidão e o tráfico africano ocupam um lugar de destaque – sem exagero, certamente é um dos pilares fundadores – na historiografia brasileira desde os seu primórdios, e essa tradição se manteve no interior dos programas de pós-graduação criados em décadas mais recentes. Embora os estudos sobre o tráfico e a escravidão por muito tempo ignorassem os africanos nos dois lados do oceano, de certo modo eles tiveram um papel importante na “descoberta” da história africana pelos brasileiros. Nesse sentido, a atenção ao protagonismo dos africanos e dos libertos envolvidos no tráfico já aparece no estudo de Verger, mencionado anteriormente. Esse interesse é evidenciado nas pesquisas sobre os soberanos do Daomé, sobre os agentes “baianos” que fundaram famílias africanas (como Francisco Félix de Souza) e também nas pequenas biografias de ex-escravizados e viajantes atlânticos. Não é exagero dizer que esses trabalhos precedem em muitas décadas os chamados estudos do Black Atlantic. A historiografia baiana da escravidão e do tráfico, muito bem representada na nossa coletânea, é fortemente marcada por essa perspectiva. No tocante aos estudos sobre escravidão, a partir de meados dos anos 1980, a historiografia brasileira foi fortemente impactada pela história social inglesa, o que direcionou o interesse dos historiadores para a ação e a experiência dos sujeitos em suas grandes e pequenas batalhas cotidianas (das revoltas às irmandades negras, passando pela família e pela luta por alforria). Nesse sentido, aportes vindos de outras tradições historiográficas, como a micro-história italiana, permitiram inovações metodológicas incríveis, como o uso das ligações nominativas. A Unicamp, por exemplo, tem um lugar de destaque em tal cenário. Acreditamos que esse riquíssimo ambiente historiográfico explica, em grande parte, a sensibilidade e a expertise dos historiadores brasileiros – ou formados no Brasil – para as pesquisas sobre o protagonismo dos africanos. O capítulo de Silvia Lara, na última seção, traz um panorama e, ao mesmo tempo, um testemunho desse background.

Por fim, não há dúvida de que essa perspectiva impacta a compreensão da formação do país. De um lado, ela coloca mais uma pá de cal no mito das três raças formadoras, que relega as contribuições africanas a um lugar “menor” e folclórico na formação do Brasil. Nesse sentido, e também rompendo com uma imagem idílica da África – mostrando, por exemplo, o papel das sociedades africanas e seu envolvimento no tráfico –, reconhece a diversidade política, econômica e cultural na história do continente e dos africanos escravizados nas Américas. Em suma: coloca um basta naqueles mapas da África dividida entre bantos e sudaneses ou de fronteiras em branco, apenas com a indicação de portos de embarque de escravos. De outro lado, e não menos importante, é a restituição, aos afrodescendentes, de sua história, o que foi uma reivindicação central dos movimentos negros contemporâneos.

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Editora da Unicamp: Vocês poderiam falar um pouco sobre como os processos de trocas culturais e de formação de identidades diversas construídas no Atlântico e no Índico pelo comércio são abordados no livro?

Organizadores: A reconstrução de trajetórias individuais é uma das estratégias que os autores utilizaram para analisar trocas culturais e formação de identidade no Atlântico e no Índico. No caso do Atlântico, há uma historiografia vigorosa, no interior da qual os historiadores brasileiros têm uma contribuição relevante, que explora os “viajantes atlânticos” e os “crioulos atlânticos” reconhecendo o protagonismo desses homens e mulheres na condução de suas vidas e/ou influenciando movimentos sociais mais amplos. O destaque ao papel de intermediários (no texto de Alexsander Gebara) e o reconhecimento de indivíduos nos fluxos e refluxos atlânticos constituintes das comunidades de candomblé na Bahia (no de Lisa Castillo) são exemplares nesse sentido. De outra parte, as trocas culturais e identidades diversas também são abordadas na coletânea de forma macro, na história do Islã e da islamização na Senegâmbia (no texto de Thiago Mota) e na abordagem do impacto das dinâmicas africanas no tráfico e na diáspora (no de Carlos Silva Jr). O livro inova ao considerar tais questões no âmbito do Índico, valendo-se do crescimento dos estudos sobre o Indian Ocean World, que se balizam pela ideia de interconexão e formação de redes que ancoravam a circulação de pessoas, mercadorias e ideias. Nesse sentido, além dos textos de Ned Alpers e Eugénia Rodrigues, destacamos as contribuições de Jorge Lúzio e Cristina Wissenbach.

Editora da Unicamp: Uma parte do livro é dedicada à agência dos africanos em contextos coloniais e em questões de classe, gênero e raça. O que os textos dessa parte acrescentam à nossa compreensão de processos do período, como o tráfico de escravizados e o comércio entre europeus e africanos?

Organizadores: Os textos fazem parte de uma reflexão mais ampla entre os historiadores – desde a década de 1960, pelo menos –, em torno da escrita da história da África do ponto de vista dos africanos, reconhecendo seu protagonismo antes, durante e após o colonialismo. Embora o protagonismo africano seja tema/título de uma das seções do livro, ele evidentemente atravessa toda a publicação. É uma das marcas da história social da África feita dentro e fora do Brasil. Nessa seção em particular, os textos de Mariana Candido e Juliana Farias iluminam uma vigorosa historiografia atenta à história das mulheres e às implicações de gênero nas relações de subordinação (propriedade de terras e escravos). Ao dedicar atenção aos sobas, Crislayne Alfagali corrobora a tese de que as relações sociais no âmbito do colonialismo não cabem em simples polarizações. Por último, o texto de Matheus Serva destaca o lugar dos marcadores raciais no chamado colonialismo tardio. No tocante à compreensão do tráfico de escravos e do comércio entre europeus e africanos, o conjunto dos textos que compõem a seção chama atenção para a diversidade de sujeitos, interesses e protagonismos e para a possibilidade de estudos comparativos ou conectados de temas como a alforria em diferentes contextos africanos e atlânticos.

Editora da Unicamp: A lei 10.639 de 2003 estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira em disciplinas que já faziam parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio no Brasil. Dezoito anos depois, como vocês enxergam o cenário do ensino nesse campo? Houve mudanças significativas? E o que vocês acham que ainda precisa ser feito?

Organizadores: O quadro é extremamente desnivelado. Embora a lei tenha servido de catalisador para o avanço dos estudos africanos no ensino universitário, muito ainda precisa ser feito nos outros níveis de ensino. Mas é evidente que não se podem negar avanços também nesse setor. É preciso reconhecer, por exemplo, que a introdução da disciplina história da África nos cursos de licenciatura tem formado professores capazes de avaliar, escolher e mesmo produzir recursos didáticos para diferentes níveis de ensino. No momento de implantação da lei, em 2003, isso não existia. A maioria dos professores se viu na obrigação de ensinar o que nunca tinha aprendido. Além da formação mais sólida em nível de graduação, também foram criados cursos de preparação e especialização para dar suporte especialmente aos professores licenciados antes das mudanças nos currículos impostas pela lei. Também é notável a produção de materiais didáticos e de apoio. Há uma variedade de textos didáticos e paradidáticos e de material audiovisual, muitos disponíveis on-line, e vários deles muito bons, produzidos por colegas especialistas na área. Os textos de Raquel Gomes e Fernanda Thomaz focalizam, de forma privilegiada, a formação docente e, juntamente com o texto de Ynaê Lopes, tratam aspectos mais gerais do ensino de história da África nos níveis básicos de ensino. No âmbito dos recursos para o ensino, vale destacar a publicação de textos da literatura africana por grandes e pequenas editoras brasileiras e a disponibilidade cada vez maior de filmes concebidos e produzidos em diferentes países do continente africano. Não há dúvida de que esse é um dos efeitos da lei, que insuflou o interesse e a demanda. Agora, voltando ao que precisa ser feito, é inegável – isso ouvimos com frequência de professores de ensino fundamental e médio – que ainda há resistências (explícitas ou veladas) ao ensino de história da África. Possivelmente porque a história da África tem o potencial de colocar em xeque o mito das três raças formadoras – o que já mencionamos nesta entrevista – podendo questionar as hierarquias raciais historicamente constituídas. O que é um “problema” em uma sociedade que, ao mesmo tempo, nega as desigualdades raciais e nelas se sustenta. Mais recentemente, também temos ouvido muitos relatos de docentes sobre a resistência de pais e alunos evangélicos ao ensino de história da África. Parece que África é entendida como sinônimo de religiões afro-brasileiras. Isso diz muito sobre o quão pouco ainda se sabe sobre a África, mas também sobre as várias facetas do racismo cotidiano e estrutural no Brasil.

Serviço:

África, margens e oceanos: perspectivas de história social

Organizadoras: Lucilene Reginaldo e Roquinaldo Ferreira

1a edição, 2021

506 páginas, 21 x 14 cm

 

Imagem de capa JU-online
Obra destaca o protagonismo africano e as relações mediadas pelos oceanos Atlântico e Índico

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