Ao rastrear manuais de ensino que circularam pelo território brasileiro, obra lança luz sobre modelos educacionais vindos da Europa
O lançamento da Editora da Unicamp Entre o belo e o útil: manuais e práticas do ensino do desenho no Brasil debruça-se sobre a história do ensino do desenho a partir dos diversos manuais didáticos que foram produzidos e difundidos no Brasil. Escrito por Renato Palumbo Dória, mestre em história da arte e da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), o livro aborda essas práticas considerando seus aspectos estéticos, pedagógicos e suas dimensões sociais.
A obra traça um panorama do ensino e do estudo do desenho artístico no Brasil, desde os registros mais antigos, passando pelo início de sua difusão mais sistematizada, com a vinda da família real em 1808, até o início do século XX, quando a prática passou a ser problematizada pela elite intelectual, em prol de um ideal nacional.
Apresentando as fortes ligações entre estudantes, professores, instituições e publicações do desenho, Renato Palumbo Dória concentra-se no papel que esses materiais didáticos e seus criadores tiveram no Brasil. Seu livro evidencia como os modelos educacionais trazidos da Europa ajustaram-se com o passar dos anos, de acordo com os objetivos das elites e lideranças políticas, e mostra como a produção e a circulação de conhecimentos nunca se dão no vazio, sofrendo a influência de seus contextos histórico e social.
Convidamos o autor para falar um pouco sobre o livro:
Editora da Unicamp: Seu livro faz uma viagem ao passado para narrar a história da prática e do ensino do desenho no Brasil. Poderia nos contar um pouco sobre como surgiu essa ideia?
Renato Palumbo Dória: Aproximei-me do desenho ainda menino, como uma prática cotidiana, doméstica, da mesma maneira que ocorre com muitas crianças de classe média no Brasil, que são, geralmente (e infelizmente), as únicas que têm um acesso regular, em suas próprias casas, aos materiais e recursos necessários para uma prática que demanda não apenas lápis e papéis, mas sobretudo tempo livre em um ambiente cultural que a estimule. Crianças que, além de terem acesso a algum grau regular e sistemático de ensino artístico, são também incentivadas, frequentemente pelos próprios pais, a desenhar e que têm em seus lares o privilégio (no caso brasileiro) de um contato regular com livros, revistas e outros materiais gráficos ilustrados formam, em suas mentes e sensibilidades, um variado repertório de imagens, a partir do qual poderão não apenas melhor interpretar e “ler” as imagens do mundo, mas também exercitar e desenvolver, por meio do desenho e de outras linguagens estéticas, variadas habilidades motoras e imaginativas. Após me formar em educação artística pelo Instituto de Artes da Unicamp e de concluir o mestrado em história da arte e da cultura em seu Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – pós-graduação pioneira nesse campo no país e que tanto deve ao empenho incansável de pesquisadores como Jorge Coli e outros historiadores da arte –, aventurei-me como professor substituto de desenho na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ). Escola que é a herdeira institucional da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, fundada a partir dos esforços em torno da Missão Artística Francesa de 1816 e da Escola Nacional de Belas Artes, com uma história, portanto, que atravessa cerca de 200 anos ininterruptos de ensino artístico. Ainda sem muita compreensão da radical importância do ensino do desenho nesse contexto, comecei a me questionar, enquanto dava aulas, sobre os métodos empregados, notando que, embora todos fossem considerados “modernos” (ou até “contemporâneos”) em termos estéticos, havia neles uma espécie de sobrevivência, mesmo que bastante inconsciente, de procedimentos e modelos de ensino que datavam dos primórdios da Academia Imperial de Belas Artes. Quais as origens e histórias desses métodos? Que valores conservavam e transmitiam? Havia muitas perguntas sem respostas, e entendi que muito do que se fazia derivava de uma cadeia de transmissão de conhecimentos que remontava diretamente, ainda que com suas adaptações e releituras, a modelos e repertórios de séculos passados. Comecei a visitar, nas horas livres, os arquivos do Museu D. João VI, que funciona na própria Escola de Belas Artes da UFRJ. Museu universitário que preserva, com muita tenacidade, essa memória institucional – por um esforço coletivo, no qual merecem ser citados os nomes de pesquisadoras como Ana Cavalcanti e Sônia Gomes Pereira, entre muitos outros professores e estudantes. Então, naquelas calorentas tardes cariocas, debrucei-me sobre as primeiras atas acadêmicas – da década de 1830 –, nas quais estão registradas as discussões e deliberações iniciais dos professores da Academia de Belas Artes. Assombrado com algumas coisas que lia, como as dificuldades encontradas por eles em conseguir um homem branco e jovem que aceitasse posar nas aulas de modelo-vivo, esbocei um projeto focado na história do ensino do desenho no Brasil do século XIX. Incorporando também algumas perspectivas de pesquisa com que tive contato ainda na Unicamp, pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), referentes à memória e à história da leitura e dos livros no Brasil (muito bem trabalhadas pelas pesquisadoras Márcia Abreu e Marisa Lajolo), tive a ideia de fazer com que os próprios livros dedicados ao ensino do desenho contassem essa história. Por meio de investigação realizada inicialmente como um doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), fui encontrando, em variados acervos e coleções brasileiras, antigos desenhos feitos em contextos de aprendizagem. Articulando esses livros e desenhos, encaminhei a pesquisa. Depois de ter concluído esse doutorado, uma bolsa de pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) permitiu que eu aprofundasse ainda mais o trabalho, examinando os acervos iconográficos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em específico.
Editora da Unicamp: No início do livro, você nos conta sobre o caso de Álvaro Sanches e toda a confusão criada na tentativa de reproduzir um desenho de Nossa Senhora. Como foi resgatar esse registro e qual a importância dele para a sua pesquisa?
Renato Palumbo Dória: O mérito de levantar e publicar esse documento não é meu. Em 1591, Álvaro Sanches, cristão-novo, foi denunciado pelo próprio sogro aos tribunais da Inquisição católica, então instalados em Salvador, por supostamente ter profanado uma imagem sagrada – no caso, uma pequena gravura representando uma imagem de Nossa Senhora. Encontrei esse registro em uma edição de Confissões da Bahia, organizada pelo historiador Ronaldo Vainfas. O que fiz foi apenas conectar esse depoimento – no qual o acusado justificava o ato de “picar”, com um pequeno alfinete, a gravura religiosa explicando que não realizara uma heresia iconoclasta, mas um mero procedimento “para tirar em debuxo e lhe ser de molde para por ele tirar outros debuxos semelhantes” – à questão das práticas do desenho no Brasil colonial, o que serve como introdução a um dos objetivos centrais de Entre o belo e o útil: trazer à cena as práticas cotidianas do ensino do desenho, indo além das ideias ou dos discursos institucionais e levando em conta a carnalidade, a materialidade do ensino e da aprendizagem do desenho. Assim sendo, começar pelo caso de Álvaro Sanches é uma sinalização do que o livro buscou, até porque seu foco não é o período colonial, mas o século XIX, quando essas “publicações do desenho” passaram a circular no Brasil de modo sistemático e relativamente massivo.
Editora da Unicamp: A prática do desenho é destacada como tendo sido incentivada tanto para as elites quanto para a população geral em Portugal e no Brasil. Como a circulação de manuais relaciona-se com o ensino de desenho ao longo da história?
Renato Palumbo Dória: A história do ensino do desenho não é apenas uma história de suas instituições (como as academias, os liceus de artes e ofícios, as escolas elementares, entre outras). Trata-se também de uma história de pessoas (sobretudo professores e alunos), de espaços e utensílios, como os manuais que trago à cena, que funcionavam como uma espécie de vetor e lugar de encontro desses diferentes agentes do desenho. Por outro lado, a utopia presente neles, de um desenho universal, que alcançasse igualitariamente meninos e meninas, pobres e ricos, não se efetivou no Brasil. Havia, em quaisquer regiões, obstáculos para o acesso dos jovens a um ensino de qualidade, e maior ainda foi a dificuldade em tornar acessível algum grau regular e metódico de ensino artístico. Por mais que o projeto inicial da própria Missão Artística Francesa de 1816 já fosse de uma “dupla escola” – atendendo com as belas artes a um público mais restrito, e com as artes aplicadas à formação de um “operariado artístico” para a chamada “indústria artística” —, o que se firmou aqui, a partir do século XIX, foi um modelo mais aristocrático e elitista, que manteve as belas-artes como esfera pouco acessível à maior parte da população, ainda que, por meio da academia, alguns jovens muito talentosos pudessem ascender socialmente. Foi na segunda metade do século XIX, com o avanço do movimento abolicionista e a expansão de alguns valores republicanos, que os liceus de artes e ofícios, fundados em várias regiões do país, voltaram-se ao ensino artístico dos trabalhadores, sobretudo em aulas noturnas, já que estes, durante o dia, estariam ocupados em suas fábricas e oficinas. Apesar desses esforços pioneiros, o acesso a uma aprendizagem artística formal (meio pelo qual se vai constituindo um repertório estético e cultural socialmente validado) continuou, em grande medida, como uma espécie de privilégio ou, como bem analisa o sociólogo Jessé Souza ao observar a classe média do país, um mero signo de distinção social a ser ostentado. A circulação dos manuais de ensino do desenho está intimamente ligada a essa história: por mais que os progressos técnicos na produção de livros tenham permitido, já no século XIX, a impressão de um número cada vez maior de exemplares no Brasil, o livro permaneceu majoritariamente como objeto de luxo, exótico e até mesmo suspeito. Os dedicados ao ensino do desenho chegaram a diferentes públicos, facilitando, de algum modo, o acesso às práticas e aos conhecimentos dessa arte. Porém, a circulação desses impressos não se deu de modo efetivamente democrático. Vale mencionar que, entre os conteúdos do ensino do desenho propagados no século XIX, transitavam várias teorias estéticas racistas relacionadas ao tema da anatomia humana, como a cranioscopia e a frenologia, contexto no qual se abrigava a famigerada teoria do ângulo facial de Camper, criada pelo anatomista holandês Petrus Camper. Teorias racistas e eurocêntricas que, pretensamente científicas, sobreviveram em certos manuais de ensino do desenho mesmo ao longo do século XX – como atesta o Manual prático do desenho de Renato Silva, publicado no Rio de Janeiro em 1945.
Editora da Unicamp: O título do livro destaca uma espécie de disputa dentro do ensino do desenho: desenhar para criar algo belo, admirável esteticamente, ou para criar algo útil, no sentido prático, um projeto de uma casa ou mesmo um desenho do corpo humano para o estudo médico. Quais foram os impactos dessa tensão, se é que se pode chamar assim?
Renato Palumbo Dória: O próprio título do livro busca enfatizar essa dicotomia, também relacionada a uma sociedade que distingue as crianças que, de um lado, terão acesso a algum grau de educação estética formal, estabelecendo um capital cultural e simbólico que não se adquire repentinamente, e, de outro, as que, frequentando escolas públicas nem sempre bem aparelhadas, contarão, quando muito, com os esforços de algum abnegado professor de “artes”, preocupado em tornar menos gritante essa desigualdade. O fato é que o acesso ao campo do desenho como meio de fruição e conhecimento estético, de deleite e prazer criativo, e mesmo como educação da sensibilidade, acabou entendido no Brasil como um privilégio ao qual nem todos podem ter acesso. A noção de “utilidade”, por sua vez, foi aplicada especialmente às “crianças operárias”, como eram chamados os filhos de trabalhadores no século XIX, que, quando muito, recebiam uma educação artística voltada à produção industrial, sobretudo por meio do desenho geométrico e linear. As noções de beleza e utilidade, no entanto, não são antagônicas, havendo em todos os seres humanos a capacidade de articular esses campos, caso instrumentos para isso lhes sejam oferecidos.
Editora da Unicamp: Alguns capítulos do seu livro são dedicados aos autodidatas. Você poderia falar um pouco sobre a importância das publicações sobre desenho para aqueles que não podiam comparecer às aulas, como as mulheres ou a parcela mais pobre da sociedade?
Renato Palumbo Dória: À medida que as pesquisas avançaram, encontrei, em diferentes acervos, desenhos executados por mulheres desde o século XVIII, sendo que no âmbito luso-brasileiro as mulheres geralmente eram impedidas de frequentar ambientes de formação artística mais sistemática, como aulas públicas e academias. As mulheres de certas elites aristocráticas, no entanto, conseguiram, em parte, furar esse bloqueio, como os exemplos, que trago no livro, das princesas imperiais brasileiras, irmãs de D. Pedro II, que tiveram aulas regulares de desenho com artistas profissionais, chegando a resultados de grande qualidade. Nas elites que serviam de modelo para o resto da sociedade, o ensino do desenho frequentemente fez parte da formação feminina, mas não pretendia torná-las artistas profissionais, apenas educar suas sensibilidades de acordo com certos parâmetros estético-culturais e, quando muito, auxiliá-las em seus afazeres domésticos. Esse panorama se altera no Brasil em fins do século XIX, com o progressivo acesso das mulheres ao ensino artístico institucional, ainda que ele continuasse relativamente elitizado. Sobre esse tema vale mais ver os trabalhos da pesquisadora Ana Paula Simioni, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), pois meu foco não esteve em descobrir e revelar mulheres artistas, mas nos próprios documentos que fui encontrando ao longo da pesquisa e que me fizeram, em diferentes passagens do livro, trazer à tona a presença dessas mulheres desenhistas. Mesmo que elas não tivessem, em sua maioria, lições particulares de desenho, tinham, pela condição social, acesso a materiais como estampas e livros de ensino do desenho.
Acreditar, porém, que os livros do desenho permitiram o acesso das classes populares aos conhecimentos formais do desenho me parece equivocado, pois, no Brasil, todos os gêneros de publicação permaneceram praticamente vedados às camadas mais amplas da sociedade, e os exemplos singulares de pessoas que, vindas das classes populares, ascenderam socialmente por meio da arte e do desenho, tornando-se professores, artistas e até autores de novos livros sobre eles, parecem mais confirmar esses casos como exceção – e não por falta de talentos e capacidades, mas pelas poucas oportunidades concretas oferecidas aos membros dessas camadas sociais ao longo da história.
Editora da Unicamp: Apesar da influência europeia, houve um momento em que a prática do desenho ganhou ares nacionalistas, voltados à representação do Brasil de acordo com suas próprias imagem e raízes. Como se desenrolou o debate nesse sentido?
Renato Palumbo Dória: Trata-se de um debate que atravessou toda a cultura moderna do começo do século XX e que se esboçava na cultura artística do século XIX, mesmo quando ainda perdurava o modelo acadêmico como padrão inquestionável das qualidades e virtudes do desenho. À época, essas duas eram pretensamente universais e atemporais, praticamente não havendo defesas de um “desenho brasileiro”, ainda que já existissem nos campos da pintura e da literatura. No começo do século XX, porém, conclama-se pela criação de métodos nacionais de ensino do desenho. Os métodos nacionais atingiram resultados muito promissores no México, por exemplo, fazendo uso dos grafismos populares e indígenas, entre outras referências. No Brasil, esses esforços tiveram menos sucesso, apesar de personagens fundamentais, como o paraense Theodoro Braga (mencionado ao fim do livro) e, com ele, as experiências estéticas que propunham a apropriação e a releitura decorativa dos grafismos indígenas. Contudo, o uso de estampas estrangeiras como modelo para o ensino do desenho, apesar dos protestos do próprio Theodoro Braga, permaneceu recorrente ao longo de todo o século XX, chegando, um tanto anacronicamente, aos dias de hoje.
Editora da Unicamp: Como a história narrada em seu livro desemboca na prática do desenho no Brasil hoje? E que caminhos dessa história ainda estão para ser desbravados por pesquisadores e pesquisadoras da área?
Renato Palumbo Dória: A cena contemporânea do ensino do desenho certamente é distinta da descrita no livro. Mas a circulação de manuais e outros tipos de publicações ainda é comum, até mesmo via internet. Eles continuam reproduzindo, de modo acrítico e descontextualizado, conteúdos e modelos de desenho estabelecidos muitos séculos atrás.
Certamente há muito a ser feito na pesquisa sobre ensino do desenho no Brasil. Apesar de mencionar no livro alguns personagens baianos, não consegui pesquisar diretamente na Bahia, cujas experiências históricas devem ser muito ricas nesse campo, levando em conta que Manuel Querino, pioneiro dos estudos sobre as contribuições africanas para a cultura brasileira, publicou dois livros para o ensino do desenho em começos do século XX, em Salvador. No Nordeste brasileiro, focalizei meus esforços em Recife, mas certamente falta muito a ser pesquisado em toda a região. No Sul, devem existir materiais e experiências também muito ricos, desde desenhos realizados em contextos de aprendizagem a manuais importados ou publicados por imigrantes recém-chegados. Em Minas Gerais, cheguei a seguir algumas pistas em Diamantina, nas quais ainda não tive a oportunidade de me aprofundar... Meu livro é apenas um esforço inicial em estabelecer uma visão geral quanto à história do ensino do desenho no Brasil por meio do exame de suas práticas e materiais de ensino, considerando que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, o ensino artístico jamais é neutro ou alheio aos contextos sociais nos quais se desenrola, atravessado que é por interesses de classe e visões de mundo, por mecanismos de poder e de exclusão. Conhecer esse universo de modo contextualizado é conhecer um pouco melhor a história da cultura no Brasil: novas pesquisas nesse campo serão sempre muito bem-vindas!
Serviço:
Entre o belo e o útil: manuais e práticas do ensino do desenho no Brasil
Autor: Renato Palumbo Dória
1a edição, 2021
184 páginas, 23 x 16 cm