A questão é levantada por pesquisadores do Instituto de Biologia da Unicamp em artigo na Trends in Parasitology
Estima-se que 1 bilhão de pessoas no mundo estão acometidas pelas chamadas doenças tropicais negligenciadas (DTN), como leishmaniose e doença de Chagas. Qual tem sido o impacto da Covid-19 nestas populações já vulneráveis, que tradicionalmente sofrem com condições precárias de saúde, saneamento e econômicas? Esta é questão colocada por pesquisadores da Unicamp, em artigo na Trends in Parasitology (grupo Cell), uma das revistas mais conceituadas na área. Os autores levantam artigos publicados sobre a pandemia desde o início em março de 2020 e discutem seus possíveis efeitos a médio e longo prazos nos programas de controle e erradicação de DTN no planeta.
Os pesquisadores destacam as coinfecções da síndrome respiratória aguda grave (Sars-Cov-2) com ectoparasitas, helmintos e protozoários descritas na literatura, e a necessidade urgente de compreender as condições dessas patologias associadas para a continuidade das medidas que vêm sendo adotadas há décadas no controle de parasitoses negligenciadas. "A pandemia vem arrastando essas populações para a pobreza ainda mais extrema. Segundo estimativa do Banco Mundial, esta crise econômica que dura de um para dois anos, vai gerar um ciclo que alimenta o surgimento e dificulta a erradicação destas doenças. Várias delas são difíceis de erradicar, mas outras estavam em processo de controle", diz o professor Danilo Ciccone Miguel, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.
Danilo Miguel é docente contratado para a área de parasitologia desde 2013 e pesquisador responsável pelo Laboratório de Estudos de Biologia da Infecção por Leishmania (Lebil) desde 2015. "No Lebil, trabalhamos com protozoários, principalmente na busca de fármacos para doenças causadas por eles, com ênfase na Leishmania. Eu leciono a parasitologia clássica para vários cursos da Unicamp, coordenando atualmente a disciplina para graduandos da Faculdade de Ciências Médicas."
O artigo na Trends in Parasitology, ressalta o pesquisador, aponta diretrizes elencadas para controlar ou tentar erradicar muitas DTN até 2030, mas que sofrerão com o impacto da Covid-19. "O governo britânico já avisou que cerca de 90% do seu investimento em políticas assistenciais para o controle dessas doenças serão cortados, o que vai impactar drasticamente em ex-colônias como ìndia e Kênia, onde elas são acompanhadas com tratamento em massa, principalmente de crianças. Cerca de 250 milhões de crianças recebem tratamento por ano. Países em geral trabalhando em parceria com organizações não governamentais, terão recursos mais limitados a partir de agora."
O drama da fome, que se agrava e altera o status nutricional destas populações, leva os autores do artigo a levantar uma bandeira de atenção para a comunidade médica e científica, sobretudo no Brasil, que não possui políticas perenes para controle das DTN. "Nossas políticas se alternam de governo para governo. Tínhamos, por exemplo, políticas de tratamento em massa para esquistossomose no Nordeste e vigilância intensa da malária na Amazônia. Não há políticas sistemáticas para a própria leishmaniose, que nas últimas décadas se urbanizou fortemente, deixando de ser uma doença rural e chegando mais perto da gente. Os tratamentos de DTN são difíceis, caros, tóxicos e nem sempre levam à cura clínica."
Para o docente do IB, em relação às parasitoses, um aspecto interessante é que algumas diminuíram com a Covid-19 e outras aumentaram, havendo casos de pacientes que ainda precisam ser melhor compreendidos, já que um ano é o prazo limite para observação. "A Covid-19 impôs lockdown e isolamento social e esperamos que isso reflita em doenças transmitidas pelo contato físico. Um estudo na Argentina mostrou que a infestação por piolho, a pediculose, diminuiu em Buenos Aires [de 70% para 43%], porque as crianças pararam de frequentar o ambiente escolar. Em contrapartida, houve uma explosão de casos de sarna na Turquia, porque as pessoas deixaram o trabalho nas cidades e se aglomeraram em casas de regiões periféricas, com mais membros na família e menos condições de higiene; a sarna é um ácaro de fácil disseminação e os hospitais não puderam sequer trocar as roupas de cama dada à alta demanda de leitos."
Principais DTN
Miguel explica que o termo doenças tropicais negligenciadas (DTN) foi cunhado desde a década de 1970, na Fundação Rockfeller, e no começo dos 2000 acabou aceito e incorporado pela Médico Sem Fronteiras (MSF) e em seguida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tornando-se o termo oficial para doenças que acometem as populações mais pobres e vulneráveis do planeta. "Geralmente cursam de maneira crônica, são debilitantes e muitas vezes fatais, ao passo que temos opções medicamentosas muito ruins, defasadas, além da ausência de vacinas. Existem muitas DTN, que são divididas pelos tipos de patógenos causadores."
Na sua área de protozoários, o pesquisador lembra que a malária saiu da lista das doenças negligenciadas devido ao aumento do suporte financeiro, o que não significa que deixou de ter impacto mundial, pois ainda atinge grande parte de crianças e gestantes no continente africano. "A malária é transmitida por um inseto do gênero Anopheles e em seu histórico já acometeu áreas não tão tropicais, como regiões pantanosas na Europa e em Washington D.C. Esses países conseguiram controlar a malária ao longo do tempo, com o desenvolvimento de antimaláricos e políticas de distribuição de fármacos em massa. A Fundação Bill e Belinda Gates, por exemplo, apoia campanhas de distribuição de redes de proteção contra mosquitos na África, o que teve grande impacto e ainda tem."
As DTN incluem doenças causas por protozoários como as leishmanioses (tanto na forma cutânea como visceral), doença de Chagas (causada pelo Trypanosoma cruzi) e a doença do sono (ou tripanossomíase africana), causada por subespécies de Trypanosoma brucei na África. Há também infecções por amebas e helmintíases transmitidas por solo contaminado (com ovos e/ou larvas de vermes). Já infecções por pulgas, piolhos e carrapatos são chamadas de infestações. Entre as viroses, a dengue e a febre amarela merecem destaque. Entre as principais infecções bacterianas está o tracoma, que atinge os olhos e é uma das principais causas de cegueira no mundo; existem ainda infecções causadas por fungos.
Coinfecção no Brasil
Danilo Miguel informa que o Brasil tem registros de coinfecção por Sars-Cov-2 para doença de Chagas, com pacientes com a cardiomiopatia chagásica crônica respondendo pior à Covid, tanto que hoje estão no grupo especial para vacinação. "Não sabemos ainda se no caso da leishmaniose visceral, com infecção sistêmica, a resposta imunológica modulada pode alterar ou não o curso da infecção por Sars-Cov-2. O que propomos a cientistas e laboratórios é que estudem essas infecções atentando para o perfil de coinfecção. De que maneira uma infecção já estabelecida de Sars-Cov-2 vai se dar em uma região endêmica de DTN por parasito, e vice-versa? Nessas regiões endêmicas com parasitos circulantes, o que acontece com a chegada da Sars-Cov-2? Será que cada DTN se manifesta de maneira diferente? Cada caso precisa ser estudado individualmente e, o mais importante, reportado."
Nesse sentido, o docente do IB chama a atenção para a população formada por imigrantes, refugiados e turistas, ainda que as restrições ao tráfego aéreo e ao turismo possam ter impactado o transporte de parasitas. "Não é uma equação simples, depende da população atingida, sendo que refugiados e imigrantes continuam saindo em busca de melhores condições de vida. Antes da pandemia, Japão, Austrália e Alemanha se preocupavam muito com o trânsito de imigrantes latino-americanos, porque levam junto o Trypanosoma cruzi, que atinge quase 7 milhões de pessoas do continente e, sem saber que estão com a doença de Chagas, podem fazer doações de sangue ou mesmo de órgãos, "doando" junto o parasita a indivíduos de outros países."
Outro ponto colocado no artigo diz respeito a imunossupressores que estão sendo usados contra Covid-19 para controlar a inflamação, mas que dependendo do tipo de medicamento, como um corticoide, podem estimular a reprodução de alguns parasitas. "Isso já é bem conhecido no caso de um verme chamado Strongyloides: quando a pessoa é tratada com corticosteroides, esses parasitas começam a se modificar muito mais rapidamente e causam uma infecção disseminada, o que é bastante sério; falamos de uma doença altamente negligenciada e espalhada no mundo inteiro."
Confinamento e vacinação
Faz parte da equação complexa, acrescenta o pesquisador da Unicamp, saber se o confinamento provocado pela Covid-19 trouxe benefícios ou não para a contenção das doenças tropicais negligenciadas. "Se há um aspecto positivo para a nossa área diante de tanta tragédia, podemos mencionar a vacinação. Algumas tecnologias que vêm sendo desenvolvidas contra Covid-19 não são novas, já estão aí, usadas principalmente em animais e em testes humanos, com plataformas recorrendo a tecnologia de DNA e RNA recombinantes. Logo poderemos ter modelos de vacinas para protozoários, por exemplo, usando essas tecnologias. É como se tivessem aberto a porteira. Acredito que nos próximos cinco ou dez anos surgirão muitas novidades em termos de vacinas contra esses parasitos."
Contra a Covid-19, porém, a mensagem no final do artigo na Trends in Parasitology é de que Brasil foi muito ineficaz no controle da doença, a exemplo da Índia e países africanos, caribenhos e do Oriente Médio. "A cobertura vacinal precisa ser reforçada, principalmente porque estas populações são as que mais sofrem com as doenças tropicais negligenciadas. A situação me parece bem caótica. O nosso alerta, nesta revisão, é exatamente para que os programas de controle não parem, ou vamos voltar à estaca zero. Estávamos indo bem, com doenças que seriam erradicadas ou com poucos focos isolados no mundo até 2050. Há um risco iminente de elas voltarem."
Danilo Ciccone Miguel assina o artigo "O impacto da Covid-19 nas doenças parasitárias neglicenciadas: o que esperar", com quatro alunas pós-graduandas do IB: Mariana B.C. Brioschi, Letícia B. Rosa, Karen Minori e Nathalia Grazzia, todas bolsistas da Capes. "As alunas vivem sob enorme ameaça de perder suas bolsas, diante do desmonte da ciência, que vai impactar na formação de novos cientistas. Temos um reflexo escandaloso de como a dificuldade que enfrentamos na gestão da Covid-19 pode impactar em nossas vidas, ao nível individual e coletivo. Temos parentes e amigos morrendo e uma economia colapsada. Mas como digo aos alunos, não podemos pensar apenas no parasito: a pessoa que tem elefantíase e não consegue se levantar por causa do inchaço na perna, também não vai conseguir trabalhar, sustentar a família e gerar riqueza."