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Unicamp recebe acervo de Ana Maria Primavesi, pioneira da agroecologia

Acervo inclui manuscritos, livros e publicações inéditas, que estarão disponíveis na Biblioteca de Obras Raras Fausto Castilho

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audiodescrição: fotografia colorida de ana primavesi; ela está abaixada trabalhando em uma horta
Austríaca de nascimento, Ana Maria Primavesi mudou-se para o Brasil na década de 1950 e revolucionou a visão sobre agricultura ecológica no país

A Biblioteca de Obras Raras Fausto Castilho (Bora) da Unicamp recebeu o acervo da docente e engenheira agrônoma Ana Maria Primavesi. O material inclui livros, artigos, cartas, vídeos e outras publicações. Após o processo de análise e tratamento da coleção, as obras estarão disponíveis ao público para consulta. A professora Ana Maria é considerada pioneira na agroecologia no Brasil, e revolucionou a visão sobre a agricultura ao considerar o solo enquanto um organismo vivo. “Nunca fiz nada sozinha”, falava a pesquisadora, que faleceu aos 99 anos em 2020 e agora tem sua produção disponível às futuras gerações. 

O acervo encaminhado à Bora possibilitará um aprofundamento não só nas obras de Ana Maria Primavesi, mas em sua trajetória acadêmica e anotações, conforme aponta Maristela Simões do Carmo, professora aposentada da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professora colaboradora da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp. “São 80 caixas grandes. Nessas caixas há todos os escritos dela, inclusive manuscritos, obras inéditas, vídeos, slides de aula, livros que escreveu junto com o marido e toda a história acadêmica dela. O fato de se ter um acervo com todo o conhecimento da Ana na Unicamp vai ser revolucionário para as gerações futuras”, diz a docente, que atuou junto a Ana Maria no campo da agroecologia desde o fim da década de 1970.

A coordenação da Bora pontua que o material, recebido no dia 23 de julho, já passou por processo de desinfecção e desinfestação com radiação, realizado no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Dentre os livros doados, a equipe destaca a primeira edição de Manejo Ecológico do Solo, de 1979, obra fundamental para o desenvolvimento da agroecologia. Além do acervo, também foram encaminhados um herbário e móveis do escritório de Ana Maria Primavesi, que ficarão em exposição junto à sua coleção na Bora. 

audiodescrição: montagem com três fotografias coloridas mostram as caixas com o acervo de ana primavesi chegando à Unicamp
Após tratamento, acervo estará disponível ao público

Ana Maria Primavesi: trajetória de pioneirismo
Ana Maria Primavesi, austríaca de nascimento, chegou ao Brasil nos anos 1950. Ainda na Áustria, formou-se na Universidade Rural para Agricultura e Ciências Florestais, em uma época em que o acesso das mulheres à educação era limitado. Na sua turma, dos 100 matriculados, somente três eram mulheres. A mudança para o Brasil ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial, período no qual foi perseguida pelo regime nazista e chegou a ser presa em campo de concentração. Após vir para o país, a professora seguiu a trajetória acadêmica e a militância junto a movimentos ligados à terra e a comunidades tradicionais. 

Em 1961, ingressou como docente na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde permaneceu até 1974. Na UFSM, junto ao esposo, Arthur Primavesi, participou da criação do Instituto de Solos e Culturas e do primeiro curso de pós-graduação em agronomia. No final dos anos 1970, integrou um grupo de acadêmicos que tinha uma visão crítica à chamada “Revolução Verde” no Brasil, processo que incluía o uso de produtos químicos, novos maquinários e técnicas de manejo do solo importadas de países com o clima temperado. 

A professora Maristela conheceu Ana Maria nessa época. “Eu a conheci no final dos anos 1970, na Associação de Engenheiros Agrônomos em São Paulo. Nós tínhamos um grupo que se chamava Grupo de Agricultura Alternativa. Eram anos de chumbo e o que poderíamos fazer naquela ocasião era nos agarrar às pessoas que estavam lutando pela questão ambiental e pelos agricultores”, recorda. O Grupo de Agricultura Alternativa deu origem, em 1989, à Associação de Agricultura Orgânica.

A partir da compreensão sobre as especificidades dos países tropicais, Ana Maria Primavesi foi fundamental para trazer outra visão sobre a agricultura no Brasil, considerando o solo não somente como um suporte à planta. Desenvolvendo a concepção de manejo ecológico do solo, apontou, dentre outros ensinamentos, que o processo de revirar o solo feito nos países temperados não só era desnecessário no Brasil, como trazia consequências. “Ela nos trouxe outra forma de fazer agricultura num país tropical como o nosso, para que não sofrêssemos consequências ambientais, com erosão, contaminação dos rios com excesso de químicos”, afirma Maristela.

audiodescrição: fotografia colorida da professora ANa Primavesi
Legado de Ana Maria Primavesi, para colegas, inclui a forma simples de compartilhar conhecimentos

Reconhecida e premiada nacionalmente e internacionalmente, Ana Maria Primavesi também atuava na educação ambiental. Produziu um livro de contos ao público infanto-juvenil e é lembrada por colegas por seu jeito simples e fácil de ensinar. “A forma como ela não só escrevia, mas também como falava, era muito simples de compreender. Ela sempre dizia que queria ser entendida, e entendida não só entre os acadêmicos, mas principalmente pelos agricultores, porque ela sabia que seriam eles que iriam dar continuidade à agroecologia”, pontua Vanilde Esquerdo, professora da Feagri/Unicamp, que se lembra de assistir a muitas palestras dadas por Ana Maria, momentos em que era comum a professora ser aplaudida em pé pela plateia.

Para Vanilde, Ana Maria Primavesi deixa diversos legados, não só pelo pioneirismo na agroecologia, mas também pela atuação junto a movimentos ligados à terra e pela coragem de se contrapor ao uso indiscriminado dos insumos químicos. “Ela sempre foi uma defensora da agricultura familiar, dos povos e comunidades tradicionais, da reforma agrária, e foi uma grande contribuidora do MST. Foi pioneira numa época em que se falava em ‘revolução verde’ com uso grande de insumos químicos para fazer a produção, e ela vinha com a teoria que dizia o contrário”, aponta a professora.

Muito antes da emergência das noções de sustentabilidade e de pesquisas que apontam a relação entre agrotóxicos e doenças, Ana Maria também já apontava a conexão entre solo sadio, planta sadia e homem sadio. “Ela tratava tudo de maneira sistêmica, uma coisa complementando a outra e tudo a partir do solo. Se você tem um solo sadio, você vai ter plantas sadias e as pessoas vão ser sadias porque vão consumir essas plantas”, explica Vanilde.

Na vanguarda do que hoje se conhece sobre agricultura orgânica e conectando os saberes acadêmicos aos dos camponeses, Ana Maria Primavesi deixa um legado vasto, apontam as professoras. O acervo na Bora será uma maneira de perpetuar e compartilhar essa trajetória que, conforme lembra Maristela, sempre foi pontuada por Ana Maria como uma trajetória coletiva. “Ela não era de falar muito, mas ela falava sempre uma frase que a gente lembra bastante, que era: ‘eu nunca fiz nada sozinha’”.

Saiba mais sobre Ana Maria Primavesi no site dedicado à professora (anamariaprimavesi.com.br) e também na biografia Ana Maria Primavesi: histórias de vida e agroecologia, por Virgínia Mendonça Knabben.

Imagem de capa JU-online
audiodescrição: fotografia colorida de ana primavesi, ao fundo há plantas

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