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Abdulrazak Gurnah: conquista do Prêmio Nobel de Literatura traz luz para a situação de refugiados

Especialista em Literaturas Africanas e Estudos Pós-Coloniais, Elena Brugioni comenta temas abordados pelo autor e a importância da premiação

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foto mostra o escritor abdulrazak gurnah. ele é negro e tem cabelos e barba grisalha
Abdulrazak Gurnah, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2021 (foto: Tolga Akmen/AFP/Getty Images) 

"Onde eu vivia, a narrativa dominante era o mar e o oceano além dele". O relato feito pelo escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah em uma palestra de 2015 na Universidade de Kent, no Reino Unido, sintetiza alguns dos sentimentos que seus livros buscam transmitir a leitores de todo o mundo. A pluralidade dos povos da costa do Oceano Índico e os contrastes enfrentados por pessoas que deixam seus lares em situações de refúgio são os motores de uma rica obra literária. Laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2021, Gurnah traz luz não apenas à diversidade cultural existente na África Oriental, como também à emergência da situação de refugiados em países do ocidente. 

"Gurnah é um autor que, ao ganhar o Nobel, dedica o prêmio a todas as pessoas que buscam refúgio, que são obrigadas a abandonar sua terra e a procurar refúgio em outro lugar. Segundo ele, os refugiados nunca chegam de mãos vazias. A obra dele mostra muito isso", analisa Elena Brugioni, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp e pesquisadora de literaturas africanas e estudos pós-coloniais. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Elena destaca traços que devem ser ressaltados na obra do escritor, como o diálogo entre referências culturais do oriente e do ocidente e a abordagem de temas relacionados às experiências de pessoas distantes de seus locais de origem. Ela também comenta a importância da escolha de Gurnah para a ampliação do repertório literário do ocidente: "O Nobel provavelmente fará com que ele tenha a audiência que não teve até agora fora de um contexto especializado". 

De Zanzibar para o mundo

Abdulrazak Gurnah nasceu na ilha de Zanzibar em 1948. Na época, o local ainda estava sob domínio britânico, assim como a porção continental da atual Tanzânia. Após a independência da região, em 1963, o país passou por uma revolução que ocasionou perseguições a cidadãos de origem árabe. Isso fez com que ele precisasse deixar Zanzibar e se estabelecer no Reino Unido, onde vive até hoje. Lá, especializou-se em Literatura e em Estudos Pós-Coloniais, tornando-se professor da Universidade de Kent. As experiências de vida e os estudos voltados às literaturas africanas são fatores que impulsionaram seu trabalho literário. Desde 1987, ano de lançamento de seu primeiro romance, Gurnah já publicou dez romances e uma série de contos.  

fotos mostram a cerimônia de independência de zanzibar, em preto e branco, e ao lado uma construção histórica da ilha
Independência de Zanzibar, em 1963 (à esquerda), foi sucedida por conflitos que ocasionaram a perseguição de pessoas de origem árabe. Ao longo de sua história, a ilha reuniu pessoas de diversas origens e culturas. À direita, construções da Cidade de Pedra, área antiga da ilha (fotos: Dennis Lee Royle/AP e Magdalena Pachulowska/Shutterstock)

"A questão do refúgio é um elemento central em sua história pessoal e em sua própria obra. Por isso, Gurnah ganha bastante visibilidade no mundo acadêmico não apenas por sua escrita literária, mas também como especialista em literatura", explica Elena Brugioni. Segundo a docente, ele desenvolve as carreiras literária e acadêmica de forma simultânea, o que possibilita a construção de diálogos entre vários autores africanos a partir das duas perspectivas. "Ele começou escrevendo contos e foi selecionado por coletâneas de prestígio, algumas organizadas por Chinua Achebe, grande escritor nigeriano. Também se especializou em autores muito importantes para os Estudos Pós-Coloniais. Um deles é Salman Rushdie, autor ao qual Gurnah se dedica muito e sobre o qual escreve uma obra (A Companion to Salman Rushdie, 2007). Outro é Ngũgĩ wa Thiong'o, escritor queniano que sempre aparece entre os possíveis candidatos ao Prêmio Nobel", detalha.

Ao abordar em seus livros o distanciamento da terra natal, Gurnah não se restringe a experiências em que culturas africanas e europeias se contrapõem. Paradise (1994), seu principal romance, conta a história de Yusuf, jovem habitante da costa da Tanzânia que é vendido por seu pai para o pagamento de uma dívida. Com isso, o enredo se desenvolve a partir do contraste entre a vivência junto ao mar e o interior do continente. "Gurnah faz um exercício muito interessante, é o próprio africano que descobre o coração da África. Há toda uma ideia de inversão de estereótipos e lugares comuns, que fundamentam o discurso colonial sobre a África como um local primitivo e violento, contrapondo civilização e barbárie", esclarece Elena ao elucidar a relação que se estabelece entre Paradise e O Coração das Trevas (1902), obra de Joseph Conrad considerada um clássico da literatura ocidental. 

Elena também detalha aspectos da obra que expõem um vasto repertório com o qual Gurnah se relaciona, como o diálogo com a poesia suaíli, com as suras do Alcorão e ainda com narrativas bíblicas. Neste último caso, a trajetória de Yusuf pode ser relacionada a José, personagem bíblico que também é vendido e parte para outro lugar. São elementos que, na avaliação da professora, mostram tanto as qualidades da obra quanto o amadurecimento do autor: "Gurnah é muito habilidoso em desfazer expectativas e a noção de final feliz como recompensa ao personagem. Para quem trabalha com literatura e olha para questões que, ao leitor comum podem escapar, é um texto que desperta muito interesse". 

fotos mostram capas dos livros de autoria de abdulrazak gurnah
Obras escritas por Abdulrazak Gurnah ainda não foram editadas no Brasil (imagens: reprodução)

Olhar pós-colonial e ampliação de repertórios

Enquanto acadêmicos, Abdulrazak Gurnah e Elena Brugioni compartilham o pós-colonialismo como perspectiva que norteia seus estudos. O paradigma ganhou força a partir dos anos 1970 e 1980, quando obras como Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), de Frantz Fanon, e Orientalismo (1978), de Edward Said, despertaram a atenção de intelectuais de todo o mundo, sobretudo de países ocidentais, para os efeitos políticos e culturais do colonialismo sobre a África, Ásia e América Latina. Isso abriu espaço para  novas perspectivas de compreensão do mundo e para maior diversidade na elaboração de narrativas. Na literatura, a visão pós-colonial diz respeito à ampliação do repertório literário estudado nas universidades e disponível às pessoas, incluindo no cânone obras produzidas na África e na Ásia. 

Em razão de sua herança colonial, o Brasil ocupa um lugar importante no desenvolvimento desses estudos. Elena explica que há no país uma forte tradição em pesquisas sobre a literatura produzida em países africanos de língua portuguesa, como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde. "O que não ainda não tem muita presença são as 'outras Áfricas', produções de países e povos que não falam português, ou até que não utilizam línguas de matriz europeia. Isso pode criar a ideia de que exista uma 'nossa África', falante de português, e outras, que desconhecemos completamente", adverte. 

Contudo, esta realidade tem mudado a partir de novos estudos realizados sobre esses autores e por movimentos do mercado editorial brasileiro. Ela destaca como exemplo disso a publicação no Brasil das obras da nigeriana Chimamanda Adichie. São ações que despertam o interesse de jovens acadêmicos em literatura. "Tenho uma experiência muito gratificante na Unicamp, muitos alunos querem fazer iniciação científica, mestrado, doutorado nesta área. Vejo que isso ocorre à medida que os estudos afro-brasileiros e a literatura negra no Brasil ganham espaço. É uma aliança muito produtiva também para ampliar o cânone literário, que não se restringe a alguns autores portugueses, franceses, italianos e alemães", comenta a docente, responsável por dois projetos de pesquisa na área apoiados pela Fapesp. Veja aqui detalhes dos projetos. 

foto mostra professora elena brugioni falando em um evento. ela segura o microfone e usa óculos
Elena Brugioni: "Comecei a explorar autores da África do Sul, do Quênia, da Tanzânia, e adentrei nos estudos do Oceano Índico" (foto: Gabriela Zanfelice)

Formada em Letras Modernas pela Universidade de Bolonha, na Itália, Elena descobriu o universo das literaturas africanas ao desenvolver seu doutorado na Universidade do Minho, em Portugal. Ela conta que foi o estudo das obras do autor moçambicano Mia Couto que despertou nela o interesse em explorar outras vozes que produziam literatura nos países próximos. "Comecei a explorar autores da África do Sul, do Quênia, da Tanzânia, e adentrei nos estudos do Oceano Índico. Essa vertente abrange desde a Índia e o Oriente Médio até a costa africana", detalha a pesquisadora. No processo, ela percebeu a oportunidade de descobrir vozes da língua portuguesa que têm na ligação com o Índico um elemento comum: "Minha ideia foi reunir autores que contavam histórias e partilhavam tradições, universos culturais, hábitos e movimentos muito parecidos".

É a partir desse contexto que Gurnah surge como autor a ser estudado, não apenas suas obras literárias, mas também sua produção teórica a respeito das literaturas africanas. Assim como ocorre com outros autores da África Oriental, suas vivências em Zanzibar o conectam com outras línguas e culturas. "Gurnah é um autor cujas histórias são todas construídas a partir do Índico, tendo como lugar emblemático a ilha de Zanzibar, além da Tanzânia e do Quênia, mostrando o contraste que existe entre a costa africana e o interior do continente. É um autor muito trabalhado nessa perspectiva, com uma obra crítica sobre sua produção bastante vasta", pontua. 

"Nenhum refugiado chega de mãos vazias"

Dados de 2021 reunidos pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) mostram que existem hoje 82,4 milhões de pessoas no mundo longe de seus lares por conta de conflitos ou perseguições. Desse total, 26,4 milhões encontram-se em situação de refúgio sob mandato do ACNUR. O número é 115% maior do que há 10 anos: em 2011, o ACNUR registrava 38,4 milhões de pessoas afastadas de suas terras. 

gráfico mostra o crescimento no número de refugiados no mundo
Fonte: ACNUR

O crescimento nos números mostra a atualidade dos temas abordados por Gurnah. A conquista do Prêmio Nobel assume um caráter político significativo ao chamar a atenção para a realidade de pessoas refugiadas. Para Elena, é provável que essa tenha sido uma das preocupações da Academia Sueca ao escolher o autor como vencedor deste ano. "Nós sabemos que a pandemia de Covid-19 agravou imensamente a mobilidade das pessoas, as migrações e os pedidos de refúgio. Um problema que já era sério se tornou ainda mais grave. Acredito que, a partir desse ponto de vista, o prêmio é fundamental", afirma a docente, que também vê nele uma forma de valorizar o potencial dessas pessoas de enriquecer outras culturas: "É importante a ideia de que um refugiado pode vir a ganhar o Nobel. Isso é algo muito relevante". 

Desde 2019, a Unicamp contribui diretamente com a questão dos refugiados por meio da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, da qual Elena Brugioni é integrante titular. Fruto de um acordo entre a Universidade e a ACNUR, ela desenvolve projetos e ações que garantem  ensino, pesquisa e extensão universitária a pessoas em situação de refúgio. Entre as ações já realizadas estão a revalidação e o reconhecimento de diplomas, o ensino da Língua Portuguesa, o acompanhamento da vida acadêmica e o apoio jurídico aos alunos refugiados, além da capacitação de professores e coordenadores para o ensino de estudantes refugiados e a abordagem do tema em disciplinas e seminários. 

foto mostra pessoas refugiadas andando em um campo aberto com tendas da onu ao fundo
"É importante a ideia de que um refugiado pode vir a ganhar o Nobel. Isso é algo muito relevante", analisa Elena Brugioni (foto: Lars Oberhaus/Fotos Públicas)

A professora acredita que o Nobel deverá auxiliar também na missão da Cátedra, ao facilitar a abordagem de novos temas e autores nas aulas. "As obras em línguas estrangeiras, ainda sem tradução no Brasil, são um entrave. Não posso exigir que um aluno de graduação leia um romance em inglês, por exemplo. Essa é uma questão que me impede de ensinar Gurnah hoje em minhas aulas. Ele está no programa de disciplinas, mas são leituras pequenas, comentadas, porque a obra dele ainda não existe em português. No entanto, prêmios como o Nobel ajudam a alargar nosso repertório sobre as literaturas africanas", comenta. 

Elena também tem esperança de que os temas abordados pelo autor sensibilizem leitores de todo o mundo com mais empatia e solidariedade: "Gurnah traz em seus livros histórias sobre os sultanatos, os povos árabes, os Suaíli, o interior da África, a vida na costa africana, a sobrevivência das pessoas, das mulheres, dos europeus, todos como atores que precisam aprender a viver naquele cenário. Tudo isso é muito interessante e produtivo, especialmente em um período em que vivemos, de cada vez mais extremismo e intolerância com o que é diferente”. 

Imagem de capa JU-online
montagem mostra foto da cidade de pedra de zanzibar, uma ilustração de abdulrazak gurnah e de refugiados

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