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Livro debate estratégias de antirracismo no Brasil

Obra mobiliza diversas perspectivas para valorizar novas narrativas como forma de conhecimento

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Sabemos que o estudo da história e de outras disciplinas na escola é fundado em narrativas majoritariamente eurocêntricas. Consciente ou inconscientemente, isso molda nossa visão de mundo. Estudar a história ocidental não é, evidentemente, um problema. O problema é priorizar o estudo das humanidades apenas a partir dessa perspectiva, validando-a como a única verdadeira e excluindo outras. Isso contribui para que permaneçamos ignorantes em relação a tantas culturas.

Essa ignorância é a base para que preconceitos sejam socialmente difundidos; afinal, olhar para o outro como alheio ou intruso impede que sua visão de mundo seja respeitada. A multiplicidade enriquece a democracia. Reconhecer e levar em conta perspectivas múltiplas – de povos negros, indígenas e ciganos, historicamente oprimidos – é essencial para que o racismo comece a ser abolido de maneira mais efetiva, plantando, assim, as sementes de um futuro de fato mais democrático.

Atenta à amplitude de narrativas dos povos oprimidos e à maneira pela qual elas ampliam o alcance do antirracismo nas ações políticas e educacionais, a obra Narrativas de (re)existência: antirracismo, história e educação formula um amplo argumento a favor de um futuro de mais diversidade no conhecimento. A Editora da Unicamp conversou com o organizador da obra, o historiador e professor Amilcar Pereira. 

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Editora da Unicamp: A obra mobiliza dezenas de sujeitos de destaque: de lideranças ciganas, indígenas e negras a nomes de peso da literatura brasileira contemporânea, como Conceição Evaristo. Como foi o processo de organizar uma obra tão ampla? Como a rede de contatos foi se ampliando a ponto de mobilizar tantas pessoas?

Amilcar Pereira: A ideia de organizar o livro surgiu durante um evento realizado em 2019 na Faculdade de Educação da UFRJ, o XIII Encontro Regional Sudeste de História Oral, da Associação Brasileira de História Oral (ABHO), onde boa parte dos autores apresentou o resultado de suas pesquisas em mesas-redondas e conferências. Fui o coordenador do evento, que foi muito rico em debates e reflexões. Ficamos emocionados desde a Conferência de Abertura, feita pela brilhante Conceição Evaristo.

Uma colega historiadora, Ana Carolina Maciel, que é professora na Unicamp, sugeriu que eu reunisse em livro aquelas reflexões tão potentes, e o enviasse para a avaliação da Editora da Unicamp. Alguns temas importantes, como o antirracismo a partir das perspectivas das populações indígenas no Brasil ou das populações ciganas na Europa, não estavam na programação original do evento. Por isso, resolvi convidar especialistas nos temas, como Felipe Milanez, da UFBA, e Silvia Maeso, da Universidade de Coimbra, para colaborarem conosco em um livro ainda mais amplo. Também achei importante convidar algumas referências nacionais na discussão sobre o antirracismo no Brasil, como a professora emérita da UFMG e ex-ministra Nilma Lino Gomes e o filósofo Renato Noguera. Eles enriqueceram ainda mais nosso livro com seus textos, escritos em parceria com colegas de suas universidades. Tive a felicidade de conseguir reunir, neste livro, pessoas que admiro muito, intelectuais brilhantes que são referências em suas áreas de atuação.

Editora da Unicamp: O segundo bloco do livro é dedicado às narrativas de (re)existência, tratando a narrativa como evidência. O que significa, em um sentido historiográfico, abordar uma narrativa como evidência? Como e em que instâncias da sociedade isso pode contribuir para o antirracismo?

Amilcar Pereira: Vou responder a essa questão acionando um trecho do prefácio escrito pelo grande historiador Sidney Chalhoub, outro intelectual que admiro e que aceitou enriquecer o nosso livro. Ele diz que a narrativa historiográfica precisa ser escrita “com enunciados verdadeiros – ou seja, com enunciados cuja plausibilidade possa ser sustentada por um discurso de demonstração e prova, pelo esforço sistemático de apresentação de evidências, por procedimentos informados pela crítica, pela dúvida metódica, pela possibilidade do erro e da correção de rumos”. O que vemos atualmente, no que muitos chamam de “guerras de narrativa”, é, infelizmente, o contrário do que Sidney Chalhoub diz. São muitas “versões” enviesadas sobre diversos fatos históricos, apresentadas sem qualquer compromisso com a verdade ou com as evidências históricas existentes.

Em função do racismo que historicamente estrutura as desigualdades no Brasil, as narrativas de (re)existência produzidas pela população negra em sua experiência de lutas, primeiro pela liberdade, desde que foi trazida escravizada da África, e depois contra o racismo no pós-Abolição, não são amplamente conhecidas nem mesmo nas escolas de educação básica. A educação brasileira ainda é eurocêntrica, a experiência histórica da população europeia ocidental e de seus descendentes está no centro dos currículos das escolas, o que alimenta o racismo na sociedade. Mas as narrativas históricas da população negra, que têm sido produzidas nas últimas décadas “como evidência”, de acordo com o que nos ensina Sidney Chalhoub, e também a professora Verena Alberti em seu capítulo no livro, são partes fundamentais da História do Brasil e precisam estar nas escolas e nas universidades. Isso é necessário para educarmos a sociedade brasileira em uma perspectiva democrática, que contemple no processo educativo, em todas as áreas disciplinares, e em termos de igualdade, todas as matrizes étnicas e raciais que formam historicamente a sociedade brasileira.

Editora da Unicamp: O governo atual cria, incessantemente, barreiras para que a educação antirracista se efetive. Quais são as maiores dificuldades para a construção de uma educação antirracista e mais democrática? Por outro lado, que conquistas a favor dela já foram estabelecidas?

Amilcar Pereira: Acho que a maior dificuldade para uma educação antirracista e de fato democrática de fato no Brasil ainda é a existência do racismo, que, embora evidente em algumas ações do atual governo, é algo que perpassa todo o processo de formação da sociedade brasileira. Não é fácil romper com o histórico eurocentrismo da educação brasileira, por exemplo. Como disse, o eurocentrismo na educação alimenta o racismo, e vice-versa.

Mas, como historiador que estuda o antirracismo no Brasil há cerca de duas décadas, posso afirmar que estamos avançando como sociedade, no sentido de construirmos uma educação mais democrática, graças a ações históricas do movimento negro brasileiro e dos movimentos indígenas. A criação da Lei Federal 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e culturas africanas e afro-brasileiras, atualizada pela Lei Federal 11.645/08, que incluiu as histórias e culturas indígenas, bem como as leis estaduais e federais que criaram cotas para negros e indígenas nas universidades públicas, são conquistas do movimento negro e dos movimentos indígenas. Setores da universidade brasileira têm dialogado com os movimentos sociais e, graças às políticas de cotas, há hoje um grande número de pessoas negras e indígenas nas universidades produzindo narrativas de (re)existência com toda a qualidade acadêmica necessária e com o compromisso com a consolidação da democracia no Brasil. Um exemplo incrível, nesse sentido, foi a ocupação dos veículos de imprensa feita pela Rede de Historiadoras e Historiadores Negros (RHN), em 20 de novembro, marcando os 50 anos do Dia da Consciência Negra, uma luta do movimento negro brasileiro desde 1971. Isso tornou possível a publicação de 45 artigos inéditos em dezenas de jornais impressos, sites e revistas como O Globo, Época, UOL e Folha de S. Paulo, todos escritos por historiadoras e historiadores negros. Um evento inédito pela amplitude e pelo impacto social, que evidencia a produção de narrativas de (re)existência pela população negra e contribui para a educação da sociedade brasileira para as relações étnico-raciais.

Serviço:

Narrativas de (re)existência: Antirracismo, história e educação

Organizador: Amilcar Araujo Pereira

Edição: 1a

Ano: 2021

ISBN: 978‑65‑862-538‑94

Páginas: 320 p.

Dimensões: 16 x 23 cm

Imagem de capa JU-online
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