Livro com receitas de refugiados é um convite para conhecer trajetórias de vida e sabores
Costela de boi, milho, inhame, mandioquinha, cenoura, abóbora, cebola e pimentão, ingredientes conhecidos dos brasileiros, compõem um dos pratos venezuelanos mais tradicionais, o sancocho. Ele costuma ser servido em ocasiões especiais, ou aos domingos, para reunir a família e amigos, sempre com a participação dos presentes em seu preparo. “Em toda família venezuelana, alguém acaba sendo o responsável por ensinar a receita aos demais. Quem me ensinou foi meu irmão Carlos”, contou Ricardo Guevara, um dos colaboradores do livro Sabores sem fronteiras: receitas e trajetórias refugiadas, publicado pela Editora do Senac, em parceria com a Cátedra Sérgio Vieira de Mello CSVM-Unicamp/Acnur. A Presidente da Cátedra, a historiadora e documentarista Ana Carolina Maciel, o ex-reitor da Unicamp, Marcelo Knobel, e a reitora da Universidade São Judas Tadeu, Mônica Orcioli, assinam a obra.
Ricardo nasceu em Caracas, o segundo de quatro irmãos. “Meu gosto pela cozinha vem desde muito jovem. Lembro com emoção de minha avó ensinando as receitas de família para os filhos e filhas, e depois netos e netas. Esta receita traz boas lembranças dessa época”. Ricardo veio para o Brasil em 2015, para se casar com uma brasileira que conheceu quando era guia turístico na Venezuela. Ele sempre prepara o sancocho em sua casa no bairro do Butantã, em São Paulo. “Sempre cozinhei este prato quando Venezuela, na praia, em reuniões com meus irmãos, primos, com música e cerveja. Fazer sancocho é como fazer uma festa”, contou. “Fazer o prato aqui no Brasil é importante porque assim posso compartilhar algo da minha cultura”, disse.
Segundo Ana Carolina Maciel, a proposta do livro é justamente possibilitar trocas culturais por meio de receitas e de trajetórias de vida de imigrantes e refugiados. São 35 receitas de 12 nacionalidades: Venezuela, Síria, Benim, Guiana, Angola, Colômbia, Haiti, Egito, Peru, Cuba, República Democrática do Congo e Filipinas. Cada receita traz um depoimento, um pedaço da história de vida que é compartilhada com o leitor. “A culinária permite transcender, transportar e conectar. Nesse entrelaçamento afloram culturas, memórias e afetos”, afirmou Ana.
Cozinha e identidade – “Preparar comidas da Guiana me faz sentir em casa mesmo longe do meu país. Isso me lembra quem eu sou”, contou René Londja. Ela, que começou a ajudar a mãe na cozinha aos 12 anos, trouxe para o livro a receita de Bakes & Saltfish, um refogado de peixe tradicionalmente servido no café da manhã. Renée, que vive em São Paulo desde 2011, deixou a Guiana para acompanhar o marido, um congolês que pediu asilo no Brasil. Hoje trabalha como artesã, fabricando bonecas com tecidos africanos e reciclados. “Crio bonecas pretas porque acredito que elas ajudam a combater o preconceito, promover a educação inclusiva, valorizar a autoestima da criança negra e fortalecer a identidade étnico-racial”, disse. Para Renée, compartilhar a culinária da Guiana e do Congo é uma forma de unir as culturas e as pessoas.
Segundo dados da ACNUR (Agência da ONU para Refugiados), as populações forçadas a se deslocar de seu país devido a conflitos e perseguições somam 80 milhões de pessoas, das quais 34 milhões seriam crianças. Muitos abandonam suas casas sem nada além de lembranças. “As receitas e vivências que compõem este livro nos sugerem que o ato de cozinhar exerce um poder simbólico, remetendo ao aconchego da terra natal, às lembranças suscitadas pelo paladar, ao som do tilintar das panelas e utensílios, ao afeto que esse ato envolve”, escrevem Ana Carolina Maciel e Marcelo Knobel. Seu preparo serve como uma ligação com o passado dessas pessoas que estão longe de casa. Mais do que isso, ao serem compartilhados, os pratos servem como uma ponte para o outro, ajudando a construir um futuro. Cozinhar é uma forma de voltar, mas também é uma forma de ficar.