Escritora nutria compromisso com a literatura e com leitor, buscando resgatar a palavra através do amor
No domingo (3/4), a literatura brasileira perdeu um de seus grandes expoentes, a escritora paulista Lygia Fagundes Telles. Contemplada com grandes honrarias literárias nacionais e internacionais, entre as quais o Prêmio Jabuti, que recebeu em cinco ocasiões, o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), os Prêmios Afonso Arinos e Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, e o Prêmio Camões, em 2005, ela é autora de uma obra vasta, traduzida para diversos idiomas. Era membro da Academia Paulista de Letras e, desde 1985, da Academia Brasileira de Letras. Em 2016, foi indicada ao Prêmio Nobel de Literatura.
Como observa Walnice Nogueira Galvão, seus contos foram produzidos ao longo de oito décadas. O primeiro livro, Porão e sobrado, foi publicado ainda na adolescência, em 1938. O último, Os contos, reunindo sua produção nesse gênero, em 2018. Evitou, durante toda sua trajetória, a adesão a qualquer uma das tendências literárias que viu se sucederem, “elaborando e depurando seu estilo, mantendo-se leal a ele e à literatura, tornando-se inconfundível - e jamais identificada a qualquer uma dessas modas ou tendências”.
Apesar disso, a autora considerava o como marco inicial de sua obra o romance Ciranda de pedra (1954), com o qual teria alcançado a “maturidade literária”, segundo o crítico Antonio Candido. Em carta a autora após o recebimento do Prêmio Camões, Candido gabava-se de ter sido "um dos primeiros a discernir na principiante dos anos de 1946 a grande escritora que despontava”[1]. Ele alude, como explica em seguida, aos tempos em que ambos eram alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na USP, e a certo concurso literário promovido entre os estudantes, do qual fora jurado. Ao ler o conto "Os mortos", de Lygia (publicado depois em Cacto vermelho, de 1949), percebeu que era “de longe o melhor”.
A “mão de mestre que nunca falha”, identificada por Candido tanto nos contos como nos romances, é ecoada com unanimidade pela crítica, algo que poucos escritores conseguem atingir. Poucos também são os autores que conquistam, além do sucesso crítico, o de público, e, nesse quesito, o êxito de Lygia é inquestionável. Em sua apresentação à primeira edição de Durante aquele estranho chá (2002), Suênio Campos de Lucena destaca que, à altura, os romances Ciranda de pedra e As meninas (1973) já tinham mais de trinta edições.
A recepção positiva entre os leitores parece ter sido importante para a autora. Em carta a Hilda Hilst, em 1989 (disponível no Centro de Documentação Alexandre Eulálio da Unicamp), Lygia comemora o sucesso de vendas de As horas nuas (1989)[2], então na lista dos mais vendidos: “estou contente com o resultado, fisguei o público”, escreve à amiga.
Talvez tenham atraído os leitores sua linguagem surpreendentemente acessível, a precisão das palavras e o viés machadiano, marcado por ironias e ambiguidades, como defende Lucena. É o que percebemos no conto "Um coração ardente" (2012). Nele, o protagonista, rememorando, à Dom Casmurro, seus tempos de juventude, fala ao narrador sobre seu “coração ardente”, que o levou a se apaixonar por uma moça, Alexandra, que descobre ser uma prostituta. O rapaz decide regenerá-la, casando-se com ela. Sem entregar os pormenores da narrativa, é possível adiantar que a ironia, habilmente elaborada por Lygia, está presente na forma do conto. Nada na fala do protagonista, que de fato conduz a narração, ou do narrador, dá indícios de um tom irônico; é o conjunto das ações da personagem que irá transformar a ideia do coração ardente, inicialmente positiva, em algo negativo aos olhos do leitor.
Mas talvez sejam as personagens de Telles que de fato seduzam os leitores. Ela é mestra, lembra o também escritor Alberto da Costa e Silva (2010), “em desenhar com poucas linhas suas personagens. Nesses textos, não é com a descrição de seu porte e de suas feições [...] que ela as põe dentro de nós, mas como uma inclinação de cabeça, o mover das mãos, as entonações da fala e o contrair dos lábios para um muxoxo”. São assim, por exemplo, Romana, protagonista de "Tigrela" (1977), ou a tia Olívia, de "As cerejas". Dessa forma, conhecemos o decote, do qual pendem as frutas vermelhas do título, a blusa transparente, o perfume, a cabeleira que Marcelo agarrava como a crina de um de seus cavalos. Primeira rival da narradora, que descobre o amor no primo, Olívia é construída como uma espécie de femme fatale, de cujas garras o rapaz não poderia escapar. Daquela, a beleza decadente, a “transparente bebedeira”, o olhar inquieto, o dedo com o grande anel de esmeralda, o colar de âmbar, as mãos espalmadas na mesa. A postura arisca, beirando o animalesco, faz com que, por vezes, Romana e Tigrela se confundam no conto, intensificando a tensão entre as duas.
O que temos nesses exemplos são os traços fundamentais das personagens, os desejos, os medos, as inseguranças, enfim, seu âmago sendo revelado fragmento após fragmento, de modo a compor sua imagem física, mas principalmente psicológica. Mais do que as aparências, é seu interior que é escancarado em cada traço, com as contradições típicas de todos os seres humanos. Desse modo, Telles condensa os sentidos de seus textos no que Walnice Galvão chamou de “imagens pregnantes” - “uma síntese extremada de tudo o que o conto insinua” -, presentes desde o título das narrativas, caso do colar de âmbar em “Tigrela”, ao qual podemos acrescentar as cerejas e o coração ardente dos outros contos mencionados.
Essa forma de construir narrativas confere uma singular força expressiva a seus textos. Telles trata de questões como o amor, a morte, o abandono, a passagem do tempo, a partir de recortes do cotidiano, de momentos e elementos comezinhos, que adquirem singularidade através das palavras da escritora.
É o que sugere o crítico e escritor José Castello, em posfácio à edição de 2009 de Seminário dos ratos: “Lygia é uma escritora que trabalha com mistérios e pequenas revelações. Porém não se entenda errado: sua escrita não é religiosa, nem mística. Se há religiosidade, é no modo como ela escava a banalidade em busca de seu miolo. Se há misticismo, ele se esconde em sua inclinação para valorizar as zonas subterrâneas da existência”.
É possível que o fragmento acima não seja desconhecido do público; em janeiro deste ano, ele apareceu em uma das questões do vestibular da Unicamp, cujo objeto era justamente “Seminário dos ratos" (1977), um conto alegórico sobre as relações de poder na sociedade. A escolha da obra pela Comvest foi bem recebida pela imprensa e por professores, o que reitera a importância de Lygia no panorama da literatura brasileira contemporânea e reforça a atualidade dos temas presentes em seus textos.
Há, porém, outras facetas da escritora que merecem ainda serem exploradas. Nas cartas e fotografias de Lygia que compõem os Fundos Hilda Hilst e Abílio Ferreira de Almeida, no CEDAE, encontramos menções aos sucessivos êxitos que obteve com sua obra, no Brasil e no exterior; a proximidade entre Lygia e Hilst, a quem chamava “minha irmã”; um vislumbre de seu cotidiano, em São Paulo, cuidando dos gatos, no interior, fugindo da cidade desagradável, ou em temporadas fora do país; a experimentação nos palcos, como atriz, na peça Heffman, ainda na juventude; a preocupação com o trabalho, com o ofício árduo e solitário de escrever.
Escrever, para Telles, era, a despeito das dificuldades, um exercício amoroso. Em carta a Hilda Hilst, confessa que não podia “escrever com ódio”; era a paz, o fim do tumulto dentro de si mesma, que buscava ao criar seus textos: “na paz está incluído o trabalho, que não se pode (eu não posso, pelo menos) escrever no desespero. Na paz está também o amor”. A “paixão pela palavra”, que a autora menciona nas cartas e em seu discurso de posse na ABL, é o motor de sua escrita. Compromisso com a literatura e com o outro: “Mas o escritor precisa se ver e ver o próximo na transparência da água. Tem que vencer o medo para escrever esse medo. E resgatar a palavra através do amor”.
*Ana Maria Ferreira Côrtes é graduada em Letras e doutoranda do Programa de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
Referências
CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: ___. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. Disponível em: https://is.muni.cz/el/phil/jaro2014/PO0B203/Antonio_Candido_A_nova_narrativa.pdf
_______________. [Mão de mestre que nunca falha]. Destinatário: Lygia Fagundes Telles. São Paulo, 15 maio de 2005. 1 carta. Disponível em: https://correio.ims.com.br/carta/mao-de-mestre-que-nunca-falha/.
CASTELLO, José. Lygia na penumbra. TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos ratos: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
COSTA E SILVA, Alberto da. Conto e memória. TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: memória e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GALVÃO, Walnice Nogueira. O olhar de uma mulher. In: TELLES, Lygia Fagundes. Os contos. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
LUCENA, Suênio Campos de. Lygia Fagundes Telles - A Pessoa e a Escritora. In: TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: memória e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
TELLES, Lygia Fagundes. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. In: _____. Durante aquele estranho chá: memória e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
________________. Os contos. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
________________. Seminário dos ratos: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
________________. [Correspondência]. Destinatário: Hilda Hilst. São Paulo, 4 jul. 1989. 1 carta. Fundo Hilda Hilst, Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE/UNICAMP)
________________. [Correspondência]. Destinatário: Hilda Hilst. São Paulo, 2 mar. 1967. 1 carta. Campinas: Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE/UNICAMP)
[1] Correspondência disponível no Acervo do Instituto Moreira Salles. Disponível em: https://correio.ims.com.br/carta/mao-de-mestre-que-nunca-falha/. .
[2] Informação presente na descrição do documento do CEDAE.