Resultados em laboratório irão alavancar parcerias com empresas para testes clínicos
Cientistas do Brasil e dos EUA realizaram um estudo sobre terapia gênica para TCF4, gene associado a várias condições neurológicas e psiquiátricas. Em artigo publicado no Nature Communications, os pesquisadores apresentaram resultados promissores para terapias para a Síndrome de Pitt-Hopkins, condição ocasionada por mutações no gene TCF4 que compartilha algumas características clínicas com os transtornos do espectro autista (TEA). “Distúrbios como esquizofrenia, depressão, estresse pós-traumático e transtornos do espectro autista estão associados a alterações neste componente genético”, esclarece Fabio Papes, professor do Instituto de Biologia (IB) e um dos coordenadores do estudo.
Pacientes da Síndrome de Pitt-Hopkins têm comprometimento cognitivo, atraso motor e constipação crônica. Tais sintomas podem vir acompanhados de comportamentos típicos dos transtornos do espectro autista. A síndrome foi descrita na década de 1970, mas apenas em 2007 foi estabelecida uma relação direta com mutações no gene TCF4. “O TCF4 controla a fabricação do Fator de Transcrição 4, que tem função ainda pouco conhecida nas células. Cada fator de transcrição é uma proteína que controla a atividade de vários outros genes, de modo que as consequências de uma mutação em um fator de transcrição podem ser muito complexas”, explica Papes.
Já se sabe que o gene TCF4 é muito ativo em neurônios. Portanto, sua relação com disfunções relacionadas ao neurodesenvolvimento não é inesperada. Entretanto, o modo como as mutações nesse gene afetavam o cérebro era pouco conhecido. Ao longo dos últimos cinco anos, os pesquisadores buscaram desvendar os efeitos do TCF4 no desenvolvimento do tecido cerebral de pacientes, primeiro passo para a terapia gênica. Nesse processo, utilizaram-se células de pacientes pediátricos, o que permitiu verificar os efeitos causados pela mutação no gene TCF4 no contexto genético das células dos próprios pacientes. As células foram cedidas por famílias de crianças com a síndrome, tanto do Brasil quanto dos EUA.
A partir de células da pele dos pacientes, os pesquisadores obtiveram células-tronco, depois utilizadas para gerar neurônios e organoides cerebrais – tecido mantido em laboratório que tem similaridades com o desenvolvimento do cérebro humano. “Em geral, as condições genéticas do sistema nervoso são muito difíceis de serem estudadas por falta de um modelo não invasivo. Os organoides impulsionaram a pesquisa na área”, conta Alysson Muotri, professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em San Diego, que supervisionou o estudo juntamente com o professor da Unicamp.
A análise dos organoides derivados de pacientes revelou que as mutações no gene TCF4 reduzem a quantidade de neurônios. “Encontramos evidências de que algum evento interrompe o processo de especialização das células progenitoras neurais em neurônios”, diz Papes. Além disso, o grupo verificou que os neurônios estudados no laboratório apresentam menor atividade elétrica, o que pode explicar vários dos sintomas clínicos dos pacientes.
Testes de terapia farmacológica - Buscando métodos de tratamento farmacológico dos distúrbios ligados ao gene estudado, os pesquisadores desvendaram o funcionamento da Síndrome de Pitt-Hopkins no nível das moléculas, com a identificação de alvos que podem ser “atacados” pela aplicação de fármacos. A análise de dados de atividade gênica em neurônios e organoides permitiu constatar que as mutações no TCF4 acarretam alterações de uma importante via de controle da proliferação celular, conhecida como WNT. “Genes desta via são bastante estudados em virtude de seu papel em inúmeros tipos de câncer, o que favoreceu a pesquisa devido à ampla disponibilidade de substâncias capazes de modificar farmacologicamente a via WNT”, explica Antonio Camargo, um dos pesquisadores da equipe da Unicamp.
A aplicação de um composto específico sobre células e organoides no laboratório foi capaz de ativar a via WNT e corrigir os efeitos danosos da mutação genética, aumentando a quantidade de neurônios no tecido afetado. “Houve uma recuperação notável das características do tecido neural derivado dos pacientes”, explica Papes. A molécula utilizada pelos pesquisadores ainda não pode ser empregada em pacientes, mas estudos pré-clínicos e clínicos irão procurar por moléculas semelhantes que tenham ação efetiva nos pacientes. “Por ora, o uso dessa molécula nos ajuda a compreender o que acontece dentro das células nervosas dos pacientes com a síndrome”, afirma Papes.
Terapia gênica - A terapia gênica é empregada para corrigir a atividade ou ação de um gene mutado. Métodos de terapia gênica incluem a completa substituição do gene mutado nas células afetadas, a introdução de uma cópia extra e inalterada do gene ou o aumento da atividade de uma das cópias do gene do próprio paciente. “Nem sempre a substituição completa do gene mutado é possível, por causa do tamanho de certos genes ou pelo fato de os pacientes apresentarem grandes alterações no cromossomo”, esclarece Papes. Algumas crianças com a Síndrome de Pitt-Hopkins, por exemplo, apresentam grandes mudanças no cromossomo que contém o gene TCF4.
Os pesquisadores testaram outras abordagens, com métodos que empregam vírus para entregar às células disfuncionais os pedaços de DNA necessários à terapia gênica. “Para o funcionamento correto do gene TCF4, são necessárias duas cópias em cada célula, ou seja, dois alelos funcionando normalmente. Porém, no caso da Síndrome de Pitt-Hopkins, um dos alelos não funciona. Para compensar o gene mutado, adicionamos uma terceira cópia do gene”, conta Papes. “A síndrome não é causada pelo alelo defeituoso, mas porque as células não têm dois alelos funcionando suficientemente”, completa o pesquisador.
Outro método leva o gene do próprio paciente a ter sua atividade aumentada nas células afetadas. Com a tecnologia CRISPR, os pesquisadores conseguiram direcionar uma proteína ativadora para a região do genoma que controla a expressão do gene TCF4. Isso produziu a ativação do TCF4, tanto em células neurais como em organoides cerebrais, corrigindo a menor expressão do fator de transcrição no tecido.
Os resultados das duas abordagens entusiasmaram os pesquisadores. Os organoides dos pacientes que passaram pela terapia gênica apresentaram uma quantidade corrigida de neurônios e as células demonstraram atividade elétrica semelhante à do tecido não afetado.
Expectativas - Embora a abordagem a gênica tenha rendido resultados promissores nos experimentos de prova de conceito, ainda é preciso testar diferentes variações do método em ensaios pré-clínicos e clínicos extensivos para garantir a segurança de sua aplicação. “Ainda não foi realizada terapia gênica visando o cérebro humano, mas a ideia é avançar para garantir a segurança da terapia. Estamos sendo pioneiros em terapia genética para o cérebro e esperamos abrir portas para outras condições neurológicas”, diz Muotri.
O próximo passo do estudo é a etapa clínica. Os pesquisadores formalizaram parceria com uma empresa especializada em terapia gênica, que licenciou a tecnologia e já iniciou a produção em larga escala dos reagentes necessários aos testes clínicos da metodologia, com padrão de controle de qualidade necessário ao uso em pacientes.
Com financiamento da FAPESP, do National Institutes of Health (EUA) e da Pitt-Hopkins Research Foundation, a pesquisa foi desenvolvida no Laboratório de Genômica e bioEnergia (LGE), no Centro de Química Medicinal da Unicamp (CQMED) e no Sanford Consortium for Regenerative Medicine da Universidade da Califórnia, em San Diego.
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