Em sua pesquisa, Ronaldo Alexandrino realizou atividades de formação, tendo como horizonte a construção de um ambiente escolar de valorização da diversidade
“Que a vida tenha espaço para existência em nossas escolas, com todas as suas potencialidades”, escreve o professor Ronaldo Alexandrino na apresentação de A suposta homossexualidade, lançado recentemente. A obra é resultado de sua pesquisa de mestrado em Educação, defendido na Unicamp sob orientação da professora Ângela Soligo. No livro, ele analisou as representações sociais de homossexualidade entre um grupo de educadoras. Para a pesquisa, desenvolveu encontros de formação sobre a temática, revelando a importância da discussão para a criação de um ambiente escolar que acolha a diversidade.
Na escola, convivem diferentes grupos sociais. Um ambiente inclusivo exige que os professores sejam formados para lidar com a pluralidade das formas de existência e pensamento. Na capa do livro, uma cadeira vazia representa o fato de que os preconceitos muitas vezes afastam os alunos da escola.
Dados da pesquisa “Preconceito e discriminação no ambiente escolar”, realizada em 2009 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) com uma amostra nacional de 18,5 mil alunos, pais e mães, diretores, professores e funcionários, revelam que 87,3% dos entrevistados têm preconceito com relação à orientação sexual.
A partir da própria experiência enquanto um homem gay e percebendo o sofrimento de crianças com as quais os professores não sabiam lidar, o pesquisador definiu sua temática. “A pesquisa nasceu da minha dor e da possibilidade de atuar na diminuição de práticas homolesbotransfóbicas dentro da escola. As discussões de gênero no ambiente escolar são incipientes, e ainda há pouco espaço para desenvolver um trabalho sobre o tema”, conta.
Ronaldo iniciou o mestrado em 2006. Na época, houve interesse das escolas em acolher as práticas de formação, realizadas por ele com educadoras do Fundamental I e da Educação Infantil da rede municipal de Hortolândia (SP). Foram dez encontros de três horas de duração, em que, com a exibição de filmes e leitura de textos, eram identificadas e discutidas as representações sociais de homossexualidade e sua origem.
“A primeira etapa foi observar os preconceitos das educadoras em relação à temática”, explica Ronaldo. Após a exibição do filme Minha vida cor de rosa (1997), no qual um menino se apresenta como menina, as participantes fizeram perguntas como: “Isso é de Deus?”, “É certo?”, “É normal?”, lembra Ronaldo. “Essas representações, articuladas aos preconceitos construídos socialmente, começaram a aparecer”, conta.
A ideia não era julgar as educadoras, mas refletir sobre a construção das representações sociais. Ao longo dos encontros, algumas mudaram, algumas foram relativizadas e outras não se alteraram.
“Foi um movimento interessante. O olhar para a prática escolar mudou para muitas delas. O ponto principal foi perceber que o problema não está no outro, e sim no olhar sobre o outro. Quem precisa mudar, quem tem que lidar com o sujeito fora da heteronormatividade somos nós e os nossos preconceitos, e não o outro. O outro tem direito de existir como é”, reflete.
Homossexualidade enquanto representação social
Representações sociais são construções acerca de um determinado assunto. “É uma maneira de tornar o que é estranho, não-familiar, em algo conhecido, familiar. É enquadrar o outro em algum padrão já instituído socialmente”, escreve Ronaldo. O objetivo do pesquisador foi verificar as imagens, opiniões e construções que as educadoras tinham em relação à homossexualidade, identificando, também, as representações sociais mais correntes na história.
Na Grécia antiga, diz Ronaldo, a homossexualidade era chamada de homofilia. Ainda que com significados diferentes, a relação entre homens era aceita. Com o passar do tempo e sob influência da Igreja, qualquer ato sexual que não visasse à reprodução passa a ser condenado. Na Idade Média, começa a ser difundido o termo sodomia, associado à ideia de pecado.
No século XVII, é comum o uso do termo pederastia, vinculado ao movimento higienista. Se na Grécia ele designava amor entre homens e jovens, permitida desde que associada ao fortalecimento da polis, agora ele denota crime e doença. No Brasil, essa concepção vigorou a partir do século XIX.
A designação homossexual também surge também nesse período. Vinculada à ideia de anormalidade e perversidade, ela dá origem ao termo homossexualismo, com o sufixo -ismo denotando uma patologia. Apenas na década de 1980 a referência ao homossexualismo como patologia mental deixou de constar no guia de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).
No século XX, a partir das lutas dos movimentos de identidade, o termo usado passa a ser homossexualidade, com o sufixo -dade designando um modo de ser. Em 2004, no contexto da luta pelos direitos legais dos homossexuais, é formulada a expressão homoafetividade.
“Percebam como a nomenclatura vai mudando. Por isso, meu título traz ‘suposta homossexualidade’, porque ela é uma representação social. Vamos mudando o jeito de nomear e a forma de conviver com o comportamento de acordo com a cultura e o entorno social”, elucida Ronaldo.
Ao discutir as representações sociais, o professor ressalta que elas não são naturais. É possível, diz ele, alterar as verdades construídas acerca da homossexualidade, contribuindo para um ambiente escolar que valorize as diferenças.
Compromisso com a transformação social
Após o mestrado, e para ampliar sua pesquisa, Ronaldo ingressou no doutorado, também na FE/Unicamp. A ideia era propor encontros formativos com professores de Fundamental II e Ensino Médio. A reação conservadora ao projeto do governo federal Escola sem Homofobia, de 2011, no entanto, fez com que os espaços para as discussões sobre gênero fossem retraídos. Nenhuma escola aceitou receber o pesquisador.
No âmbito do projeto Escola sem Homofobia foram elaborados materiais didáticos de combate ao preconceito e conscientização sobre os direitos da população LGBTQIA+. O programa havia sido proposto pelo governo em parceria com organizações da sociedade civil, seguindo uma pauta de direitos humanos e cidadania. Designado pejorativamente de “kit gay” pelo então deputado federal Jair Bolsonaro, o projeto recebeu diversos ataques, com disseminação de informações falsas sobre seu conteúdo.
“Daí para a frente, tudo muda. O movimento de negação da temática começa após a problemática do ‘kit gay’.Vivi 12 anos de negação da discussão do tema. Não havia espaço para nada, tampouco para os pesquisadores. Com a campanha eleitoral de 2018, e seu o discurso da família e da escola, as declarações de ódio tornam-se mais explícitas”, analisa Ronaldo.
Nesse período, observa, intensificaram-se as agressões à população LGBTQIA+. Escola e professores passam a ser alvo de ataques e de projetos de cerceamento do pensamento crítico. “A escola tem um compromisso com a transformação social e precisa desconstruir os olhares sobre temáticas diversas, para que possamos elaborar outras representações. Quando faz isso, ela destoa, na grande maioria das vezes, do poder instituído, e por isso incomoda tanto”, avalia o pesquisador.
Após 12 anos, Ronaldo conseguiu publicar a pesquisa em livro. Embora feliz com o resultado, ele pondera que o trabalho segue atual, pois a discussão pouco avançou, em virtude do cenário do país. “Ter conseguido publicar indica alguma possibilidade de mudança social”.
Atualmente, o pesquisador é professor do Ensino Fundamental da rede municipal de Hortolândia e realiza pós-doutorado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFSM), junto ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação. O livro A suposta homossexualidade pode ser adquirido no site da Editora Appris.