Exposição e debates organizados pela Editora da Unicamp convidam à reflexão sobre Independência, Semana de 1922 e ascensão do fascismo
Refletir sobre o Brasil por meio de obras que discutem marcos de nossa história. Este é o objetivo da exposição “A Editora da Unicamp em 22”, que reúne títulos publicados pela casa, nos quais se aborda a formação do país a partir da política, das artes e da identidade nacional. “A questão norteadora da exposição é: como refletir sobre efemérides como essas a partir dos livros publicados pela Editora? Selecionamos cerca de 20 títulos que abordam diretamente esses temas. Com isso, procuramos contribuir para o pensamento crítico e promover uma reflexão sobre os diferentes sentidos, desdobramentos e impactos das temáticas”, explica a professora Edwiges Morato, diretora da Editora da Unicamp.
Entre os dias 7 e 10 de junho, 11 painéis recuperam a trajetória de 40 anos da editora no saguão da Biblioteca Central Cesar Lattes (BCCL). Nos dias 8, 9 e 10, haverá discussões sobre o Bicentenário da Independência, o Centenário da Semana de Arte Moderna e os cem anos da ascensão do fascismo na Itália. “Para a Editora, a melhor maneira de celebrar seus 40 anos é continuar contribuindo para o pensamento, para o aprendizado colaborativo e para a cidadania”, pontua Morato. As mesas serão realizadas no auditório da BCCL. Confira a programação clicando aqui.
O Jornal da Unicamp conversou com as pesquisadoras convidadas para a primeira mesa, que ocorre no próximo dia 8, tendo como tema o Bicentenário da Independência do Brasil. São elas Isabel Lustosa, historiadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e autora de O jornalista que imaginou o Brasil: tempo, vida e pensamento de Hipólito da Costa (1774-1823), e Magda Ricci, professora da Universidade Federal do Pará e autora de Assombrações de um Padre Regente.
Refletir sobre o país nas páginas de um jornal
O Dia da Imprensa é comemorado no Brasil em 1º de junho, data do início da circulação do Correio Braziliense, periódico mensal publicado na Inglaterra, em português, entre junho de 1808 e dezembro de 1822. O jornal divulgava ideias liberais entre os cidadãos luso-brasileiros e trazia novidades do mundo político, social e cultural da colônia. O Correio entrou para a história como o primeiro jornal do país. Seu criador, Hipólito da Costa, é reconhecido como um dos grandes pensadores brasileiros, despertando a curiosidade de jornalistas e historiadores.
Jornal da Unicamp: Que visão de país Hipólito imprimia no Correio Braziliense? Suas ideias vislumbravam um país independente ou eram voltadas ao antigo Reino Unido de Portugal e Brasil?
Isabel Lustosa: Hipólito defendia o que os historiadores chamam de reformismo ilustrado. A partir da administração do Marquês de Pombal (1750-1777), houve um esforço de modernizar Portugal, mantendo a monarquia absolutista, mas incorporando os progressos que o mundo estava vivendo. Essa visão envolvia o Brasil como colônia, entendida como um armazém de riquezas que, se bem exploradas, propiciariam progresso à metrópole. É o momento de formação de uma elite luso-brasileira, que desenvolveu um sentido de pertencimento à grande nação portuguesa espalhada por três continentes. Nesse mesmo espírito, acreditava-se que o absolutismo poderia ser reformado, mas não em um processo revolucionário. Esta era a visão de Hipólito. Ele nunca foi republicano ou democrata, mas um liberal de tipo inglês, o que implicava ideais como acesso à educação e possibilidade de ascensão social a quem não era nobre. Com a partida da família real, em 1808, ele projeta um jornal voltado para a difusão das Luzes no Brasil. Seu objetivo era formar cidadãos.
JU: Ou seja, ele não vislumbrava um Brasil independente?
IL: Pelo contrário. Nem José Bonifácio ou outros membros da elite pensavam no Brasil independente até 1820. A partir de 1815, com a elevação do Brasil ao Reino Unido, esperava-se que Dom João VI permanecesse no Brasil, que seria a sede do império. Para que independência? Quem a queria eram os portugueses, que não desejavam viver submetidos ao Brasil. Com a Revolução do Porto, em 1820, a intenção era obrigar o rei a voltar para a Europa e fazer com que Portugal recuperasse o estatuto de metrópole.
JU: Em que medida o projeto de país pensado por Hipólito foi implementado no Brasil independente?
IL: Quando Hipólito e os liberais brasileiros, que tinham festejado a Revolução do Porto e o fim da monarquia absoluta, perceberam o movimento das Cortes de Lisboa, começaram a reagir às medidas de Portugal em relação ao Brasil. Naquele momento, deixou de ser interessante para o Brasil continuar ligado a Portugal. A vida do reino acontecia aqui. A elevação do Brasil ao Reino Unido foi uma pá de cal no projeto dos portugueses, que achavam que o rei não retornaria a Lisboa. Temos que levar em conta que o movimento de independência foi feito pelo lado de lá, e o Brasil se tornou independente porque não quis se submeter às ordens de Portugal, que contrariavam os interesses do Centro-Sul. Porém, nas províncias do Norte e do Nordeste a dinâmica era diferente.
JU: Isso também se refere à ideia de independência construída ao longo dos anos, centrada na figura de Dom Pedro I e do 7 de setembro? É uma narrativa muito influenciada pela visão paulista?
IL: Não considero uma visão paulista, é uma narrativa do Centro-Sul. O Rio de Janeiro era a sede da corte, e a elite de São Paulo era muito capacitada. O líder mais importante do país naquele momento, José Bonifácio, era paulista. Essa elite iria ocupar uma posição fundamental na independência. No entanto, o projeto de unidade do império surgiu nas mentes de Bonifácio e de Hipólito. Eles acreditavam que, mesmo que o Brasil se tornasse independente, não deveria se fragmentar. O projeto do Império Brasileiro é uma continuação do projeto anterior, mas sem Portugal. Por isso, há um esforço de guerra para obrigar a Bahia, o Maranhão e o Pará a se submeterem à independência. Foi uma repressão violenta à resistência dessas províncias.
JU: Sempre que nos aproximamos do 7 de setembro, há um debate sobre o país que queremos e qual relação devemos ter com essa data. Neste bicentenário, qual a sua posição sobre isso? Que relação devemos ter com a independência?
IL: Minha visão é que o povo não participou da independência, uma perspectiva contestada por alguns historiadores. Há pesquisas sobre a participação da população no processo, mas não havia lideranças populares. Era um projeto das elites econômicas do Brasil, que entraram em confronto com as elites portuguesas. Elas queriam paridade. O projeto de José Bonifácio apresentado às Cortes de Lisboa era o de manutenção dos dois reinos, tal como em 1815. Essa realidade tem a ver com a essência da história dos Estados nacionais, é uma história de elites.
Sonhos de um liberal
Diogo Antonio Feijó (1784-1843) foi deputado, senador e ministro da justiça e é considerado um dos fundadores do Partido Liberal. Assumiu a regência do Império do Brasil entre 1835 e 1837, período marcado por uma série de movimentos sociais, como a Cabanagem, na província do Grão-Pará. “Entre 1831 e 1837, sonhou em reformar a política no Brasil, como ministro da justiça e depois como Regente. Pretendia diminuir a dependência econômica que a igreja católica tinha do Estado. Era contra a titulação de nobreza e os créditos vindos unicamente pelo lastro do sangue. Tornou-se um liberal no sentido mais clássico do termo”, descreve Ricci.
Jornal da Unicamp: Mais conhecido como um dos regentes do Brasil Imperial, Feijó teve longa carreira política, tendo sido eleito deputado em 1826, durante a grave crise econômica pós-independência. De que país estamos falando?
Magda Ricci: O “Brasil” daquela época não existia. Os anos iniciais do Estado Imperial foram caóticos. Estudos recentes sugerem que uma independência pacífica e feita apenas de cima para baixo é um mito. Nada mais simplista do que colocarmos toda força da criação de uma identidade nacional brasileira no ato, ou brado, de um príncipe herdeiro da monarquia lusitana às margens do Ipiranga paulista. A identidade brasileira fez-se paulatina e duramente. Desse processo, o país saiu com um imperador que abdicou e um Estado Nacional dividido, com movimentos sociais pipocando de norte a sul. Era uma realidade dantesca. Funcionários públicos, militares, viúvas de oficiais e até heróis de guerra lidavam com uma situação difícil. Se boa parte desta gente proprietária e mais rica estava em apuros, o que dizer dos trabalhadores, indígenas e negros livres ou libertos? Eles viviam sob dura pressão financeira e política.
JU: Em seu livro, você descreve Feijó como um “padre-político”. A partir desta mescla de política e religião, e fazendo uma comparação com o personagem estudado por sua colega de mesa Isabel Lustosa, quem era Feijó e qual Brasil ele imaginou?
MR: Ele tornou-se um liberal no sentido clássico do termo. Era contra a titulação da nobreza e contra os créditos vindos unicamente pelo lastro do sangue. Atuou como advogado de mulheres oprimidas por seus maridos em Campinas, em casos de corrupção e desvio de dinheiro em igrejas de Itu. Lutou nos tribunais eclesiásticos contra padres corruptos e nos tribunais mais informais e civis em questões locais, como roubos e o que se definia como ‘mau uso’ de escravos. Queria reformar a igreja católica e moralizar os moradores, especialmente os proprietários de bens e de escravizados negros. Talvez o maior sonho de Feijó, nesta época, fosse o de democratizar o tribunal eclesiástico e quiçá toda a igreja católica romana. Entre 1831 e 1837, sonhou em reformar a política no Brasil, que tentou dirigir como ministro da justiça e depois como Regente. Entre 1837 e 1842, tentou fazer uma revolução liberal e, no final da vida, transformar ao menos São Paulo, Minas e o Sul. Sonhos significativos, e muitos deles ainda atuais.
JU: Em suas pesquisas, você explica que os cabanos se autodenominavam “patriotas”. Estamos comemorando o Bicentenário da Independência, o que também remete ao conceito de patriotismo. Como você vê o patriotismo hoje no Brasil? Em sua opinião, ele une os brasileiros?
MR: O conceito de pátria e de patriotismo é volátil e não pode ser confundido com nacionalismo. Um exemplo: o grito cabano de vivas à pátria ou aos patrícios do Pará podia significar muitas coisas diferentes, dependendo do grupo. A luta de independência no Brasil é uma luta de patriotismos. Não sei ao certo o que une os brasileiros hoje, mas sei o que fez parte dos sonhos por essa união no século XIX, e o que nos desuniu e talvez continue nos desunindo. Formamos uma nação passando por cima de diferenças étnicas e sociais gritantes, com negros escravizados, sem discutir qualquer tipo de reforma agrária ou de usos comunais da terra, sem colocar em pauta as terras indígenas, por exemplo. Os problemas que se seguiram foram as consequências desses “esquecimentos”. De todas as partes do novo Estado Imperial surgiram movimentos sociais, dos quais a Cabanagem talvez seja o mais forte.
JU: O que resultou destes movimentos?
MR: Indígenas, negros, mestiços, soldados, lideranças indígenas e quilombolas estavam nos pontos mais interiores do Brasil e falaram bem alto o que desejavam. Queriam poder ir e vir e se expressar livremente, queriam terras e preservar costumes e tradições, queriam votar em seus representantes. Mas a maioria morreu ou sucumbiu a terríveis prisões e a novos recrutamentos e cativeiros sem ver nada disso se realizar. Pior que a simples derrota política, o que mais me assusta é a perda da memória da luta empreendida entre 1822 e 1837. A anistia aos cabanos do Pará, por exemplo, tem muito em comum com a anistia política de 1979. Ambas transformaram os torturados e torturadores em “esquecidos”. No lugar de acolhimento e união, de educação e cultura, esses povos foram tornados “selvagens” e “bandidos”, alijados da nação e da pátria. Isto, para mim, é o que une tristemente o Brasil do século XIX ao do XXI e mostra que a nação está sendo pensada por poucos e para poucos. Para honrar a memória de liberais como padre Feijó e ir além dela, é urgente dar visibilidade a mais pessoas dentro da nação que ainda sonhamos construir. Superar os limites do liberalismo de 1822 e do reacionarismo de 1842-62 (e tantos outros tempos) para fazer diferente em 2022.