Tema é fundamental para compreender o momento político e social do Brasil
A virada testemunhal e decolonial do saber histórico, obra recém-publicada pela Editora da Unicamp e escrita por Márcio Seligmann-Silva, aborda recordação, esquecimento, testemunho e teoria decolonial. O autor retoma diversos fatos históricos a fim de pontuar a importância de combater o pensamento colonial ainda presente em nossa sociedade.
Seligmann-Silva é formado em história pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), com mestrado pela Universidade de São Paulo (USP), doutorado pela Freie Universität Berlin e pós-doutorado pelo Zentrum für Literatur- und Kulturforschung Berlin e pela Yale University. Atualmente, é professor de teoria literária na Unicamp e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Convidamos o autor para falar sobre o seu livro.
Editora da Unicamp: De que forma a sua formação como historiador o auxilia nas pesquisas que desenvolve no âmbito dos estudos literários?
Márcio Seligmann-Silva: Como estudante de história, eu sempre direcionei meus estudos para os campos da estética, de história da arte e da literatura. Minha iniciação científica, nos idos de 1985, final da ditadura, tratou da obra de Antonio Callado como inscrição do período ditatorial. Fui muito influenciado pelo professor Nicolau Sevcenko, que pensava a história moderna a partir da leitura de obras literárias e imagéticas. A leitura de historiadores da Escola dos Annales e de teóricos como [György] Lukács, [Theodor] Adorno e Walter Benjamin também fez com que eu percebesse que as disciplinas, como são divididas na academia até hoje, devem ser problematizadas e esgarçadas. Essa estrutura acadêmica é uma herança do modelo iluminista associado ao Positivismo do século XIX, sem contar que foi parte de um projeto colonial. Por outro lado, aprendi também, sobretudo com Benjamin, que o pensamento humanista crítico autêntico deve estar sempre embebido de história. Antes de qualquer coisa, devemos partir de nosso tempo-agora, o Jetztzeit, que define nossas demandas espirituais, políticas e intelectuais. Não existe objetividade que não seja ancorada no tempo-agora e no nosso local. O meu departamento se chama “Teoria Literária”, na UFRJ; o departamento correspondente se chama, por uma influência germanófila, “Ciência da Literatura”. Esses modelos, que estão na origem desses departamentos, pregavam uma ideia de “teoria” e de “ciência” como frutos acabados do colonialismo iluminista. A “teoria” propõe uma falsa espiritualização da abordagem da produção literária. Ela enclausura a literatura (conceito, aliás, inventado apenas no século XVIII) na torre de marfim. A literatura, desse modo, também é restrita ao modelo emanado da Europa, sendo que os demais países seriam ramos secundários desse veio central, que teria sua nascente brilhante, originária e inalcançável na Antiguidade. Vale lembrar que, durante a era Moderna, os próprios escritores modernos levaram adiante uma luta pelo reconhecimento de que a produção moderna de literatura seria de igual valor que a antiga (a chamada “Querela dos antigos e dos modernos”). Agora percebemos, tardiamente, que também os países e regiões que foram considerados apêndices da Europa devem lutar pela sua independência intelectual, estética e política. Nessa luta, chamada de pensamento pós-colonial, a localização do pensamento é fundamental. O tempo-agora e o local são reconhecidos como parte de todo saber. O pensamento eurocêntrico se pensava universal, mas na verdade “universalizava” para apagar as diferenças, do mesmo modo que o Humanismo na Modernidade sempre foi e é desumano para com os esmagados pelo sistema econômico-simbólico. Enfim, o tema do meu livro, A virada testemunhal e decolonial do saber histórico, só pode ser compreendido diante dessa enfática ênfase do pensamento histórico.
Editora da Unicamp: Na introdução do livro, o senhor afirma que as tentativas de enfrentar os dilemas apresentados na obra são sempre parciais. Qual a importância de propor uma discussão que não seja imparcial?
Márcio Seligmann-Silva: Justamente pensando nesse novo e consistente modelo de objetividade de que falo aqui, não se pode aceitar mais a ideia de um saber “neutro”, “universalizável”, que, no limite, se quer único, monolíngue. Jacques Derrida chamava a nossa atenção para o que denominou de “pulsão colonial” das línguas. Ele notou que as línguas tendem a dominar umas às outras. A Modernidade pode ser vista como uma longa temporalidade que promoveu o triunfo de meia dúzia de línguas de países metropolitanos e a morte de milhares de outras línguas. Este território chamado Brasil também perdeu cerca de mil línguas nesse processo. Cada língua traz consigo visões de mundo únicas que se vão com a sua extinção. Então, aceitar que todo conhecimento é produzido dentro desse (des)encontro de línguas, culturas, classes, gêneros, etnias etc. é fundamental. Temos que deixar para trás o dito objetivismo positivista. O positivista está sempre do lado do poder e dos poderosos. Ele quer afirmar um universalismo que na verdade é uma máquina de apagamento e de aniquilação das diferenças. O autêntico conhecimento exige uma tomada de posição diante dos enormes desafios que temos diante de nós, tanto econômicos como políticos e culturais. Quando se quer destruir a educação, as universidades, a liberdade, a democracia, o meio ambiente, massacrar as mulheres, eliminar os LGBTQIA+, os negros e os pobres, então mais do que nunca temos que tomar partido. Em suma, pregar “conhecimento neutro” só cabe dentro de um discurso negacionista.
Editora da Unicamp: Qual o papel das “políticas de esquecimento” no Brasil hoje, marcado por políticas negacionistas na história e na ciência?
Márcio Seligmann-Silva: Justamente, o Brasil é um país particularmente marcado por essa história de aniquilamento de grupos e de corpos marginalizados e de suas memórias, de suas epistemologias e de seus sonhos. As políticas de esquecimento são parte das necropolíticas. Trato, no livro, como todo genocida quer que esqueçamos de seus crimes. Quer normalizá-los ou ocultá-los, ou, ainda, quer as duas coisas ao mesmo tempo, o que nos leva também à insanidade. Quanto mais violento um país, ou seja, as suas elites, mais essas políticas de esquecimento afloram. Nossas cidades e estradas que comemoram, nos nomes de ruas e em monumentos, ditadores, bandeirantes, generais corruptos e sanguinários apenas dão uma face a esse gigantesco dispositivo de esquecimento que é mobilizado em todas as sociedades modernas, mas aqui de modo mais radical. Se não fosse essa máquina de produção de oblívio e de glamourização da catástrofe, não teria sido possível eleger um acabado representante dessa violência (neo)colonial, como ocorreu no Brasil em 2018. O grau de negacionismo também está diretamente ligado à tendência despótica dos mandatários. No limite, figuras como [Adolf] Hitler criam “Ministérios da verdade” para impor as suas mentiras. O déspota, em seu desejo de poder absoluto, quer abolir toda verdade que não corresponda aos seus interesses. Ele vê na facticidade um desafio à sua desejada onipotência e fere-a com todas as armas que estão ao seu alcance. No Brasil, temos como tarefa a necessidade de reescrever a história a contrapelo (lembrando outro mote de Benjamin), ou seja, temos que galgar palanque para milhões de corpos e bocas e conquistar um espaço político para recebermos e ouvirmos essas histórias que têm sido emudecidas sob o peso do discurso das elites. É isso que significa a virada testemunhal do saber: outros corpos e epistemologias, outras experiências e emoções adentram e recompõem o campo político-cultural desafiando o monolinguismo colonial das elites, fraturando a episteme dita ocidental. Também é isso que os movimentos sociais das mulheres, dos negros, dos LGBTQIA+, dos solidários e participantes das lutas operárias e camponesas, entre tantos outros novos agentes da inscrição mnemônica e histórica, estão tentando fazer. Essas lutas sempre existiram em maior ou menor escala, mas agora, com a nova onda fascista, ficou mais claro do que nunca que essa reescritura crítica e plural da história, eivada de testemunho, é fundamental, porque uma sociedade afogada no negacionismo, no pensamento único e monolíngue está condenada a produzir e a reproduzir genocídios. Como dizia o poeta [Heinrich] Heine, onde se queimam livros, logo se queimam pessoas.
Editora da Unicamp: O que se entende por “práticas de memória” e como o seu livro pode ajudar na desconstrução da lógica colonial que tende a reproduzir violência e desigualdades nos dias de hoje?
Márcio Seligmann-Silva: Felizmente essa onda decolonial só tem crescido nos últimos anos. Eventos como o assassinato de George Floyd, acontecido em Indiana [EUA] em 2020, e a consequente onda internacional de protestos, de derrubadas de monumentos colonialistas são indicadores desse processo que descrevo aqui. No meu livro, eu procuro pensar criticamente nossos hábitos de tratamento de fenômenos culturais que ainda tendem em grande parte a reafirmar o pensamento e a lógica coloniais. Áreas como as chamadas “belas-letras”, assim como as “belas-artes”, estão impregnadas até a medula de pensamento colonial eurocêntrico. A estética que rege as análises acadêmicas é um fruto essencial do dispositivo colonial. Daí eu falar em um dispositivo estético-colonial, já que pelas artes e pela literatura se forjam tanto a ideia de um “povo” (e de seus “inimigos”) como a de uma “nação”, assim como se constrói, nas histórias literárias e da arte, a ilusão de linearidades, descendências e ascendências. O próprio hábito de pensar as histórias literária e da arte do ponto de vista puramente nacional mostra uma persistência que me parece nociva. Como Benedict Anderson nos chamou atenção em seu ensaio sobre as nações como “comunidades imaginadas”, para produzir uma nação, antes de tudo, é necessário produzir muito esquecimento. Depois, cria-se um passado longínquo e heroico para ser cultuado e servir de pedestal para as elites do presente. Autores como W. E. B. Du Bois, Frantz Fanon, Édouard Glissant, Edward Said, Stuart Hall, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Abdias Nascimento, entre tantos outros pensadores essenciais, nos ensinam a pensar para além da ideia de construção linear da nação. Paul Gilroy ajudou a criar e a divulgar a metáfora fortíssima de um “Atlântico negro”. Pensar as histórias das diásporas, das violências, mas também das lutas, das utopias, das vitórias e derrotas de grupos não necessariamente pensados como um “povo” vinculado a uma nação, é um gesto poderoso que permite abrir nossas histórias, nossas autoimagens, para além da clausura da nação. E é dessas histórias e dessas novas e empoderadas autoimagens que se estruturam nossas lutas políticas, assim como nossas pesquisas.
Editora da Unicamp: Como o senhor observa essa “virada testemunhal do saber histórico” e de que modo essa nova sensibilidade pode atuar na construção de novas narrativas?
Márcio Seligmann-Silva: A virada testemunhal do saber histórico é justamente o resultado desse processo no qual a luta pela emancipação de outras vozes e perspectivas está dando seus frutos, talvez tardios, mas com um potencial enorme. O testemunho faz explodir os quadros coloniais da memória. Ele promove novas epistemologias, voltadas não mais para o monolinguismo, mas antes para a convivência com as diferenças. Como as populações espezinhadas pela máquina capitalista são também as que são vítimas do racismo e, mais especificamente, do racismo ambiental, com a emancipação de seus corpos e narrativas, passamos a repensar nossos hábitos de destruição ambiental e nossa concepção empoeirada de progresso. Passa-se, da prática indiscriminada da destruição e da redução de Gaia e de corpos a commodities, para uma ética do cuidado de Gaia e das relações inter-humanas e com não-humanos. Vemos como os partidos políticos tradicionais também estão sendo abalados por esses agentes e seus discursos. Também as diversas disciplinas acadêmicas estão sendo permeadas por grupos econômicos, étnicos e religiosos que antes estavam barrados de entrar na academia. Tenho notado como esses alunos que entraram graças às conquistas das cotas estão modificando rapidamente as ditas ciências humanas. Acredito que essa mudança pode trazer, e na verdade já está trazendo, novos frutos na política e nas nossas vidas de um modo geral. Por fim, lembro ainda que a virada testemunhal do saber histórico tem abalado nossos modos de arquivar o passado. A produção de vídeo-testemunhos, de performances, uma revalorização da oralidade, acompanhada de uma crítica da valorização unilateral de documentos escritos, também são parte dessa virada. Os museus pelo mundo afora começam a ser repensados. Novos debates e querelas jurídicas nascem porque grupos reivindicam a devolução de objetos culturais que haviam sido roubados, dentro da lógica de espoliação e apropriação levada a cabo pela máquina colonial.
Editora da Unicamp: Na era dos “posts” e dos “blogs”, substituídos quase instantaneamente por novas publicações, pode-se falar no fim da “tradição”, ao menos da maneira como era construída e valorizada num passado recente? E como pensar o futuro diante do aparente “esquecimento” na era moderna?
Márcio Seligmann-Silva: Existe uma cumplicidade entre o fluxo alucinante das novas mídias e o negacionismo. Mas isso não precisa ser necessariamente assim. A web deve ser ocupada, como novo espaço público que é. O campo democrático moderno foi estabelecido a partir das doutrinas iluministas do século XVIII calcado em uma noção de espaço público que deveria (em tese) ser organizado democraticamente. O mesmo deve ocorrer com o espaço virtual da web. Nele temos a impressão de que tudo pode ser armazenado, mas também de que tudo pode se afundar. Discuto isso no meu livro tratando da história da memória e da metáfora da inscrição mnemônica. Por outro lado, a tradição, como era pensada até meados do século XIX, já fora abalada, segundo Benjamin, pela invenção da fotografia analógica. Esse meio criou um jeito de inscrever/produzir o real de modo independente das bases materiais dessa inscrição. O paradoxo é que, ao tornarmos o “documento” em algo imaterial e potencialmente reproduzível ad infinitum, perdemos a noção de unicidade e a materialidade que sustentavam a noção de tradição. A virada digital apenas fez aprofundar isso que já estava acontecendo com a fotografia. Mas mesmo assim continuamos a construir nossos novos arquivos e anarquivos, pois o testemunho justamente anarquiza com os arquivos arcônticos (os que estão sob a responsabilidade dos Arcontes), os arquivos do e para o poder, sem os quais Estados e burocracias não existem. Se o atual governo vive a decretar cem anos de esquecimento com relação aos arquivos de sua destruição, as contramemórias testemunhais permitem e permitirão a inscrição dessa história da violência, em que pese toda a efemeridade dos arquivos digitais. Por outro lado, é importante destacar que o espaço virtual, sobretudo a partir das redes sociais, tem uma tendência a privilegiar palavras de ordem simples e direta (que são facilmente assimiladas, memorizadas e reproduzidas), que têm sido manipuladas com muita competência pela direita. Existe uma estrutura na web que tem facilitado o pensamento calcado no jargão, mas isso também tem que ser atacado pelo campo progressista.
Editora da Unicamp: Seu livro fala sobre “testemunhos”. Como discorrer sobre eles em uma sociedade alheia à construção de memórias?
Márcio Seligmann-Silva: Não acho que nossa sociedade seja alheia à construção de memórias. Na verdade, existe uma guerra de memórias em toda sociedade. Na sociedade brasileira, ou seja, em um país com uma das piores distribuições de riqueza do mundo, marcado por séculos de escravização e de recalcamentos de suas feridas, neste país amplamente neocolonial, com uma elite que sempre esteve de mãos dadas com as elites internacionais, temos a impressão de que a memória não tem lugar, a não ser aquela oficial, propagandeada pelos donos do poder. Mas os testemunhos com suas outras memórias, com seu trabalho de contra-arquivamento crítico, estão aí. A sociedade precisa se abrir para eles, pois não existem testemunhos sem ouvidos para escutá-los, sem outras pessoas para recebê-los e portá-los. Em inglês, se diz para “dar testemunho” “to bear witness”, algo como “aguentar o testemunho”. Precisamos receber e portar esses testemunhos se quisermos sair finalmente da era colonial.
Editora da Unicamp: O senhor menciona dois rios que compunham a paisagem da geografia mítica da Grécia antiga: Lete, o rio do esquecimento, e Mnemosyne, o rio da recordação. Pode-se dizer que memória e esquecimento caminham juntos? Como isso se dá?
Márcio Seligmann-Silva: Sem dúvida, não existe uma oposição simples, esquecimento x recordação. Por exemplo, como recordo com Santo Agostinho, nós nos lembramos que esquecemos de algo. O esquecido mora na nossa memória! Por outro lado, como falei acima, para construir grandes narrativas associadas à ideia de um progresso único e linear, apagam-se “zilhões” de outras narrativas que não se deixam reduzir a essa narrativa euro e tecnocêntrica. Constrói-se uma memória das elites à custa do esquecimento/apagamento/recalcamento de outras. Daí o testemunho surge como um conjunto de “traços” mnemônicos que permitem estabelecer escritas contra o oblívio. O conceito de trauma, que também estudo amplamente em meu livro e em outros artigos, trouxe uma enorme complexificação desse par memória-esquecimento. Afinal, para [Sigmund] Freud, os traumatizados sofrem de “memória demais”. Para Freud, existem também cenas que estão recalcadas e constituem traumas grupais que podem ficar por muito tempo, como na memória-esquecimento traumático dos indivíduos, em estado de latência e depois de décadas serem reativadas. Ora, o termo “latência” vem de Lete, assim como a teclinha de nossos computadores “delete”: deletar significa jogar no rio Lete. E sabemos que muitas vezes o que deletamos em uma ocasião acabamos recuperando para outros textos. Enfim, não dá para fazer uma dicotomia simples entre esses dois rios que nos atravessam, tanto quanto os atravessamos ao longo de nossas vidas.