Para Ana Elisa Salmaso, concessões ao comércio exterior e persistência do racismo na estrutura social do país são aspectos coloniais ainda existentes no Brasil
“A função dessa terra sempre foi a de servir e não a de se desenvolver”, analisa a historiadora e doutoranda em Ciência Política na Unicamp Ana Elisa Salmaso, ao avaliar a persistência de aspectos coloniais no país depois de 200 anos de independência. Atividades econômicas pautadas na exploração dos recursos naturais, concessões ao comércio exterior e a persistência do racismo são aspectos analisados por ela, que traça um paralelo entre o projeto de Brasil Colônia e os dias atuais.
“Em relação à cidadania para os habitantes do país, os debates sobre quem seria um cidadão brasileiro na Constituinte de 1823 estavam mais preocupados com quem não seria”, avalia Salmaso. Para ela, “as vozes a favor do fim da escravidão foram silenciadas, e o que venceu foi o mantimento da tal ‘ordem social’ baseada na posição subalterna da população negra”.
A escravidão, formalmente abolida apenas em 1888, permaneceu na base da sociedade. Atualmente, o racismo ainda se expressa, por exemplo, na ocupação dos postos de trabalho mais precarizados pela população negra, na sub-representação política e na violência policial. “Do mesmo jeito que a polícia era instruída no século XIX a presumir a escravidão de qualquer pessoa negra nas ruas, hoje a polícia suspeita dessas mesmas pessoas, achando que são criminosas. É o que costumo dizer, o crime em flagrante da cor”, aponta.
Em entrevista, Salmaso, que estuda leis escravistas e a questão do estado de direito na América Latina, também fala sobre a persistência da posição agroexportadora do Brasil na economia mundial, da dívida externa e de concessões ao comércio exterior. Confira:
Completamos 200 anos de independência nesse 7 de setembro de 2022. Qual era o projeto de país pensado para o Brasil e para sua população?
Acho que a grande questão sempre foi um Estado sem Nação. Pois, se a terra e as gentes serviam interesses alheios, qual era o vínculo entre os habitantes do Brasil? Talvez um dos infortúnios desse país foi ser tão incrível e exuberante. Todo mundo sempre quis uma parte e não sobrou muita coisa para a gente, apesar de ser um país extenso territorialmente.
Em relação à cidadania para os habitantes do país, os debates sobre quem seria um cidadão brasileiro na Constituinte de 1823 estavam mais preocupados com quem não seria. Muitos países em processo de Independência no século XIX lidavam com a questão do fim da escravidão, bem como o Brasil. Porém, aqui, as vozes a favor do fim da escravidão foram silenciadas, e o que venceu foi o mantimento da tal “ordem social” baseada na posição subalterna da população negra em prol da obtenção do trabalho escravizado.
O que fizemos foi garantir uma roupagem de uma cidadania liberal, com severas ressalvas devido à estrutura social racializada. Por exemplo, os libertos não tinham os mesmos direitos que “pessoas brancas”. Coloco entre aspas pessoas brancas, pois a cor também dependia de relações familiares e políticas, não era só algo visual.
Apesar de formalmente finalizado, aspectos do Brasil Colônia permaneceram. Em termos de economia, continuamos sendo um país agroexportador, com uma função semelhante à do passado: abastecer de commodities o mercado mundial. Como você avalia esse percurso?
Essa pergunta é muito importante, pois, olhando a questão da economia, fica bem nítido como muitas coisas não mudaram. Somos ainda um país agroexportador, e o projeto colonial ainda permanece. Basta lembrar que o modelo de plantations trazido no século XVI tinha como pilares o latifúndio – uma concentração de terras enorme ainda existente –, a monocultura, a mão de obra escravizada e o atendimento do mercado externo.
A função dessa terra sempre foi a de servir e não a de se desenvolver. Para fazer um paralelo, retomo a questão do Alvará de 1785, que proibia a abertura de fábricas e manufaturas ainda no Brasil colônia. Na época, já se iniciava a Revolução Industrial na Inglaterra e se espalhava pela Europa.
O motivo é que essas atividades se chocariam com a necessidade das pessoas de cultivarem a terra, então desejava-se restringir o início da industrialização no Brasil e deixar a população voltada à produção agrária. No século XIX, com a vinda da família real em 1808, esse alvará cai, permitindo indústrias no Brasil, e há a abertura dos portos. Em 1810 é aberta a primeira siderúrgica, a fábrica de ferro São João de Ipanema, no interior de São Paulo, na região de Sorocaba, que funciona até 1895. O Brasil ainda era colônia quando ela surgiu, mas foi criada com o discurso de que era preciso desenvolver o país e a indústria.
Em 1822, a gente pode pensar que a situação mudaria com a Independência, mas as dívidas que Portugal já tinha com a Inglaterra foram herdadas por nós. Já estávamos vendidos desde o início. Em 1822, isso não mudou, só foi reforçado. As questões alfandegárias, que seriam as taxas para produtos de nações amigas, como diziam, beneficiavam principalmente produtos ingleses, que tinham taxas baixíssimas. Digamos que a gente já era ‘freguês’, e se percebe que não há um projeto de independência econômica.
No século XIX, a maioria das indústrias era estrangeira. Aqui em Campinas havia muitas – por exemplo, fábrica de macarrão –, mas eram estrangeiras. A patente de uma das primeiras máquinas inventadas no Brasil, que era para beneficiamento de café, ou seja, para o setor agro, foi pedida por estrangeiros. Inclusive, o documento dessa patente, feita pela Dom Pedro II, está no Centro de Memória da Unicamp.
Passando para o século XX, vemos que há uma expansão da indústria, com a questão do desenvolvimentismo na década de 1930. Mas houve uma metamorfose do problema. Continua a mesma estrutura e muda a roupagem. Ainda enfrentamos a questão da dívida externa. Acaba o ciclo do café, temos uma indústria incipiente que continua precisando de produtos de fora e continuamos como exportação primária. Isso permanece até hoje.
A Petrobras também ilustra bastante a persistência de uma posição subalterna na economia mundial. O que é mais Brasil que a Petrobras? Ela refina todo o petróleo, quem comercializa esse produto são empresas estrangeiras e nós pagamos o preço de exportação. Passaram-se dois séculos e continuamos sem um projeto de país para os brasileiros, de fato. E isso é parte de um plano. A dívida externa ainda é a mesma e ainda devemos concessões ao mercado externo.
Com a persistência, ainda hoje, da população negra nos trabalhos mais precarizados e menos remunerados…
Os postos de trabalho historicamente mais degradantes sempre foram para as populações negras, que enfrentam poucas perspectivas de mobilidade significativa até hoje. Um elemento teórico importante e que é desenvolvido pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos é a “cidadania regulada”, que foi a cidadania instaurada pelo período Vargas.
Ela estava baseada nos postos de trabalho das pessoas (carteira de trabalho), e já que a população negra em sua grande maioria continuou nos postos mais baixos, esse fenômeno só deu continuidade à estrutura social vigente. Exemplo disso é que, dependendo de algumas funções ou registros na carteira de trabalho, o trabalhador tinha acesso à saúde pública, que só se tornou universal no fim da década de 1980.
Outra reflexão importante é a de terceira escravidão. Esse conceito remete à teoria historiográfica sobre a escravidão no país. Já que, no século XIX, chamou-se de segunda escravidão aquela que alimentou a produção agrária agroexportadora e foi moeda de troca do país para se inserir no mercado mundial, hoje temos a terceira. Com a uberização do trabalho, exemplificada pelo Ifood, entre outras empresas, os direitos desses trabalhadores são inexistentes, e os salários estão fora de qualquer regulação da lei. Por isso, podemos nos referir a uma terceira escravidão. E, novamente, essa escravização é da população negra, que é a maioria entre eles.
Falam que capitalismo, liberalismo e escravidão não têm nada a ver, mas, na verdade, eles fazem parte de uma mesma engrenagem. A Europa foi custeada pela escravidão e pelo colonialismo. De certa forma, ainda somos uma colônia, com todo o trabalho precarizado que fornecemos até hoje.
Até aqui só falamos de postos de trabalho e leis trabalhistas, mas a violência contra a população negra é historicamente verificada em continuidades. Do mesmo jeito que a polícia era instruída no século XIX a presumir a escravidão de qualquer pessoa negra nas ruas, hoje a polícia suspeita dessas mesmas pessoas achando que são criminosas. É o que costumo dizer: o crime em flagrante da cor. Por isso, podemos concluir que a cidadania no Brasil ainda tem cor e gênero e está representada em um homem branco.
Ainda sobre a cidadania, como ela estava expressa na primeira Constituição do país, tendo em vista que a escravidão ainda permaneceu por cerca de 60 anos após a independência, e os direitos não eram os mesmos também para os povos indígenas?
Sobre os aspectos históricos das populações indígenas no país e sua inserção na estrutura social, cabe lembrar que elas foram igualmente escravizadas. No século XVIII, Portugal proibiu a escravidão indígena, porém deixou que essas pessoas fossem tuteladas pelo governo ou particulares. Até a Constituição de 1988, essas pessoas foram tuteladas e tratadas como “povo criança”. Mesmo deixando o status jurídico de tutelados do Estado, ainda sofrem abusos e dizimação, como podemos verificar massivamente nos noticiários recentes.
Em relação à cidadania da população negra – e falar de população negra é falar de Brasil, onde mais de 50% da população é negra –, o que podemos aferir? Partindo de 1822, se analisarmos o que foi a cidadania da primeira Constituição, de 1824, observaremos que os políticos estavam imbuídos do que era a “moda” na época: o liberalismo de Benjamin Constant. Não é à toa que está em nomes de rua. A ideia do liberalismo era a de que todos são iguais. Até hoje esse engodo existe, sob a forma de democracia.
Havia pessoas que não estavam dentro da Constituição, que eram os escravizados. A Constituição era extremamente racializada. Um dos deputados, Antonio Rebouças, que na época era tido como “pardo”, lutou pela inserção dos libertos, que já não eram propriedade de outro, na Guarda Nacional. Mas foi vencido. O cidadão da Constituição não era ninguém “de cor”.
Um dos exemplos, que é tema do meu doutorado, é a lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos escravizados para o país. O que ocorreu foram vistas grossas sobre a lei. Não havia fiscalização, tanto que pelo menos 500 mil africanos entraram ilegalmente no país, número que se estima ser muito maior.
As pessoas que chegavam no Porto do Rio de Janeiro deveriam ser livres, mas isso não ocorreu. Porque o Brasil, naquela época, quando se falava em imigração, não queria imigração africana, não queria negros livres aqui.
Depois da lei de 1831, os milhares de africanos que aqui chegaram ilegais ficaram no vácuo de status jurídico: nem cidadãos, nem estrangeiros. Outro aspecto dessa lei é o sétimo artigo: “Não será permitido a qualquer homem liberto, que não fôr brazileiro, desembarcar nos portos do Brazil debaixo de qualquer motivo que seja. O que desembarcar será immediatamente reexportado”. Na prática, isso dizia respeito aos africanos e a pessoas negras em geral estrangeiras e que não fossem escravas.
Então, conclui-se que as pessoas negras não seriam admitidas no país como cidadãos livres. Essa tendência era mundial. Muitos dos países que se diziam contra a escravidão, como a Inglaterra e parte dos EUA, eram a favor de enviar libertos para uma colônia específica, e de não os admitir em suas nações.
No que se refere ao exercício de direitos políticos, a perspectiva colocada na primeira Constituição era limitada para certa parcela da população: pessoas brancas e com uma renda mínima. Como você avalia essa limitação? Existem reflexos disso ainda hoje?
Na Constituição de 1824, a cidadania é branca. Nessa época, em termos de direitos políticos, quem podia votar era quem tinha dinheiro. Quantas pessoas negras teriam aquela renda para votar? Candidatar-se, então, era impossível.
Em 1881, uma nova lei eleitoral restringe ainda mais a participação do liberto em comparação à Constituição de 1824, já que os requisitos de renda e de instrução aumentam. Nessa época, no Brasil, a maioria dos negros eram libertos. Poderiam já ter o título de cidadania brasileira, mas isso não ocorreu, porque a cidadania foi restringida pela questão da escolaridade, pelo nível de instrução que aumentou, assim como também aumentou a renda anual.
Ou seja, já estava se antevendo que os negros libertos poderiam querer participar do jogo eleitoral, e isso não poderia acontecer. A República foi uma grande esperança para o movimento negro, com tentativa de organização de partidos negros, mas houve um grande engodo, pois foi restringida a sua participação política.
Flávio Gomes, historiador, chama isso de cidadania de segunda classe. E ela segue até hoje. Há uma sub-representação da população negra na política, o que passa também pela negação do racismo. No Brasil, o que vingou foi uma ideia de democracia o mais conservadora possível. Havia o liberalismo social, da Inglaterra, e nós herdamos o liberalismo spenceriano, do darwinismo social, que é realmente implantar a lei do mais forte em uma sociedade racializada.
As esperanças na República, logo um ano depois da Abolição, caíram por terra, e os direitos da população egressa da escravidão e seus descendentes continuaram sub-representados, em uma estrutura social que ainda era escravista. Um fato interessante da República é que no fim da década de 1880 se aventava no Parlamento uma indenização aos egressos da escravidão, que foi sufocada com a campanha maciça dos republicanos contra a família imperial. E o tema nunca mais voltou a ser pauta, algo esperado, vindo da elite agrária que eram os representantes republicanos até a República Velha e que, de certa forma, continuam entre aqueles com maior poder político