Tradução de Molière feita por Jorge Coli durante a pandemia recebe menção especial em prêmio da Embaixada da França
A tradução é uma tarefa árdua. Transportar e adaptar um texto de uma língua para outra é um trabalho cheio de percalços e acidentes. E, quando se trata de um texto literário consagrado, ela se torna ainda mais desafiadora. Mas, para Jorge Coli, professor de História da Arte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, este desafio se transformou em prazer. Só este ano, ele lançou quatro traduções do francês, todas pela Editora Unesp. Duas delas são de obras clássicas: Os deuses têm sede, de Anatole France, e um volume com três peças de Molière, O Tartufo; Dom Juan e O doente imaginário pela qual Coli recebeu menção especial no Prêmio de Tradução da Embaixada da França no Brasil. A terceira foi o livro O cavaleiro, a mulher e o padre, do historiador Georges Duby. A mais recente é do também de um historiador, Michel Vovelle, autor de Combates pela revolução francesa.
Embora traduza de forma esporádica há mais de trinta anos, Coli só começou a se dedicar a essa atividade com constância durante a pandemia: “Para evitar cair numa melancolia mais profunda, eu entrei em contato com a Unesp, que me propôs algumas traduções”, diz. Em conversa com o Jornal da Unicamp, o historiador comenta sobre as dificuldades que enfrentou para traduzir obras como Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, e conta quais títulos ainda gostaria de verter para o português, sempre ressaltando a alegria extraída desse trabalho. “Muitas vezes traduzi pelo prazer de traduzir. Acho que a tradução tem algo das palavras cruzadas, porque é preciso quebrar a cabeça para encontrar a palavra exata que se encaixa no lugar certo”, resume.
Jornal da Unicamp: Como o senhor apresentaria a tradução para alguém que não é familiarizado com a área?
Jorge Coli: Eu não tenho nenhuma formação profissional na área da tradução e nunca me preocupei com as suas teorias. Sempre acreditei que existe um princípio de familiaridade com o texto que você está traduzindo; não se pode tomá-lo como se fosse um texto qualquer. É preciso um contato íntimo com ele para entrar no estilo do autor, e é o que eu tento fazer: entrar no espírito do autor, ser o mais fiel possível, encontrar as melhores equivalências e sobretudo respeitar o texto original. Essas são, para mim, observações de bom senso que devem guiar a boa tradução. Outra coisa que me parece importante é ter sempre a consciência de que, quando você traduz um texto, traduz não só para outra língua, mas também para uma outra cultura. Quem escreveu muito bem sobre isso foi Borges em um ensaio sobre as traduções das Mil e uma noites. Um dos prazeres da leitura é ler várias traduções do mesmo texto e chegar, a partir de vários caminhos, a uma espécie de texto original, a um “supratexto” constituído mentalmente. Esse aspecto da relatividade das traduções ocorre também na leitura, porque o leitor é um tradutor. Quando eu leio um livro em certa idade e o leio novamente dez ou vinte anos depois, percebo que o livro se modifica, porque minha percepção, minha leitura e minha tradução dele para meu espírito se modificaram. Há uma dimensão relativa da tradução em torno de um polo central, que é o texto de origem; mas esse nunca é inteiramente o texto de origem, porque ele está sempre se alterando, seja pela leitura, seja pela tradução. E isso funciona em todas as experiências da cultura, com filmes, quadros, músicas, que se modificam à medida que nós os recebemos.
Jornal da Unicamp: Na sua avaliação, o mercado da tradução valoriza o profissional da área?
Jorge Coli: Eu não tenho muito contato com o mercado da tradução. Como disse, não sou um tradutor profissional. Faço pelo prazer de traduzir, embora as editoras me paguem pelas traduções. Então, não sei muito bem. Agora, um dos aspectos que me chama a atenção nas traduções, em particular no Brasil, é que uma boa parte delas é muito ruim. Os tradutores muitas vezes não estão inteirados do assunto que estão traduzindo e cometem erros sérios, caricaturais. Quando há dificuldades, os tradutores não raramente pulam ou dão um “jeitinho” que não é o de buscar o sentido mais profundo ou a melhor solução para o que estão traduzindo.
Jornal da Unicamp: Como o senhor começou a se dedicar à tradução?
Jorge Coli: A primeira obra que traduzi foi Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, vertida para o francês junto com Antoine Steel, para a editora Gallimard em 1988. Eu gosto muito de traduzir. Muitas vezes traduzi pelo prazer de traduzir. Acho que a tradução tem algo das palavras cruzadas, porque é preciso quebrar a cabeça para encontrar a palavra exata que se encaixa no lugar certo. Algumas coisas traduzi porque quis; outras, traduzi para editoras. É o que estou fazendo agora para a editora da Unesp. Eu proponho textos para tradução e até agora eles têm aceitado, o que me dá uma alegria enorme. Senti necessidade de começar a traduzir de maneira mais constante durante a pandemia, já que tínhamos de ficar em casa, e para evitar cair numa melancolia mais profunda, eu entrei em contato com a Unesp, que me propôs algumas traduções. Assim, continuo fazendo essas traduções no meu tempo livre e de uma maneira que funciona como uma diversão, um prazer.
Jornal da Unicamp: Com qual das suas duas traduções recentes de obras literárias o senhor sentiu mais afinidade?
Jorge Coli: Com as duas tive uma experiência muito interessante, mas o Molière me agradou mais. Justamente porque o Dom Juan, que faz parte das três peças que foram publicadas no mesmo livro, eu já havia traduzido há algum tempo para uma montagem. Era preciso, portanto, levar em consideração o texto original, mas sem desconsiderar o fato de que seria representado para espectadores que não eram especialistas do século XVII. Era necessário criar algo que não fosse contemporâneo e ao mesmo tempo que fosse acessível ao espectador atual. Foi um prazer encontrar um texto fluente, sem dificuldades para os intérpretes, e que ainda assim guardasse algo que evocava a ideia do passado.
Jornal da Unicamp: Qual foi a tradução mais satisfatória e qual foi a mais desafiadora que o senhor já fez?
Jorge Coli: Prazerosas foram todas. Uma bem difícil foi Os sertões, de Euclides da Cunha, que traduzi para o francês em colaboração com Antoine Seel, um amigo francês que domina o português. Como foi feito a quatro mãos, o trabalho correu mais facilmente. Mas a mais difícil e complexa para mim foi o romance de Victor Hugo Os trabalhadores do mar, um grande livro que espero seja editado em breve. Na época, já havia uma tradução do século XIX dele para o português, feita por ninguém mais e ninguém menos do que Machado de Assis. E eu teria de enfrentar a tradução dele.
Jornal da Unicamp: Como definir se essa nova tradução do romance era necessária?
Jorge Coli: Machado traduziu o romance ainda jovem e o fez para ganhar dinheiro, publicando-a em folhetins. Já que ele não a fez com cuidado, encontram-se problemas na tradução: equívocos, falsos cognatos etc. A principal dificuldade do livro está na abundância de um vocabulário técnico e arcaico que Hugo utiliza para descrever os navios e os veleiros. Essas passagens cheias de descrições técnicas eram simplesmente puladas e excluídas por Machado. Mas isso, claro, não é motivo para condená-lo. Era um modo de proceder muito comum no século XIX. As traduções eram adaptações, e os tradutores não tinham nenhum escrúpulo de se manterem absolutamente fiéis aos originais, eles traduziam com muita pressa e simplicidade. Há, também, um terceiro motivo que me levou a fazer uma nova tradução dessa obra: embora Machado fosse jovem quando fez a tradução, ele já era o escritor Machado de Assis, já tinha estilo próprio, muito diferente de Victor Hugo. Ainda que eu pense que a tradução de Machado deva ser lida por todos, por ser muito interessante e de grande qualidade, eu vi a necessidade de uma nova tradução executada por um tradutor que não tivesse a forte personalidade de um grande escritor e que fosse mais submisso às inflexões estilísticas do original.
Jornal da Unicamp: Há outras obras e autores que deseja traduzir no futuro? Qual é o livro que já foi traduzido e você gostaria de ter feito?
Jorge Coli: Há diversas obras que tenho desejo de traduzir. Mas como são menos conhecidas, não sei até que ponto os editores se interessariam por elas. Há, por exemplo, alguns romances dos irmãos Goncourt que ainda não foram traduzidos. Há também o livro Nélida, escrito por Daniel Stern, pseudônimo da condessa de D’Agoult. E, por fim, uma peça de Lord Byron chamada Sardanapalo.
Jornal da Unicamp: Há, para o senhor, algum profissional que o inspire em seu trabalho?
Jorge Coli: A primeira coisa que me veio à cabeça, com essa pergunta, foi a tradução dos contos de Edgar Allan Poe por Baudelaire, uma tradução clássica. Também gosto muito das traduções feitas por Manuel Bandeira, por exemplo as de Shakespeare. Elas são fiéis, belas e mantêm o tom poético. Gosto muito dessas traduções.
Jornal da Unicamp: Além do francês, o senhor traduz obras de quais outros idiomas? Pretende passar a traduzir em outra língua?
Jorge Coli: Já traduzi do italiano (uma tradução do Pinóquio que está para sair), e também do inglês. Agora, quero ver se consigo traduzir o Byron.
Jornal da Unicamp: O senhor traduziu duas obras sobre Dom Juan, de Molière. Qual a importância do dramaturgo francês numa época tão distante da vivida por ele?
Jorge Coli: Molière fez uma análise dos tipos humanos universais que atravessaram o tempo, e os colocou em cena para ridicularizá-los. A percepção deles enriquece de maneira extraordinária nossa visão de mundo. No caso do Tartufo, por exemplo, trata-se do religioso hipócrita, figura de grande atualidade. Já em relação ao Doente Imaginário, trata-se da crítica ao hipocondríaco, à medicina e aos médicos do tempo de Molière. Cabe ao leitor atual entender que a medicina avançou e já não se compara à do tempo do autor. Entretanto, a crítica em relação ao comportamento imoral de alguns médicos ainda é pertinente nos dias de hoje. Dom Juan é uma peça de interesse enorme, talvez a mais complexa de Molière. De um lado é apresentado o predador sexual; do outro, o libertino do século XVII - sujeito que quebrava as convenções sociais. Outra questão que a obra levanta é referente ao feminismo. O espanto do público foi tanto que fui questionado se aquilo se tratava mesmo do Molière ou se fui eu que tinha introduzido o tema à obra. Como todos os grandes clássicos, são obras que nos dão uma melhor compreensão do mundo e do nosso semelhante. A cultura é a maior forma de acesso a esse entendimento, inclusive a literatura. Estou convencido de que essas formas são tão importantes quanto às reflexões teóricas.
Ouça o Repórter Unicamp, com entrevista sobre a obra de Molière com Alexandre Soares Carneiro, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).
Jornal da Unicamp: Por fim, quais conselhos daria a um (a) tradutor (a) iniciante?
Jorge Coli: É importante conhecer bem as duas línguas, a de partida e a de chegada. É preciso entrar no espírito do autor. Sem trair o original, é possível transportar o estilo de maneira mais fluente. Ademais, é preciso ter cuidado e atenção, verificar absolutamente tudo, acautelar-se de equívocos. Existem muitas traduções que são ruins porque o tradutor não tem familiaridade com o assunto. Por exemplo, se eu fosse traduzir um romance sobre a Fórmula 1, seria necessário me informar muito antes de começar o trabalho. Ademais, para ser um bom tradutor, é preciso ler muito nas línguas do seu interesse, ler bons autores, observar o uso das palavras. É uma questão de prática e também de encontrar prazer na atividade.
Esta entrevista foi elaborada por alunos do curso de Estudos Literários, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), sob a supervisão da professora Daniela Birman.