Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp aposta na interdisciplinaridade tanto em pesquisas, quanto no ensino oferecido na graduação
Quais são os passos que levam à inovação? Seja qual for o caminho escolhido, o desenvolvimento de soluções que atendam aos desafios do mundo contemporâneo passa pelo diálogo entre diferentes áreas do conhecimento. Esta é uma questão colocada a todas as engenharias, em especial à Engenharia Mecânica. A área é responsável pela criação de maquinários e sistemas que são base para o desenvolvimento de uma série de pesquisas, tecnologias e produtos e, para isso, depende da sinergia entre técnicas e competências. Para que isso ocorra desde a formação dos estudantes, a Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp aposta na interdisciplinaridade tanto em pesquisas, quanto no ensino oferecido na graduação.
“Alguns campos de pesquisa são claramente interdisciplinares, como é o caso dos estudos em materiais. Há pesquisadores que trabalham com o desenvolvimento e verificação das propriedades de materiais utilizados pela medicina e pela odontologia, por exemplo”, destaca Arnaldo Walter, diretor da faculdade. Segundo ele, a troca de conhecimentos vai além dos aspectos tecnológicos, fazendo com que os engenheiros mecânicos dialoguem com grandes temas contemporâneos. “Há também pesquisadores da área de sistemas energéticos que trabalham com tópicos como a poluição atmosférica.”
Dados os desafios de pesquisa, o olhar ampliado é uma necessidade, conforme explica Arnaldo. Eles vêm tanto do setor produtivo, que almeja novas tecnologias e produtos, quanto pelos próprios estudantes, que chegam à universidade com novas perspectivas. “Em relação a outras universidades do mundo, a Unicamp é relativamente nova. Novos temas e demandas surgem de forma rápida, há um desafio da sociedade moderna de se adequar a essas necessidades. Isso não apenas nas pesquisas, mas também no ensino. A universidade deve acompanhar esse movimento”, pontua.
Nesta edição da série “Isso é Unicamp”, o Jornal da Unicamp destaca duas áreas de pesquisas da FEM que exemplificam o potencial da Engenharia Mecânica para desenvolver tecnologias em diferentes ambientes, contextos e aplicações: a aeronáutica e a infraestrutura para exploração de petróleo.
O céu é o limite
O aperfeiçoamento das tecnologias aeroespaciais é uma grande demanda da atualidade. Elas contemplam desde comunicações via satélite, passando pela busca de maior eficiência dos transportes aéreos, até o novo período de exploração espacial impulsionado por empresas privadas, como a SpaceX, de Elon Musk. Mirando esse cenário, o Laboratório de Ciências Aeronáuticas da FEM se ocupa, principalmente, de compreender como as aeronaves interagem com o ar, de forma a aperfeiçoar sua aerodinâmica, reduzir seus ruídos e melhorar seu desempenho em situações de turbulência. Para isso, encontram nas simulações numéricas um recurso importante para análises e experimentos.
“Nossas simulações numéricas têm tanta acurácia que podemos confiar nelas completamente, a ponto de usarmos os resultados para calibrarmos os equipamentos usados nos experimentos físicos”, destaca William Wolf, professor da FEM e coordenador do laboratório. Os estudos que utilizam as simulações dedicam-se ao chamado ‘controle de escoamento’. Por elas, os pesquisadores avaliam como o ar escoa por diferentes partes das aeronaves, como as asas, a fuselagem e as turbinas. Em grande parte das vezes, esse escoamento de ar está sujeito a variações de temperatura, densidade e direção dos ventos, o que o torna turbulento. São essas condições, as turbulências, que intrigam os pesquisadores.
Nesses casos, o papel da Engenharia Mecânica é observar as turbulências e projetar aeronaves e veículos que sejam mais eficientes nessas situações. Isso porque, ao contrário do senso comum, os aviões estão em turbulência durante todo o voo. “Quando os aviões passam pelo que se conhece comumente como turbulência, há um grande estado de agitação no ar ao seu redor e, por isso, a aeronave também se agita. Existem turbilhões, como se fossem pequenos furacões de vários tamanhos, ao redor do avião. Às vezes, ocorre de o avião passar por algum desses vórtices maiores, do tamanho do próprio avião, o que provoca a agitação”, detalha Wolf.
Entre os conhecimentos aplicados nessas diferentes situações, estão desde os princípios da aerodinâmica e resistência de materiais até conceitos específicos, como é o caso de veículos aeroespaciais. “Para entrar novamente na atmosfera, as cápsulas espaciais enfrentam uma velocidade que é dezenas de vezes maior que a velocidade do som. As temperaturas que essas cápsulas enfrentam são da ordem de 10 mil graus celsius, muito maior que a superfície do sol. Para que ela não derreta e ocorra uma tragédia, há todo um projeto de engenharia para entender como ocorre o escoamento do ar na reentrada dessas cápsulas”, exemplifica o professor. De acordo com ele, esse tipo de pesquisa exige também a análise das transformações químicas que podem acontecer por conta das diferenças de temperatura e pressão.
Quanto menos barulho, melhor
A busca por maior eficiência de veículos aéreos não se restringe ao tempo de deslocamento ou ao menor consumo de energia. A redução no barulho das aeronaves é um aperfeiçoamento visado pelas grandes empresas aeroespaciais. Para isso, estudos analisam o quanto o escoamento produz ruídos e de que forma o controle desses processos pode reduzi-los. Nas aeronaves, o escoamento em diversos componentes pode gerar ruídos, mas a pesquisa de Túlio Ricciardi, doutor em Engenharia Mecânica pela Unicamp, teve foco em um elemento pouco convencionais: os trens de pouso. “O ruído das aeronaves é estudado desde os anos 1960, mas o foco sempre esteve na propulsão, no motor em si. Foi surpreendente para mim, nunca imaginei que o trem de pouso fosse uma fonte de ruído tão grande. Quando olhamos para todo o avião, o trem de pouso é um componente pequeno, mas gera um ruído bem significativo”, explica Ricciardi. Segundo o pesquisador, isso ocorre porque ele é uma estrutura com pouca aerodinâmica: “O trem de pouso atrapalha bastante o escoamento de ar, o que gera ruído por si só. Quando há uma estrutura mais suave, a interação com o ar é facilitada.” A pesquisa teve apoio da Boeing e foi uma das contempladas pelo Prêmio Capes de Teses 2022. Hoje, Ricciardi é pesquisador na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
Para analisar quais partes dos trens de pouso geram mais ruído, Túlio realizou uma simulação que levou mais de seis meses para ser concluída. A partir dela, foi possível identificar as direções do barulho. “O ruído que vai para baixo, em direção ao solo, é o que realmente nos interessa e precisaria ser diminuído”, comenta.
Mesmo que não sejam possíveis grandes alterações no formato dos trens de pouso, por serem itens de segurança dos aviões, a pesquisa abre espaço para aperfeiçoamentos importantes na indústria. “Alguns aeroportos fecham à noite justamente por causa do ruído. Se as aeronaves gerarem menos ruído, é possível aumentar o número de voos à noite sem gerar incômodo às pessoas”, pontua.
A preocupação com os ruídos aeroacústicos não fica restrita aos projetos de aeronaves. O estudo do escoamento também é aplicado na indústria automobilística. Depois de concluir o mestrado em Engenharia Mecânica, Maurício Massarotti teve a oportunidade de aplicar seu conhecimento nos carros produzidos pela sueca Volvo, com o mesmo objetivo de reduzir o barulho gerado pelo escoamento de ar, mas em veículos elétricos.
“Hoje um veículo elétrico emite ruídos da rodagem no asfalto e aeroacústicos. Por isso, a indústria precisa de profissionais nessa área. As montadoras têm esse desafio pela frente, é um campo em progressão”, comenta Massarotti. Em sua pesquisa, o engenheiro desenvolveu um tipo de componente que gera menos ruídos, o que amplia o conforto dos usuários. “Consegui implementar no spoiler traseiro dos veículos uma solução desenvolvida em meu mestrado. Essa foi apenas uma das aplicações do conhecimento gerado em todos esses anos, mas é exatamente o que trabalhei na pesquisa. É uma solução do que há de mais novo na tecnologia automotiva, que ainda não foi lançada, e que foi desenvolvida na Unicamp.”
Depois de levar a inovação para a Volvo, na Suécia, Massarotti está de mudança para a Inglaterra. Ele foi contratado pela montadora Bentley como líder técnico em aeroacústica. Todas as conquistas tiveram como base a aprendizagem construída na Unicamp. “Aqui na Europa a maior parte dos engenheiros têm mestrado. Mas o tipo de conhecimento gerado é o que nos diferencia. Eu pude aplicar um conhecimento teórico e isso fez com que eu me destacasse. Tudo foi construído com base na minha paixão pela aplicação da ciência na indústria”, celebra.
Mergulho profundo
A necessidade de promover o diálogo entre diferentes áreas do conhecimento também é aplicada em pesquisas cujo ambiente é o fundo do mar. “Nas últimas décadas, o conhecimento se especializou muito, se tornou mais profundo. Isso acaba prejudicando a criação de soluções integradas, que envolvem criatividade. Por isso, hoje sentimos a necessidade de unirmos conhecimentos de diferentes disciplinas”, analisa Celso Morooka, docente da FEM que se dedica a estudos de Engenharia Mecânica aplicados à infraestrutura de exploração de petróleo.
Morooka explica que a contribuição da engenharia para a área ocorre em duas vertentes principais: o aprimoramento da exploração de petróleo e o desenvolvimento de equipamentos e sistemas capazes de resistir às intempéries do oceano. “Não é algo trivial, porque é preciso enfrentar uma profundidade de cerca de 2,5 mil metros e energizar o óleo de forma que ele chegue à superfície. Há vários mecanismos para fazer isso, o que também envolve muitos saberes e tecnologias”, pontua.
Os projetos de engenharia desenvolvidos na área devem considerar variações como ondas, correntes marítimas que se movimentam em várias direções, diferenças de temperatura e pressão em diferentes profundidades, além de condições que afetam as plataformas que estão na superfície. “Ou seja, não é só pensar na hidrodinâmica, mas também na aerodinâmica.”
Outro aspecto que interfere nos projetos são as propriedades do fundo do mar, que não é totalmente sólido, nem completamente fluido. As instalações precisam percorrer essa camada para então chegar nas rochas, de onde o petróleo é extraído. São condições complexas em que as simulações numéricas auxiliam a projetar as estruturas de sustentação das plataformas.
Para isso, utilizam a chamada otimização topológica. A técnica consiste em, por meio de algoritmos, traçar a estrutura ideal para sustentar as plataformas e possibilitar a exploração de petróleo, dentro de um contexto em que as variáveis do ambiente estão envolvidas e mantendo a máxima rigidez possível. “Nesses cálculos, entram fatores como a sustentabilidade, o impacto ambiental e o custo econômico. Tudo isso está envolvido na hora de projetar uma estrutura que se adapte a esses critérios”, explica Renato Pavanelo, professor da FEM que trabalha em parceria com Morooka nas pesquisas da área.
Para onde vamos?
Hoje as pesquisas envolvidas com a infraestrutura de exploração de petróleo lidam com desafios internos e externos à cadeia produtiva. Um deles é aplicar os conceitos já utilizados para viabilizar a digitalização dos processos e aplicar recursos de inteligência artificial. “Uma grande questão é como coletar os dados por sensores. Estamos falando de 2 mil metros de profundidade, além da profundidade do subsolo, e é comum precisarmos de informações de pressão e temperatura lá de baixo. Com base nessas informações, os sistemas inteligentes podem tomar decisões”, comenta Morooka.
Outro desafio é trabalhar no contexto da transição energética. Seja por fatores ambientais, ou ainda por episódios como o conflito entre Rússia e Ucrânia, que elevaram o preço do barril de petróleo no mercado internacional, os pesquisadores se deparam com a necessidade de adaptar tecnologias e estruturas que, no futuro, serão exploradas de outra forma.
Morooka pondera que a sociedade não prescindirá do petróleo de forma abrupta ou em pouco tempo, mas que existem oportunidades que já podem ser aproveitadas. Ele cita o exemplo da utilização de estruturas construídas em alto mar para a produção de energia também de outras fontes, como solar e eólica. “Por exemplo, hoje, parte da energia necessária para os processos que ocorrem nas plataformas vem da queima de gás natural. Uma possibilidade seria instalarmos parques eólicos flutuantes, aproveitando a estrutura das plataformas, e placas de energia solar também, para gerar energia elétrica para as plataformas e direcionar o gás natural para outras finalidades em terra”, propõe o pesquisador.