Após 30 anos do massacre do Carandiru, evento na Unicamp vai reunir pesquisadores e sobreviventes do cárcere
Um dos massacres mais letais da história do Brasil ocorreu no dia 2 de outubro de 1992, quando 111 pessoas foram assassinadas na penitenciária do Carandiru, em São Paulo. Mas esse não foi um fato isolado e tampouco se restringe às penitenciárias. Só em 2021, forças policiais foram responsáveis por 46 chacinas em comunidades da região metropolitana do Rio de Janeiro. A fim de discutir a persistência dessas ações violentas no país, no dia 28 de setembro ocorre na Unicamp o evento Massacres e(m) Democracias: 30 anos do massacre do Carandiru, com a participação de pesquisadores e sobreviventes do cárcere.
Para a antropóloga Juliana Farias, uma das palestrantes do evento, as chacinas refletem a criminalização da população negra e pobre do país. “Existe no Brasil uma lógica bélica de cálculo e de construção da figura de um inimigo que vem desde o período colonial e se atualiza no dia de hoje. As populações indígenas e negras sofrem de uma maneira que a população branca brasileira desconhece. Isso é muito marcado em posições que são institucionais e de Estado”, explica.
A pesquisadora desenvolve há 20 anos estudos sobre a violência de Estado no Rio de Janeiro. Para ela, tanto as chacinas como o encarceramento em massa são formas de eliminação de pessoas consideradas inimigas pelo Estado. “É um cálculo de eliminação que acontece por meio de execuções sumárias e do encarceramento. Essas populações que foram construídas como sendo perigosas, historicamente, são as que mais sofrem com a violência de Estado.”
Desde 2004, Farias, que é pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp, tem se dedicado a acompanhar a luta por justiça em relação às chacinas. Protagonizada por mulheres, principalmente mães de vítimas, essa busca por responsabilização é marcada por assimetrias. No Rio de Janeiro, 98% dos casos de morte ocorridos em operações policiais são arquivados.
“Quando a gente fala desses movimentos, é uma minoria que tem coragem de seguir, porque há perseguição. São pessoas que recebem intimidações na porta de casa e ameaças contra a vida. Falamos de um cenário de luta que é muito assimétrico e que dá provas também de que são atuações marcadas por um racismo institucional muito forte, mesmo na percepção dos operadores do direito e dos profissionais que atuam julgando e produzindo o que deveria ser a justiça”, afirma.
As dificuldades na busca por justiça são ilustradas também pelo caso do Carandiru, cujos desdobramentos legais persistem ainda hoje. Além da anulação da condenação dos policiais pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, posteriormente restabelecida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Barroso, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou no dia 2 de agosto um projeto que anistia os policiais militares condenados por sua atuação no massacre.
“Auto de resistência” ou execução sumária?
Como exemplo das assimetrias existentes nos processos envolvendo as chacinas, a antropóloga lembra que o primeiro a ser ouvido, quando da apuração do caso, é o responsável pela morte. “No registro das ocorrências, o primeiro a falar é o policial, explicando o que aconteceu. Então a família já começa tendo que provar outra versão”, explica. Falta de preservação da cena do crime e da arma utilizada dificultam a coleta de provas.
Em muitos casos, as mortes são justificadas por esses agentes como “auto de resistência”. Apesar de essa figura jurídica não existir, é comum que ela seja utilizada enquanto uma justificativa para mortes em casos de suposta legítima defesa. Porém, conforme a pesquisa Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais no Rio de Janeiro (2001-2011), coordenada pelo professor Michel Misse, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), há fortes indícios de execuções sumárias em registros de “auto de resistência”. Misse diz ainda que, muitas vezes, policiais alegam terem prestado socorro para que a cena do homicídio não precise ser preservada; no momento da prestação de socorro, porém, corpos já estão sendo levados para longe do local do ocorrido.
“Esse é um registro criado pela ditadura militar no Brasil. Quando isso se deu pela primeira vez, foi para justificar uma morte que aconteceu durante uma operação policial. Depois, isso foi se tornando uma prática sistemática, uma burocracia padrão. Órgãos de defesa dos direitos humanos passaram a estudar a prática e entendem a necessidade de um exame mais minucioso desse tipo de situação”, explica Farias.
Por isso, uma das estratégias das famílias é lutar para que haja perícia independente. Pelas marcas no corpo, é possível saber como foi efetuado o disparo e reconstituir os fatos. “Os corpos trazem evidências pelo tipo de lesão. Há marcas nos corpos das vítimas que provam, por exemplo, que foi uma execução sumária. Se a pessoa tem marca de tiros nos antebraços, como que ela estava atirando no policial? Outra situação que é muito comum são vítimas com tiro de fuzil na nuca, disparados de cima para baixo. Provavelmente essa pessoa estava de joelhos, rendida.”
Um dos casos mais emblemáticos da utilização ilegítima do “auto de resistência” ocorreu em 1996. Maicon de Souza Silva, de 2 anos, foi morto em Acari, no Rio de Janeiro. O registro da morte foi de “auto de resistência” e não houve apuração sobre o crime na Justiça brasileira. O caso prescreveu e foi parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Múltiplas camadas de violência
Desde casos de morte a casos de constrangimento no cotidiano de moradores, são múltiplas as camadas de violência que Juliana Farias se dedica a acompanhar. Atualmente, ela também acompanha casos de violência de gênero em contextos militarizados. Em uma cartografia realizada com outras pesquisadoras e moradoras de comunidades, a antropóloga identificou situações de assédio que ocorrem durante abordagens policiais, além de invasões a casas que atingem de forma diferente as meninas e mulheres, cuja privacidade é violada constantemente.
Os relatos mais comuns são de assédio por parte de agentes. “Nós, que somos mulheres, até antecipamos situações de assédio, treinamos algumas reações de resposta, ficamos mais atentas dependendo do lugar ou se está escuro. Vamos criando estratégias. Mas quem não mora na favela não precisa se preparar para um tipo de abordagem como essa, que está sendo realizada por um homem fardado e armado, muitas vezes com um fuzil.”
As abordagens, ainda, variam conforme vai sendo identificada, pelos policiais, a orientação sexual dos envolvidos. “Nesses contextos militarizados, as pessoas que têm determinados marcadores de gênero, de sexualidade, de raça vão sofrer violências diferenciadas. Se numa abordagem, por exemplo, os policiais identificam que há homens gays, esses jovens muitas vezes são obrigados a fazerem sexo oral nos próprios agentes, coisa que não acontece se for outro tipo de jovem que é identificado como heterossexual”, exemplifica.
Esses atos de violência, conforme a pesquisadora, não costumam se transformar em denúncias, mas não devem ser menosprezados. “São camadas e camadas de violência. E essas não fazem parte de um relatório de denúncias sobre violação de direitos humanos porque ninguém morreu. Mas não tem como hierarquizar os atos de violência. São processos complexos que têm relação com gênero, raça, território e violência do Estado.”
A mobilização por justiça, afirma Farias, é fundamental para que os casos não sejam arquivados. “Os casos que caminham mais na Justiça são aqueles que as famílias e o movimento social estão acompanhando, fazendo atos nos dias de audiência e julgamentos, nas portas dos fóruns, na porta do Ministério Público. Existe uma interpretação muito correta por parte desses movimentos de que cada instância do Estado é responsável por essa política de morte, que acontece não só devido ao policial que está na ponta.”
Evento reúne sobreviventes do Carandiru e pesquisadores
As diversas perspectivas de análise da violência de Estado e de mobilização por justiça são abordadas no evento Massacres e(m) Democracias: 30 anos do massacre do Carandiru. “O massacre do Carandiru é muito representativo do tipo de violência que o Estado brasileiro é capaz de produzir. Esse caso está completando 30 anos e tem respostas incompletas. A gente espera que venham, mas tudo o que foi mostrado pelo Estado até agora vai no caminho inverso. A condenação do coronel Ubiratan [Guimarães, comandante da invasão que resultou nas 111 mortes] foi anulada. É o Estado autorizando esse tipo de violência”, avalia Farias.
Todas as mesas de debate contam com a participação de sobreviventes do Carandiru e do cárcere, que também farão rodas de conversa na Biblioteca Beth Lobo, no prédio do Pagu. Para a antropóloga, esse será um importante momento para fortalecer parcerias com os movimentos que protagonizam a luta por justiça. “A gente ainda precisa falar que o Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo, que existe uma autorização para matar institucionalizada. Quem protagoniza a luta por justiça está do lado de fora da universidade, e a universidade pode apoiar a luta de uma maneira muito efetiva, entendendo esse lugar, que é um lugar de apoio, de parceria e de troca.”
Confira a programação completa do evento em: Massacres e(m) Democracias: 30 anos do massacre do Carandiru (unicamp.br)