Pesquisa do Programa Artes da Cena do Instituto de Artes da Unicamp analisa diferentes abordagens sobre abusos contra mulheres no teatro
Enquanto ninguém vê: encarando a violência de gênero através do olhar de quatro dramaturgas é o título da pesquisa de mestrado de Sofia Fransolin Pires de Almeida, defendida em 2021 no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Unicamp (IA). No trabalho, a autora, que também é dramaturga, atriz e diretora teatral, analisa quatro peças escritas por mulheres, buscando identificar como se dá a violência nas relações entre homem e mulher e contra mulheres trans e negras. “São pontos de vista que se complementam, se alimentam e coexistem e nos quais as dramaturgas elaboram a violência de gênero, a partir do que eu chamei de gatilhos temáticos”, escreveu Almeida. “Foi através desses quatro marcadores que estruturei minha dissertação, numa busca por ampliar o debate sobre o tema, que ainda é, comumente, encarado com sinônimo de violência doméstica ou ‘crime passional’”, escreveu. Ela aponta que a violência de gênero é uma ferramenta institucionalizada pelo sistema sob o qual vivemos, que perpetua o poder de alguns sobre muitos através do controle de corpos. O estudo foi um dos trabalhos vencedores da 2ª edição do Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog, na categoria Artes, Comunicação e Linguagem.
A primeira peça que é objeto da análise de Almeida é 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma, da dramaturga paulistana Michelle Ferreira. Na obra, Ferreira conta a história de quatro pessoas que se conhecem e decidem viajar para uma casa em um local isolado. Ela não identifica o gênero das personagens, gerando tensão e curiosidade nos leitores. “4 da espécie é uma comédia-dramática anárquica e violenta, que escancara através das quatro paredes de um chalé como a estrutura patriarcal e capitalista não apenas sustenta a violência de gênero, como também se utiliza da mesma como ferramenta primordial para se perpetuar”, afirma Almeida.
Já em As 3 Uiaras de SP City, de Ave Terrena Alves, autora que se identifica como transvestigênere, a discussão gira em torno à violência contra corpos trans, especialmente no período de redemocratização política, que ocorreu no Brasil nas últimas décadas do século XX. “Entre as décadas de 1980 e 1990, após o fim da Ditadura Militar, a cidade de São Paulo viveu um momento de caça intensa a travestis, transexuais e prostitutas (trans e cisgêneras). Tendo como respaldo legal a lei anti-vadiagem, abaixo-assinados realizados pela ‘população de bem’ que pediam pela ‘limpeza’ do centro da cidade de São Paulo, e com a eclosão do vírus HIV-AIDS — que na época era envolto pelas ideias de libertinagem e práticas homossexuais, sendo inclusive apelidada de ‘peste gay’”, conta Almeida. Ao incluir esse grupo social em seu estudo, a pesquisadora reafirma a necessidade de se discutir a violência, muitas vezes invisível ou naturalizada, contra essas pessoas.
A partir da peça Vaga Carne, da atriz, diretora e dramaturga mineira Grace Passô, Almeida analisa a violência contra o corpo da mulher negra e o processo de subjetivação em um país colonial e racista. A temática aqui ganha outros contornos, mas a importância da discussão é a mesma, visto que toda a história do Brasil é construída por meio da exploração e escravização da população negra.
Por fim, Almeida discute uma peça que ela mesma escreveu, intitulada Enquanto ninguém vê, centrada no tema do abuso de meninas em contexto doméstico. “O exercício ético da pesquisa não pode estar desvencilhado da criação. A peça é um exercício prático de todo o conhecimento que fui agregando ao longo da pesquisa e do diálogo com as outras artistas”, diz. Desde que começou a escrever peças de teatro profissionalmente, ela já abordava de alguma forma a problemática da violência de gênero. “Vejo esse tema como um fantasma pessoal. É definitivamente um tema que sinto necessidade de abordar em minhas criações. O mestrado foi a forma que encontrei de olhar para ele a partir de outras perspectivas”, conta.
Esta reportagem foi elaborada por alunos do curso de Estudos Literários, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), sob a supervisão da professora Daniela Birman.