Falta de autonomia pode afastar os indivíduos das práticas esportivas, especialmente os iniciantes
É necessário valorizar a cultura e o papel do jogador durante a prática esportiva para estimular a criatividade do atleta e não limitar sua atuação ao simples cumprimento de regras do jogo. É o que defendem especialistas em pedagogia do esporte da Unicamp e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em artigo publicado em julho deste ano no periódico Movimento, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O trabalho, fruto de tese de doutorado desenvolvida no Laboratório de Pedagogia do Esporte (Lepe) da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, critica os modelos de ensino-aprendizagem com forte influência europeia normalmente utilizados por treinadores. Lucas Leonardo, da UFAM, autor do trabalho, e Alcides Scaglia, pesquisador do Lepe e orientador da pesquisa, exploram conceitos filosóficos do ato de “jogar” do ponto de vista ético e do “esportear” do ponto de vista moral.
“Esportear” é praticar o esporte com obediência cega às regras do jogo, em uma proposta que civiliza e racionaliza o jogo. Segundo Leonardo, é um entendimento da prática esportiva que universaliza e normatiza certos padrões. “Busca-se ‘encaixotar’ o jogo a partir de determinadas regras universais. No esportear, a atitude do jogador é obedecer a regra”, diz. Essa ideia impõe uma esfera moral individual e autossuficiente da prática, que exige do jogador a obediência à regra para participar da prática. “O jogador precisa se inserir nos limites que a regra propõe para jogar e, por isso, ocorre uma despersonalização de todos os jogadores”.
Já o "jogar" é visto pelos pesquisadores como um fenômeno maior, ligado a uma perspectiva ética do desejo do jogador pelo ato de fazer esporte, que antecede a vontade de jogar de forma moral – de acordo com as regras.
Para os cientistas, é necessário dar prioridade ao sentido de jogar em relação ao esportear, tendo em vista que o último se relaciona a sentimentos éticos gerados pela aceitação das regras no sentido de que elas tornam o jogo possível. “Na nossa perspectiva, que é latino-americana, brasileira e pautada na educação da rua e na pedagogia da rua, entendemos que há uma continuidade entre jogar e praticar esportes”, afirma Leonardo.
Scaglia comenta que a perspectiva do esportear impõe ao jogador uma adaptação por meio de sua atitude ao esporte, enquanto a primazia do “jogar” respeita a forma como o jogador joga, fazendo com que o jogo tenha de se adaptar ao jogador, e não o contrário. Ainda de acordo com o docente da FCA, a ideia de que há uma regra estabelecida que todos devem seguir, podendo haver punições para quem a contraria, muitas vezes impõe ao jovem jogador(a) uma ideia de que ele(a) não tem potencial para apreciar as atividades em torno do jogo. Quando se trata de iniciantes no esporte, isso pode afastar os indivíduos da prática esportiva. “O que estamos fazendo é expulsar essas crianças da prática esportiva, porque o desejo de jogar é violentado pelo dever e pela imposição de regras, por meio de uma ação de esportear. E assim, obviamente, o que irá acontecer é que esses jovens irão embora”, critica Scaglia.
As atitudes que contrariam a regra devem ser entendidas pelos treinadores a partir da perspectiva do jogador. “É preciso valorizar o atleta no processo da prática esportiva, e não apenas os ditames do professor e do treinador”, destaca Scaglia. “Como pedagogo, valorizo o confronto e a resistência do aluno durante a minha prática pedagógica antes de considerar isso uma atitude imoral e inadequada. Para mim, este é o caminho educacional”, complementa Leonardo.
Para os autores, a discussão dos conceitos “jogar” e “esportear” pode incentivar treinadores e pedagogos a criar propostas didáticas e metodológicas pautadas em um ambiente mais libertador e democrático para o jogador durante as práticas esportivas.
Esta reportagem foi publicada originalmente no portal da FCA.