Pioneira nos estudos sobre a velhice, a pesquisadora recebeu o título de professora emérita da Unicamp
Quando, em 1969, trocou o Brasil pela Europa, Guita Grin Debert sabia que sua vida iria mudar drasticamente, mas não suspeitava que a virada definitiva viria mesmo nas universidades brasileiras – mais especificamente na USP (Universidade de São Paulo) e na Unicamp.
Estudante de Ciências Sociais na USP, foi na França – e, depois, na Inglaterra – que Guita se envolveu definitivamente com a antropologia. No entanto, foi mesmo no Brasil que acabou definindo os temas com os quais iria trabalhar até transformar-se numa das mais importantes e influentes antropólogas do país. Pioneira no estudo das questões relativas à velhice, Guita é, hoje, uma estudiosa atenta aos efeitos da passagem do tempo na vida das pessoas.
Ela estava terminando o doutorado sobre discursos políticos na Inglaterra, em 1972, quando conheceu o professor e teórico político Ernesto Laclau e descobriu que a mulher dele – a cientista política Chantal Mouffe – estava trabalhando intensamente com questões de gênero. “E aquilo foi uma explosão pra mim”, confidenciou a professora, que no mês de novembro recebeu o título de professora emérita da Unicamp. “Eu não pensava a respeito do tema. E, de repente, percebi que poderia suscitar questões teóricas, metodológicas inclusive, que poderiam ser fundamentais para o fazer antropológico”, afirmou ela.
“Eu me vi encantada e achei que iria trazer para o Brasil uma grande novidade. Mas isso foi só uma ilusão. Quando eu cheguei aqui, essas coisas já estavam a mil por hora. Já tinha a Mariza Correa [professora da Unicamp], que estava pesquisando essa temática. Gênero e justiça eram os temas dela”, contou Guita. “A Heloisa Pontes e a Maria Filomena Gregori [ambas também da Unicamp] estavam pesquisando o SOS Mulher. Havia discussões em torno de clínicas de aborto, de michês. Havia Néstor Perlongher e seu livro famoso, O negócio do michê – A prostituição viril em São Paulo. Portanto, toda a questão de gênero já estava muito desenvolvida aqui”, revela.“Isso se faz hoje em antropologia urbana, mas na época era uma tremenda de uma novidade o que a Unicamp estava fazendo. E abrindo espaços para a gente fazer”, disse.
“Era um olhar antropológico para determinadas questões que ainda não eram objetos legitimados da pesquisa científica, e a Unicamp, com muita força, legitimou-os e, por fim, criou uma revolução nesses estudos”, avalia.
Para participar das discussões, Guita conta que começou a fazer pesquisa sobre mulheres velhas – uma área de estudos até então inexplorada no país. E as pesquisas em torno da velhice desencadeadas por ela se transformaram mais tarde em referência. E não apenas no Brasil.
Hoje, Guita desenvolve vigorosas pesquisas sobre a velhice dependente – aquele idoso que exige cuidados especiais de atendimento à saúde.
Maria Antonia
Guita ingressou no curso de Ciências Sociais da USP em 1968 – um dos períodos de maior repressão política da ditadura militar. Então, ainda muito jovem, passou a frequentar o Centro Universitário Maria Antonia – os edifícios históricos que abrigavam a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
A professora lembra que o ingresso na Universidade significou muito para sua geração – os baby boomers, aqueles nascidos logo após a Segunda Guerra Mundial. “Fazer ciências sociais naquele momento era pensar como fazer a revolução brasileira de uma forma mais adequada, como transformar o país em uma sociedade menos desigual”, diz ela. Paralelamente à luta por justiça social, havia ainda a revolução nos costumes.
No ano seguinte, em 1969, Guita foi embora para a França, de onde só voltaria quase três anos depois. Estudou semiologia na Sorbonne, mas estava interessada mesmo nos estudos de Roland Barthes – que, no final da década de 1950, havia lançado o livro Mitologias. “Aquele livro dele era o modelo daquilo que eu queria fazer um dia”, confessou.
Em 1973, voltou para São Paulo e foi aí que teve contato com as professoras e antropólogas Ruth Cardoso (1930-2008) e Eunice Durham (1932-2022). “Meu mestrado e doutorado são na área de ciência política. No mestrado, análise do discurso de governadores de Estado no chamado período populista e, no doutorado, a análise do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e da Escola Superior de Guerra no mesmo período (ESG)”, explicou ela. “O impacto que as ciências sociais provocaram foi fundamental para mim. Até um pouco em contraste com o que foi na França. A linguística que se fazia na França, muito especialmente na Sorbonne, era muito voltada para a fonologia e uma série de exercícios”, diz ela. No Brasil, diz Guita, muita gente já fazia iniciação científica, coisa que não se fazia na França. “Era uma graduação muito diferente”, afirma.
Pioneira
Quando estava perto de concluir o doutorado, veio a surpresa. Um pequeno artigo que escreveu sobre velhice, com base no depoimento de oito mulheres, chamou atenção pelo ineditismo do tema, até então inexplorado pela academia brasileira. “Para se ter uma ideia, participei de vários seminários por causa disso. Por causa do artigo, me convidaram para um congresso internacional. Foi muito curioso, porque passei décadas estudando populismo e nunca ninguém me convidou para um congresso internacional”, contou, rindo. “De repente, fui para o México, porque a [socióloga] Anne-Marie Guillemard – uma grande especialista sobre velhice na França – perguntou à Ruth Cardoso se ela conhecia alguém que estava trabalhando com velhice no Brasil. Eles queriam fazer uma reflexão sobre a velhice em várias partes do mundo”, relatou. Nesse seminário, Guita percebeu que precisava desenvolver com mais afinco a temática.
A professora conta que, em 1984, quando chegou à Unicamp, os temas da área de antropologia abordados ali já eram muito diferentes do que se viam nas outras universidades do país. Segundo Guita, antigamente, no Brasil, se trabalhava, basicamente, com temáticas abordando os indígenas, os camponeses, as pequenas comunidades ou os imigrantes. A Unicamp deu início, por exemplo, aos estudos sobre gênero. “Primeiro me convidaram para dar um curso sobre populismo e me encantei com a Unicamp. Aceitei logo que aventaram a possibilidade de eu ficar. E eu achei que seria um privilégio, mesmo tendo de enfrentar a estrada”, relembra ela, que morava em São Paulo.
Ela cita um outro fator foi crucial para que aceitasse o cargo de professora na Unicamp: o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu. “Esse foi um dos primeiros núcleos que, de uma certa forma, reuniu na universidade como um todo – nas diferentes faculdades e nos diferentes institutos – pessoas interessadas em trabalhar as questões de gênero e da mulher, trabalhar com essas duas áreas”, garante.
A professora lembra ainda que hoje o Pagu está sendo cada vez mais disputado pelos professores de pós-doutorado. “Está em processo de criação, na Unicamp, uma coisa inovadora no Brasil e no mundo, que é um centro que agrega pós-doutorados”, avalia a professora.
Perfil
Guita passou mais de 38 anos na Unicamp e, nessa trajetória, desempenhou uma multiplicidade de papéis profissionais, muitas vezes por conta do fato de ter conquistado precocemente espaços de trabalho e atuação profissional, e sempre, segundo diz, comandada por uma profunda curiosidade intelectual.
Em 2003, Guita Grin Debert foi reconhecida como professora titular na Unicamp, categoria pela qual se aposentou, em 2018.
Em 2000, recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro A reinvenção da velhice e, em 2002, foi contemplada com o prêmio acadêmico Zeferino Vaz, premiação essa que, segundo a comissão julgadora responsável, justificou-se devido ao comprometimento dela com a formação de alunos.
Em 2020, recebeu a Medalha Roquette Pinto de Contribuição à Antropologia Brasileira.
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