Inovação da obra de Louis Ferdinand Céline tensiona-se com posições fascistas do autor
Considerado o maior escritor francês ao lado de Marcel Proust, Louis-Ferdinand Céline inovou, na literatura, ao criar um estilo próprio. Nascido em 1894, o autor viveu as duas grandes guerras e, durante a ascensão do nazismo, expressou de forma contundente o antissemitismo e se alinhou a colaboracionistas franceses. Preso por traição à pátria, teve suas posições políticas relevadas por autores como Henry Miller e condenadas por intelectuais como Jean Paul Sartre. Mas o que há na obra de Céline que o faz ser considerado um gênio? É possível separá-la da vinculação a uma ideologia que foi responsável pela morte de seis milhões de judeus?
Para a professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp Suzi Sperber, “todas as abordagens em Céline ficam difíceis por conta disso, porque há a genialidade e a beleza e a ira manifestada por ele”. Dessa forma, “não dá pra fazer outra coisa a não ser reconhecer, por um lado, o racismo, e, por outro, a extraordinária genialidade.”
Da frustração ao antissemitismo
Sperber chama a atenção para o fato de a segunda obra de Céline não ter sido bem recebida pela crítica inicialmente, o que gerou uma frustração no autor. “Ele ficou com grande rancor por conta disso. Determinado crítico que o irritou era judeu, e ele passou então a escrever contra os judeus e, repetidamente, a propor o extermínio não dessa pessoa, mas de todos os judeus. Isso se chama [incentivar o] genocídio.”
O primeiro romance do autor, Viagem ao fim da noite (1932), centra-se na experiência da Primeira Guerra, na qual combateu até ser ferido logo em 1915. Depois, entre 1936 e 1941, ele escreveu um panfleto anticomunista e três panfletos antissemitas, com um estilo híbrido, diferente do que se conhece como panfleto atualmente. Os três últimos textos e a colaboração com os nazistas ocasionaram a prisão de Céline em 1946, depois de ele fugir da França com ajuda dos alemães. O autor foi condenado por traição à pátria, sendo designado, na pena, como uma “vergonha pública”.
Os panfletos antissemitas – Bagatelas por um Massacre, Escola de Cadáveres e Os Maus Lençóis – seriam reeditados em 2018 pela editora Gallimard, que suspendeu o projeto depois de críticas. Contrário à reedição, o presidente da França, Emmanuel Macron, destacou sua posição diante do crescimento do antissemitismo na Europa.
O valor literário
A genialidade literária de Céline, segundo a professora, tem a ver com inovações no estilo, dentre elas a musicalidade transposta para a linguagem escrita. Mas ela pondera que o reconhecimento da obra precisa sempre acompanhar a explicitação do racismo do autor, especialmente em um momento político de ascensão da extrema-direita.
Para a pesquisadora da obra de Céline e orientanda de Sperber, a doutoranda Amanda Marques, o autor criou um estilo inédito, que se transformou ao longo de sua produção. “Usualmente, achamos que Céline é um pessimista, um niilista, um cínico, mas na verdade existe uma natureza do Céline que tem a ver com a dança, com a música e com um lado mais nietzschiano que é muito bonito”, avalia.
Segundo Marques, Céline “faz uma pesquisa musical em literatura”. A musicalidade, analisa, está presente em seus escritos desde a sua tese em Medicina, de 1924 – uma biografia de Ignaz Philip, médico húngaro. “É uma tese em Medicina, mas ali ele já mobiliza uma série de elementos da dança e da música.”
Já o seu primeiro e mais consagrado romance, Viagem ao fim da noite, segundo o próprio autor, “é uma sinfonia emotiva”. Mas, em 1936, lembra a pesquisadora, ele dá continuidade à narrativa de Viagem, radicalizando seus achados estilísticos e escrevendo sua obra-prima Mort à crédit (Morte a crédito).
Em 1944, é publicado Guignol's Band (A banda de Guignol), romance que Marques traduziu e que estuda no doutorado. “É incrível a quantidade de aliterações e assonâncias que ele mobiliza para escrever a primeira seção do romance, que é o bombardeio de Orleans. É muito musical”, observa.
Na prisão, ele escreve outro romance: Féerie pour une autre fois (Fantasia para outra ocasião). “Esse romance é completamente inovador, prolifera ruídos, descreve os sons da prisão, de várias espécies”, aponta Marques. Nessa obra, ele se defende das acusações de antissemitismo, intitulando-se como “pacifista”. A professora Suzi, no entanto, ressalta que se trata de um suposto “pacifismo”, pois está “estreitamente tecido e interligado com a proposta literal de exterminar judeus.”
A última parte da produção de Céline situa-se no âmbito de crônicas históricas. Manuscritos encontrados também devem render mais publicações. Em 2022, a editora Gallimard lançou um romance inédito de sua autoria, Guerre (Guerra), editado a partir de manuscritos de 1934 encontrados recentemente.
Nas obras, destacam-se os relatos autobiográficos, permeados pela violência e a tensão. As experiências da guerra e da iminência de morte, além da transposição da emoção e da sonoridade para palavras, também são aspectos que caracterizam os escritos do autor.
Colóquio debate Céline
Amanda Marques e Suzi Sperber recentemente organizaram um colóquio que reuniu especialistas em Céline. A ideia era debater as complexidades da obra e do autor, que é pouco lido no Brasil, devido à escassez de traduções de seus textos. A discussão pode ser acessada no canal do IEL no Youtube (@ielunicampoficial).