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Os grandes desconhecidos da ciência

Faltam estudos suficientes sobre a maior parte das espécies de répteis; quase 40% delas sequer são tema de algum paper

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Professor visistante do IB e um dos autores do artigo da Mario Moura:
Mario Moura, professor visitante do IB e um dos autores do artigo da Ecography: pesquisa contribui com estratégias eficazes de conservação (Foto: Felipe Bezerra)

Das espécies de répteis do planeta, 90% registram um máximo de dez pesquisas publicadas sobre elas. Esse é um dos achados de um estudo conduzido por pesquisadores da Unicamp e da Universidade Federal de Goiás (UFG) que buscou avaliar quais são as lacunas de conhecimento sobre esse grupo de animais. A pesquisa visa contribuir com a criação e incorporação de novos programas científicos e estratégias eficazes de conservação e acaba de ser divulgada no periódico Ecography, uma das publicações científicas mais relevantes do mundo na categoria de Conservação da Biodiversidade.

Essa foi a primeira avaliação global dos esforços de pesquisa sobre répteis, que é o grupo de vertebrados mais diverso do mundo. De forma geral, os autores concluíram que fatores biológicos e socioeconômicos são os principais influenciadores quanto à quantidade de estudos realizados, mas que geografia e status de conservação também desempenham papel importante. Para chegar a essa conclusão, eles avaliaram quase 90 mil artigos (papers) sobre as mais de 10 mil espécies de répteis existentes publicados na base de dados científicos Scopus entre os anos 1960 e 2021.

“A ideia era entender a motivação para o fato de certas espécies serem mais pesquisadas do que outras”, explica o professor visitante da Unicamp e biólogo Mario Moura, que é um dos autores do artigo junto com Jhonny Guedes e José Alexandre Diniz-Filho, ambos da UFG. “Porque os ecossistemas da Terra são altamente dependentes da saúde das espécies que os constituem, eles precisam estar em harmonia para garantir o funcionamento de vários serviços ecossistêmicos como a renovação do ar e a ciclagem de nutrientes. Para que a gente consiga conservar adequadamente a biodiversidade do planeta, é preciso conhecê-la”, alega o pesquisador.

Os resultados da pesquisa apontam que não apenas faltam estudos suficientes sobre a maior parte das espécies de répteis, como também que quase 40% delas (4.027) sequer são tema de algum paper. Enquanto isso, as dez espécies de répteis mais investigadas – quatro tartarugas, quatro serpentes, um jacaré e um lagarto – foram objeto de 15% de todos os artigos científicos encontrados, ou um total de 13.449 publicações. Outros números indicam que as dez famílias mais pesquisadas – de um total de 93 famílias – concentram quase 70% de toda a produção científica existente, enquanto as dez menos estudadas reúnem somente 36 publicações.

As serpentes estão entre as espécies de répteis mais investigadas; fatores biológicos e socioeconômicos são os principais influenciadores quanto à quantidade de estudos realizados (Foto: Francisco Assis da Silva/ Centro de Monitoramento Animal da Unicamp) 
As serpentes estão entre as espécies de répteis mais investigadas; fatores biológicos e socioeconômicos são os principais influenciadores quanto à quantidade de estudos realizados (Foto: Francisco Assis da Silva/ Centro de Monitoramento Animal da Unicamp)

Principais Resultados

De acordo com o artigo, animais de maior tamanho e de habitat terrestre, descritos historicamente mais cedo, que possuem grande distribuição geográfica e que ocorrem em áreas de baixada são alvo de um maior esforço de pesquisa. Isso ocorre porque espécies maiores tendem a chamar mais atenção do público e a serem mais fáceis de encontrar e coletar, o que contribui para que sejam descritas mais cedo e estejam presentes em coleções científicas. Por outro lado, espécies pequenas e que vivem abaixo do solo, na copa de árvores ou no alto de montanhas, por exemplo, são mais difíceis de serem vistas e de coletar.

Uma descoberta interessante foi que o aparecimento desses animais em listas de espécies ameaçadas também apresenta uma correlação positiva com o número de publicações. “O que a gente percebeu é que a quantidade de pesquisas é superior nas espécies ameaçadas, em comparação com aquelas não ameaçadas. Isso mostra a importância das listas vermelhas para acelerar a produção de conhecimento sobre organismos que já estão à beira da extinção, para a gente poder de alguma forma traçar um planejamento adequado para eles”, ressalta Mario Moura.  

Poder econômico e a proximidade em relação a centros de pesquisa em biodiversidade também influenciaram a quantidade de estudos por espécie. Países ricos têm mais recursos para investir em esforços de pesquisa, o que gera um efeito contrastante: nações de clima temperado, como aquelas da América do Norte e Europa, tendem a realizar mais pesquisas do que países tropicais como os da América Central e África, embora este segundo grupo tenha uma diversidade muito maior. Além disso, uma maior disponibilidade de verba e a reduzida diversidade de animais permitem aos países ricos pesquisarem répteis de regiões remotas, enquanto que, nas zonas tropicais, esses mesmos países priorizam aquelas próximas de seus institutos.

No entanto, Moura ainda sugere que há uma influência do carisma da espécie no direcionamento dos esforços de pesquisa. Exemplo disso seria o fato de que as três primeiras posições no ranking são ocupadas por tartarugas marinhas: a tartaruga-verde, com 2.130 artigos, a tartaruga-cabeçuda, com 2.058, e a tartaruga-de-orelha-vermelha, com 1.709 estudos. “E a gente vê também que há muitas víboras, que são serpentes venenosas, o que provavelmente tem relação com a produção de biofármacos, como soro antiofídico e outros remédios a partir dessas substâncias”, comenta o biólogo.

Flagrante de Teiú no campus da Unicamp em Campinas; répteis são desconhecidos pela ciência (Foto: Francisco Assis da Silva)
Flagrante de teiú no campus da Unicamp em Campinas; faltam estudos suficientes sobre répteis (Foto: Francisco Assis da Silva) 

Bioinformática

Para analisar um volume tão elevado de artigos disponíveis da base Scopus – que possui quase 2 bilhões de estudos referenciados –, os autores criaram um código de programação na linguagem R que foi compartilhado no paper para quem quiser replicar os resultados. De posse de uma lista com os nomes das milhares de espécies existentes, o software realizou uma varredura na base de dados, identificando todos os artigos que mencionavam uma dessas espécies no título, nas palavras-chave ou no resumo, o que retornou um total de 82.280 pesquisas.

Esse emprego de técnicas de programação é um fator cada vez mais emergente em áreas como a ecologia e bioinformática. Segundo Moura, essa é uma área de estudos de baixo custo – demanda apenas um computador e conexão com a internet – e que revela a importância da interdisciplinaridade na ciência. “A pesquisa está inserida em um ramo da sociologia chamado cienciometria, que estuda como a produção científica evolui, e que é útil para identificar deficiências no nosso conhecimento. O uso de cienciometria na ecologia pode ajudar no planejamento sobre conservação da biodiversidade”, defende.

Atualmente, o pesquisador lidera na Unicamp o projeto Megadados e Conservação da Biodiversidade, com financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). O objetivo desse projeto é avaliar como o acúmulo de conhecimento sobre biodiversidade impacta o planejamento de conservação das espécies, por meio da compilação de uma grande quantidade de informações já disponíveis na literatura científica. No Brasil, por exemplo, os estudos sobre répteis tendem a apresentar as mesmas características globais, com pesquisas que apontam que esses estudos seguiram os padrões históricos da colonização europeia do país, iniciando pelos litorais do Rio de Janeiro e São Paulo e somente depois avançando para o interior.

No entanto, como várias áreas de baixada no país foram desmatadas para dar lugar a pastagens e lavouras, muito do que sobrou dos biomas brasileiros está localizado em áreas montanhosas. Somado a isso, há muitas desigualdades no financiamento à pesquisa em termos estaduais, enquanto que, no âmbito federal, os últimos anos registraram poucos investimentos. “Isso limita a realização de pesquisas, que ficam cada vez mais difíceis, mesmo que ocorram no quintal das instituições. Então os locais distantes, remotos, acabam ficando com espécies desconhecidas”, explica.

Imagem de capa JU-online
Teiú no campus da Unicamp; estudo contém a primeira avaliação global dos esforços de pesquisa sobre répteis

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