Perfuração em cratera na periferia de São Paulo, entre aldeias indígenas e favelas, vai revelar como o clima mudou nos últimos 800 mil anos
Passa um pouco do meio-dia, e a despeito do ar gelado deste início de tarde de inverno, o sol bate forte sobre a planície atrás de uma plantação de hortaliças – alface, cenoura, repolho – no fundo de uma cratera de 3,6 km de diâmetro aberta, há milhões de anos, no que hoje é a região de Colônia, em Parelheiros, zona sul da cidade de São Paulo. Fala-se muito que a depressão foi causada pela queda de um meteorito mas, a rigor, nem isso pode ser afirmado com certeza.
“Não se sabe a idade desta cratera, e ninguém provou, de fato, que um meteorito caiu aqui”, havia dito, dias antes, o engenheiro francês Laurent Augustin, do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS) da França. “Mas, se não foi um meteorito, então ninguém sabe o que fez isto”. Alvaro Crósta, docente e pesquisador do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, confirma: “A origem por impacto meteorítico da estrutura de Colônia é ainda uma hipótese de trabalho, que estamos testando”, explica. “Ou seja, ainda não temos todas as evidências comprobatórias dessa origem, muito embora não exista outra explicação plausível para sua formação”.
Agora, sujo de lama, usando um capacete branco, protetores auriculares e óculos especiais, Augustin e seu colega Alain de Moya orientam os trabalhadores da empresa Sondosolo, de Campinas (SP), no delicado trabalho de perfurar o fundo da cratera, em busca dos sedimentos que vão contar história de como o clima e a vida transformaram-se, neste local, ao longo do último milhão de anos.
A extração procede lentamente. Com paciência, cientistas da França e do Brasil – além de Crósta, a Unicamp está representada pela paleontóloga Fresia Ricardi Branco, também do IG – aguardam sob o sol, fascinados demais para fugir do brilho intenso, ou nas pequenas sombras oferecidas por uma cobertura de plástico amarelo e pelas poucas árvores ao redor, até que alguém anuncia: “Mais um testemunho!” A imobilidade é logo substituída por agitação: todos se aproximam para observar.
O “testemunho” é um tubo plástico rígido, transparente, com um metro e meio de comprimento e dez centímetros de diâmetro, cheio de lama. Um pequeno disco dessa lama é cortado, transferido para um saco plástico e levado para a casinha rural em ruínas situada ao lado do local de perfuração, na borda da plantação de alface, onde será analisado. Depois de retirada essa amostra, o cilindro é tampado e lacrado com fita adesiva. Ninguém quer que micro-organismos da atmosfera atual contaminem a lama de milhares de anos atrás.
Com um pincel atômico vermelho, a principal investigadora do projeto, Marie-Pierre Ledru, do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD) da França, escreve na superfície do tubo: “3750”. O testemunho veio de uma profundidade de 37,5 metros. A meta da jornada atual, financiada pela Fundação BNP Paribas, do banco francês de mesmo nome, é chegar aos 50 metros, obtendo um registro dos sedimentos acumulados no fundo de Colônia ao longo de um período que pode ir de 800 mil a 1 milhão de anos atrás.
“Toda essa região da Serra do Mar vem sofrendo erosão há vários milhões de anos, sendo os sedimentos carregados ou para o Oceano Atlântico, ou para as grandes bacias adjacentes, como Tietê/Paraná ou Paraíba do Sul, não sendo possível recuperá-los”, disse Crósta. “Dentro da estrutura de Colônia, que na verdade se comporta como uma pequena bacia sedimentar totalmente fechada, o processo é justamente o inverso: desde que ela se formou, há vários milhões de anos, os sedimentos erodidos nas suas imediações vêm se acumulando em seu interior, e de forma contínua. Portanto, eles contêm os registros da evolução do clima nesse período de vários milhões de anos, registros que não podem ser encontrados em nenhuma outra região do sudeste brasileiro”.
Ciclo do sol
“Queremos saber a que fatores os biomas respondem, em termos de ciclos, nas regiões tropicais”, disse Ledru, explicando o objetivo da perfuração. “Nossa hipótese é que são os ciclos de insolação, também chamados de ciclos de Milankovitch”. Ela lembra que a intensidade da energia solar que chega à Terra é regulada por três ciclos: o das precessões, no qual varia a orientação do eixo da Terra, e que se completa a cada 23 mil anos; o da obliquidade, no qual o que varia é a inclinação do eixo, com duração de 40 mil anos; e o da excentricidade da órbita, com 100 mil anos.
“Há 800 mil anos, a sucessão de eras glaciais e interglaciais deixou de seguir o ciclo de 40 mil anos e passou para o de 100 mil, que é onde estamos agora”, prosseguiu a pesquisadora. “Foi uma mudança que teve grande impacto, e queremos ver se ela afetou a biodiversidade – se os ciclos de energia solar podem explicar a biodiversidade, os ritmos de surgimento e extinção das espécies. É por isso que queremos chegar à profundidade de 50 metros: porque ela deve corresponder a essa mudança do ciclo”.
“Há uma concentração de estudos paleoclimáticos no hemisfério norte. O registro paleoclimático do hemisfério sul, com destaque para o Atlântico Sul e áreas continentais tropicais, ainda é pouco estudado”, acrescentou, via e-mail, o pesquisador André Oliveira Sawakuchi, da USP, que também participa da investigação em Colônia. “Esta assimetria está relacionada ao investimento em pesquisa científica, que é maior em países do hemisfério norte. Muitas pesquisas em andamento no hemisfério sul são ainda realizadas por instituições de pesquisa do hemisfério norte, em parcerias. O nosso projeto em Colônia é um exemplo disto”.
Trata-se de um projeto envolve um grande número de especialistas, e cada um deles buscará, nessa lama de eras passadas, seus próprios indicadores. Fresia Ricardi Branco, por exemplo, trabalhará com pólens e esporos de plantas. “Vamos ver qual a vegetação que havia aqui há 1 milhão de anos, e como ela mudou nesse tempo”, disse. “A partir daí, podemos inferir as mudanças do clima, já que a vegetação responde às variações de temperatura”.
Mas a pesquisadora da Unicamp terá de esperar. Os testemunhos serão inicialmente levados para a França, onde passarão por análises não-destrutivas e não-invasivas, incluindo fluorescência de raios-X, exame em que o material é bombardeado com radiação e, em resposta, emite seus próprios raios-X, que são captados e interpretados.
“Isso permite ver a geoquímica em alta resolução”, explica a pesquisadora Patrícia Roeser, que é quem recebe os discos de lama obtidos antes de os testemunhos serem lacrados. Apenas após essas pesquisas iniciais no exterior é que os testemunhos serão fracionados e distribuídos entre os demais cientistas do projeto, no Brasil, na França, na Suíça e na Alemanha. A estimativa é de que o material extraído da cratera seja objeto de estudos internacionais por mais de uma década.
“A medida dos gases na amostra, da atividade microbiana e da ecologia microbiana vai ajudar a ver o ciclo do carbono”, exemplifica Roeser. “Queremos fazer a reconstituição da Mata Atlântica: ver como ela surgiu no passado e, talvez, extrapolar como vai reagir às mudanças climáticas no futuro”.
“Entender melhor os impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade tropical” é um dos objetivos expressos no material divulgado pela Fundação BNP Paribas sobre o projeto.
Brilho do Sol
Em guarani o nome é Koaray Rexaka, mas a aldeia, estabelecida há três anos às margens da Represa Billings em São Bernardo do Campo – não muito longe da Cratera de Colônia – é mais conhecida pela denominação equivalente em português, Brilho do Sol. A povoação, que se destacou da aldeia Krucutu, no lado paulista da represa, ainda é pequena. Os guaranis de Brilho do Sol, liderados pelo cacique Fábio Veríssimo, usam a represa como fonte de peixe, a despeito da poluição. Mas, para beber, valem-se da água de uma nascente.
Os efeitos da transformação do meio sobre a biodiversidade – neste caso, uma transformação que não se dá por ciclos naturais de milhares de anos, mas pela ação humana, rápida e direta – assombram a vida da jovem comunidade. O pajé, Laurindo Tupã Miri Veríssimo, de 69 anos, pai do cacique Fábio, queixa-se da mata ao redor, que não é mais a Mata Atlântica original. “Antes, a gente cuidava do mato e o mato cuidava da gente”, disse. “Hoje, temos muita dificuldade. Até para os animais está faltando comida: são tão poucos que a gente nem tem coragem de caçar. Não é mais mato puro: aqui, não se encontra o que a gente precisa”.
Com o empobrecimento do meio, os índios cada vez mais têm dificuldade em manter seu estilo de vida, e são forçados a procurar recursos na cidade. O pajé Laurindo fala, com especial indignação, das ervas de uso tradicional, que não se encontram mais na natureza ao redor, mas são vendidas em lojas de produtos naturais. “A gente tem que sair daqui e ir comprar o que era nosso”.
“A gente sempre tem que se atualizar”, disse Fábio. “Temos que aprender e passar adiante, para nossos filhos, como se atualizar sobre o que acontece no mundo. Mas não queremos perder nossa cultura. Para achar o equilíbrio entre as culturas é preciso estudar muito”.
Origens
Mais perto da perfuração, ocupando parte do interior da cratera, fica o bairro paulista de Vargem Grande, cuja ocupação começou na segunda metade dos anos 80 – a fundação oficial, segundo ata de reunião da União das Favelas do Grajaú (Unifag), é 22 de março de 1989. O Grajaú é um distrito da Zona Sul de São Paulo.
Fernando José de Souza, o Fernando Bike, vive em Vargem Grande, onde mantém uma loja de bicicletas e organiza passeios ciclísticos pelas áreas verdes, de preservação ambiental e aldeias indígenas da região. Ele prestou serviços de guia para profissionais ligados à perfuração, e visitou o local de bicicleta, com amigos, algumas horas antes de Marie-Pierre Landru marcar o testemunho de 37,5 metros de profundidade.
“A divulgação dos estudos ainda é pequena no bairro”, disse ele. A população de Vargem Grande sabe que está dentro de uma cratera – há até moradores abrem suas casas para visitantes que desejem observar a formação a partir das lajes mais altas – mas não há muita interação com os pesquisadores, ou transferência de conhecimento. “Deveria haver uma divulgação antecipada”, opina Fernando. “Quem sabe desse para usar parte do recurso da pesquisa para levar pessoas a visitar o local”, sugeriu.
Recursos para a pesquisa, no entanto, são escassos. A campanha de perfuração, financiada pela instituição francesa, não permitirá, por exemplo, esclarecer a questão da origem da Cratera de Colônia, comprovando – ou negando – seu nascimento na colisão da Terra com um objeto vindo do espaço. “Para isso, seria preciso perfurar até o fundo, estimado em 270 metros ou mais”, explica Crósta. “E aí encontrar o tipo de deformação característica do impacto, ou fragmentos do meteorito, ou evidência geoquímica”.
O estudo da formação em Colônia sofre, há décadas, com intermitência ou falta de verbas. A parceria franco-brasileira, que conta ainda com participação da USP, vem trabalhando o local desde o fim dos anos 80. Segundo Crósta, a parte mais significativa do investimento do BNP Paribas, nesta etapa, está sendo consumida na operação da máquina perfuradora. O amostrador, equipamento utilizado para extrair os tubos de lama em profundidade, tem características especiais, pois precisa ainda mantê-los livres de compressão e contaminação.
“Esperamos que os resultados a serem obtidos nessa primeira fase alavanquem possíveis financiamentos futuros, para darmos continuidade ao projeto e chegarmos até a interface entre os sedimentos e as rochas do embasamento”, disse Crósta. “Aí sim, poderemos encontrar as feições de deformação por impacto meteorítico que nos permitirão não apenas comprovar a origem, mas obter informações sobre o tipo de corpo que formou a cratera, e também sua idade”.