A noite é vertigem, escreve Foot
Hardman no Caderno Aliás do Estadão
23/07/2012 - 09:30
(O Estado de S. Paulo, Caderno Aliás, 22 de julho de 2012)
A NOITE É VERTIGEM
Francisco Foot Hardman (*)
Onde começa a cena e termina a rua? Este bairro existe? Onde é que riscamos sua fronteira e começa a memória de alto risco? Será nesse corte silencioso de um tecido vermelho, em que Dibuk, o espírito maligno hebraico vem anexar-se, noturno, em carne e sangue, nos manequins que testemunham, mudos, a orquestra das máquinas de costura de bolivianas insones-sonhadoras?
Ouve-se claramente, vindo do além-muro de tijolos, o som de trem passando. Mas não é o de um trem real, esse ruído que se cruza com a fala da noiva abandonada vagando pela alta marquise (na atuação excelente de Raquel Morales), depois com a do cracômano, extravagante entre esgoto e escada de ferro escalada até o muro da linha férrea (Roberto Audio). O som foi gravado e se projeta no muro com o jogo de luz, a iluminação jogando, como sempre, ao lado do design sonoro, papel estratégico na condução da narrativa dramática desse Bom Retiro, 958 metros. A locutora da rádio Infinita (Sofia Boito) anuncia algum desastre iminente, numa transmissão amalucada, dando notícia de que “o espetáculo é o guardião do sono”.
Encenado pelo Teatro da Vertigem ao se completarem seus vinte anos de trabalho, dos mais inovadores em qualquer ângulo mirado na cena dramática contemporânea brasileira, esta montagem já mereceria ser saudada pelo que carrega de esforço contínuo de pesquisa e trabalho coletivo, em condições sabidamente adversas. Mas dizer isso é pouco. Se há um núcleo de sentido persistente ao longo dessa trajetória, que pode servir de elo unificador à história do Vertigem, ele se refere aos múltiplos aspectos da ilusão estruturante da vida contemporânea, das fantasmagorias que a senda do progresso cravou na vida da cidade e das multidões. Que cedo aprenderam o duro ditame do estranhamento de si e dos outros como lei maior da urbe.
Pois o itinerário labiríntico desses quase mil metros a que nos convida Bom Retiro não é o de algum delírio místico, redenção messiânica ou comédia estereotipada de costumes, como se vê amiúde no teatro praticado por aí. A vertigem é a do reino das mercadorias e seus sucessivos fetiches. Dopping Center diz o cartaz logo no fundo de um corredor do shopping, no início da peça. A vertigem é a saga de tantas gerações e etnias de imigrantes – italianos, judeus, gregos, árabes, coreanos, bolivianos –, de sua esperança ao desconsolo, de suas memórias ao esquecimento, de cada saga grupal ou familiar ao abandono do tempo nas dobraduras do espaço de um bairro central e periférico, a um só tempo febril, vibrante, violento, degradado, riquíssimo, paupérrimo, cheio e vazio.
A vertigem é essa arqueologia trôpega de traços e destinos abissais e sua síntese numa teatralização que, no que nos oferece o bairro aqui e agora, poderia se achar quase impossível. Vertigem de todas as boas memórias, agora agonicamente batendo em retirada. Bom Retiro das confecções invisíveis e dos imigrantes-retirantes. Dos manequins mortos e da manequim viva, a bela atriz Káthia Bissoli, que ostenta cartazes com descontos crescentes e cinicamente proporcionais ao avanço de sua nudez. Vertigem nos olhos atônitos desses coreanos apressados nos carrões e nos pedestres bolivianos que passam furtivos e não sabem o que se passa naquelas ruas: será um filme? Um programa de TV?
Que seja apenas teatro assumido radicalmente como arte pública independente talvez seja mesmo a maior vertigem que o espetáculo afinal desencadeia. Vi quando passageiros sonolentos de um ônibus, bem como um caminhoneiro solitário, num cruzamento tríplice (ruas Ribeiro Lima, Correia de Melo e da Graça), quase perderam o rumo ao serem despertados, pela luz e som, para a cena em que as atrizes Bia Bouissou e Laetitia Augustin-Viguier, esta também a guia impassível de toda a peça, travam luta livre ao relento – e nuas.
Um taxista amigo, sr. Eder, que faz ponto no Bom Retiro, comentou de seu espanto quando surpreendeu, pela primeira vez, um dos ensaios de rua do grupo, já entrando pela madrugada. “Pensei que fossem maloqueiros mesmo!...”, disse-me, reportando a cena, perto do final, em que, pela Correia de Melo, desfilam catadores, cracômanos, agentes sanitários, carregadores, manequins, com seus coros, farrapos e lixos. “Desesperanto” é sua novilíngua, repetem alguns personagens, contracanto à utopia libertária internacionalista que o esperanto, projeto de língua franca, tentou representar para as levas de imigrantes e militantes, ainda no final dos Oitocentos.
Talvez essa pegada forte prescindisse até mesmo de tanto apoio textual. Pois o que se foi acumulando nessas duas décadas como experiência mais ousada de criação cênica coletiva dirigida com talento inegável por Antônio Araújo refere-se antes de tudo à combinação muito bem concebida de locações insólitas com marcações decisivas de luz e som, em logística que reúne artesanato e tecnologia, tudo isso enfeixado por trabalho primoroso e complexo de expressão corporal em que o conjunto de atrizes e atores supera-se a cada representação. Tudo, até aromas e fumaças, atua na produção sinestésica desses quadros tão contemporâneos em sua inatualidade.
Uma linhagem de lugares arruinados pelo tempo dos homens e revividos como espaços cênicos da arte presente vão se somando nas escolhas do Vertigem: nessa galeria estão o hospital Humberto Primo, em O Livro de Jó (1995); o presídio do Hipódromo, no impactante Apocalipse 1, 11 (2000); o fantasmagórico morto-vivo rio Tietê, no radical BR-3 (2006), que sintetiza a desarmonia em três brasilidades agônicas como as de Brasília, Brasilândia e Brasileia; o espaço envidraçado desse Kastelo (2010), porta da lei indevassável, motor do estranho-familiar que é o Kafka nosso de cada dia; e o conjunto de logradouros desse Bom Retiro ameaçado por Dibuk vestido de vermelho, que já se incorporou nas artérias do bairro e nas veias do corpo – do nosso corpo assustado por não ter como lembrar.
No espetáculo em cena, parece evidente que a dramaturgia de Joca Terron, ao privilegiar o antiquado registro supernaturalista, acaba produzindo excesso, tanto em tempo de falas, quanto em overdose de brutalismo, o que se manifesta na redundante relação do cracômano com sua pedra. Essa a vertigem mais óbvia, digamos. Outros núcleos dramáticos poderiam quem sabe obter melhor efeito cênico e crítico, como o das costureiras bolivianas invisíveis que, felizmente, retomam o fio de sua costura desesperançada antes do fim. E a encenação da última parte nesse edifício tão histórica e artisticamente pleno de significados, que é o TAIB (Teatro de Arte Israelita Brasileiro) – hoje teatro-fantasma –, ganharia em agilidade e vigor, se a incorporação do público à mecânica maldita do estranhamento não se arrastasse, ali, por tanto didatismo.
De todo modo, percorridos os 958 metros (quem se atreveria a conferir este número?), o Teatro da Vertigem restitui-nos pedaços perdidos da memória social e cultural de um bairro, uma cidade, um país, ao revolver seus escombros, mas também os ícones da indústria-comércio de confecções têxteis, de que o Bom Retiro é polo nacional. Ironicamente, o início do passeio dá-se nesse shopping “coreano” à rua Cesare Lombroso, cujo nome homenageia o famoso antropólogo-criminalista do final século XIX. Criador de teoria racialista biofísica entre as mais cientificamente reconhecidas e admiradas em seu tempo, Lombroso legitimou muitas biopolíticas de eliminação e exclusão, ao reforçar o trinômio raça-biotipo-loucura-crime contra populações como as dos despossuídos que começavam a constituir novo proletariado em São Paulo, inclusive ali mesmo, nos cortiços do Bom Retiro. Assombroso, como sugere uma das placas reescritas na encenação.
Mas ali é só entrada do labirinto. Evacuados do TAIB, da antiga Casa do Povo em que a comunidade judaica de esquerda fez história na cultura literária e teatral da segunda metade do século XX, deparamos com uma caçamba em primeiro plano, derradeiro palco em que as ótimas Mawusi Tulani (faxineira-filósofa e “modelo coreana certificada”, com todo seu portentoso look africano) e Sofia Boito (manequim defeituosa em busca de emprego), que já tinham contracenado em dupla de área hilária em várias passagens, voltam a tecer, largadas assim como entulho, um deslocado diálogo idílico sobre as belezas da noite.
Os fantasmas, porém, teimam em açoitar sentimento e razão. Saindo dali, eu e uma amiga surpreendemos, quase meia-noite, na entrada de um daqueles antigos prédios baixos, ainda na Três Rios, uma senhorinha vestida impecável, entrando em sua casa, acompanhada de uma moça, portando singelo ramalhete de flores. Seria a antiga guardiã do TAIB? Ainda uma atriz desavisada do fim da sessão? Era real esta anciã, remanescente dos antigos narradores de Dibuk? Ou ela própria aparição de todas as nossas desculpas?Claro está que ninguém saberá. Fiquemos por ora com a noite fria e vital dos sinais de perigo de Bom Retiro, 958 metros. Quem sabe a última palavra se converta em pedra, como desejava a infatigável consumidora (Luciana Schwinden), e as portas de todas as lojas se escancarem, em explosão lúdica e fulminante. E com ela a lei vire letra comum. E a história, memória comungada nos corpos. E a vertigem, esta que a magia da ribalta nos passa, seja apenas o silêncio que a lua e o vento saberão dispor.
(*) Francisco Foot Hardman é ensaísta, pesquisador e professor de Estudos Literários na Unicamp